Capítulo 6 - Um encontro inusitado

O príncipe analisava as feições do pai como se estivesse a tentar perceber um documento importante que estava escrito numa outra língua. Os seus olhos castanhos escurecidos pareciam ter montado um cerco impenetrável em torno da pupila negra. As suas fartas sobrancelhas grisalhas niveladas uma pela a outra, sem o mínimo deslize. O queixo, seguro e reto como era habitual.

− Você foi uma desgraça – cuspiu, por fim, as primeiras palavras desde que o filho se havia sentado à sua frente. As suas mãos embateram na superfície da secretária que os separava, em ricochete.

− Eu dei o meu máximo – defendeu-se Elroy escondendo as mãos trémulas sobre o colo oculto. – Fiz como me ensinou.

− Se aquele foi o seu máximo, então temos um problema – anunciou o soberano.

O polegar do rei pressionou a superfície negra espelhada da secretária. Uma imagem do rosto do príncipe ocupou todo o espaço retangular. Elroy reconheceu de imediato o colarinho do fato azul acinzentado que madame Armoire confecionara para ele. Era do dia da proclamação real, disso ele tinha a certeza, uma imagem captada durante a entrevista com Diane.

− O que você vê aqui? – questionou o homem numa paciência admirável, tendo em conta a gravidade que ele atribuía à situação.

− Sou eu, pai – respondeu sem saber onde o seu interlocutor queria chegar.

− Resposta errada. Você quer saber o que eu vejo? – Elroy engoliu em seco. Seu pai acabara de cruzar as mãos à frente do tronco, isso nunca era bom sinal. – Eu vejo a cara do medo. Olhos arregalados, – o seu indicador caiu pesadamente sobre os olhos do filho na imagem, − sobrancelhas e lábios ligeiramente descaídos, − o dedo subiu para logo depois descer até à boca fotografada do rapaz, − está aqui tudo escarrapachado para quem quiser ver! – a paciência começava a evaporar-se pelos poros do soberano.

− Eu...

− Sabe quando é que foi tirada esta imagem? – a voz grossa do pai sobrepôs-se à do filho, acabando por a eclipsar. – Assim que você viu a imagem da rapariga. Ela assusta você, por acaso?

O filho fechou as mãos sobre o colo até sentir os nós dos dedos latejar de dor. Ele não sabia o que responder. Tinha-se comportado de forma exímia durante toda a entrevista, até àquele momento. Ele sentira-o, claro. Fora treinado por um verdadeiro mestre a controlar as suas reações emocionais e, por isso, sentira quando falhara. A beleza da selecionada tinha-o apanhado desprevenido. Ele tentara imaginá-la inúmeras vezes, mas nunca nos seus sonhos mais mirabolantes tinha sido confrontado com um rosto como aquele. Lembrava-se que, na altura, a palavra que lhe assomou à mente para o descrever foi: angelical. E isso pareceu-lhe um castigo divino.

Não a temi a ela, mas naquilo em que eu a poderia transformar ao ver-se obrigada a conviver comigo, a resposta verdadeira e sentida passou-lhe em pensamento. Mas essa não foi a resposta que ele deu ao pai, porque o seu progenitor não queria sinceridade, ele queria uma demonstração de força de caráter.

− Assustei-me com a aparência desleixada dela, apenas isso – comunicou num tom firme que surpreendeu o monarca. − Estava vestida com aquelas vestes negras ridículas, sem qualquer maquilhagem no rosto. Não me pareceu uma princesa. Não irei voltar a demonstrar tamanha fraqueza, nem que seja por um mísero segundo – terminou, sem deixar de notar que estava a ser julgado por um detalhe tão pequeno e efémero, que provavelmente apenas os olhos atentos e duros de seu pai haviam detetado.

− Não tem que se preocupar, numa questão de dias ela molda-se à nossa realidade – proferiu com um brilho nos olhos que fez com que o filho percebesse que havia passado no teste.

− Eu sei – proferiu simplesmente em resposta. Na verdade, era exatamente esse o receio do príncipe.

Elroy não conseguia esquecer as palavras que o pai lhe pronunciara naquela manhã, por mais que tentasse. Fora por isso que decidira não ver a princesa naquele dia. Pelo menos, não ao vivo, porque não conseguiu resistir em espreitar as imagens das câmaras exteriores quando viu o carro chegar pela janela de seu quarto. Ele não só assistira à chegada dela, como lhe abrira a porta da mansão a partir do dispositivo que mostrava a Elroy aquele rosto angelical que ainda o fazia estremecer de medo.

A forma como a jovem parecia devorar com os olhos tudo o que a cercava fascinava-o. Fascinava-o que alguém que pisasse aquela casa conseguisse ver beleza onde ele via apenas uma interminável escuridão horrenda. E a forma como ele a olhava era a mesma com que ela analisava aqueles quadros pendurados no corredor da entrada da mansão. Uma certa curiosidade, nada que não chegasse ao fim tão depressa como havia chegado, tentou convencer-se a si próprio ao seguir os passos da moça através da escada.

No entanto, assim que Liberty entrou no quarto, acompanhada pelos seus mais fiéis empregados, ele deixou de ter a imagem dela para saborear. Será que havia gostado do quarto?, questionou-se para logo depois se arrepender, Que disparate!

O dispositivo foi largado na cabeceira da sua cama e ele encaminhou-se para a secretária do quarto onde se dedicou às aborrecidas tarefas que o pai lhe havia atribuído.

O príncipe caminhava apressado para entregar ao pai os documentos que analisara com afinco. Ao virar no último corredor antes das escadas, esbarrou com um corpo inerte que não era suposto estar ali.

O homem praguejou não pelo impacto em si, mas pelas folhas que se dispersaram em inúmeras direções.

− Tento na língua, sim? – recriminou Liberty agarrada ao ombro que o brutamontes quase deslocara.

− Ora essa! – exclamou indignado com tamanha afronta. – Estou na minha própria casa falo da forma como eu bem entender! – gritou esticando-se ainda mais para cima dela. Os seus corpos próximos só fizeram com que a diferença exterior que existia entre eles se realçasse ainda mais.

− Pois se assim é, não se preocupe que me vou embora agora mesmo – declarou corajosamente, vendo ali a desculpa perfeita para fugir daquela prisão que lhe fora destinada erroneamente.

A jovem balançou os longos cabelos de forma exagerada ao virar-se de costas para ele. Os sedosos fios embateram no rosto do futuro regente de Villeneuve, provocando-lhe cócegas.

− Nem pensar! – rugiu furioso, ao agarrar-lhe pelo braço. – Você não vai a lado nenhum. Quer queira, quer não, − Elroy puxou-a para si, ignorando os seus queixumes, − está presa nesta casa, tanto quanto eu − declarou olhando-lhe no castanho profundo de seus olhos. O brilho que encontrou apanhou-o desprevenido e Libby aproveitou para soltar o braço.

− Acontece que isto não passa de um mal-entendido. Eu não sou a selecionada.

− Não me diga que tem uma irmã gémea – gracejou o príncipe.

− Não. – Os olhos nublosos de Elroy brilhavam com a sua tão fácil vitória. Mas ele não conhecia a jovem, Liberty não iria desistir. – Eu não fiz nenhuma das provas! Nem uma – confessou num tom de voz amplificado pelo desespero. – Houve um erro na seleção.

Ele não estava de todo à espera daquilo.

Ele sabia que todas as jovens entre os 16 e 25 anos tinham sido obrigadas a participar das provas desde tenra idade. Não era propriamente uma escolha. Então porque é que ela lhe mentia tão descaradamente? Será que tinha detestado assim tanto do que vira?, interrogou-se alarmado.

− A família real não comete erros – a sombra pesada das palavras do pai compareceu na voz grave de Elroy. − Nunca mais volte a insinuar semelhante coisa. − Liberty vislumbrou a testa franzida e os punhos cerrados do príncipe e cambaleou alguns passos. – Para seu próprio bem.

As palavras finais funcionaram como o último empurrão que a jovem precisava para compreender que este era daqueles erros que não poderia ser desfeito. Um nó havia se formado à volta daqueles dois seres de forma irremediável. Liberty esgotara as forças logo no primeiro embate, e o nó nem um milímetro se moveu.

Levada pela revolta do seu fracasso, a futura princesa correu na direção do quarto, que não queria ainda admitir ser o seu.

− Agora vá para o seu quarto e não saia de lá até ordem em contrário – bramou irado ao perceber que Liberty fugia de si.

Ela não o queria, isso ficara claro para o príncipe.

Com o ego ferido, Elroy agachou-se e começou a apanhar os papéis que se haviam espalhado pelo chão e talvez também os estilhaços do seu coração.

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