Capítulo 40 - O fim
− Abram a porta! – Liberty gritou. Ela já nem sentia o frio do metal, tal era a força com que seus punhos embatiam na porta fechada. – Sou eu, a Liberty. Abram a porta!
Ela não sabia quem ia encontrar lá dentro. Os mortos que se espalhavam por aquele corredor deixaram-na receosa de que o pior tivesse acontecido. Quando vira o corpo da rainha imóvel e embebido em sangue, ela soube que a ameaça era real. Mas nem o príncipe, nem o rei estavam entre os mortos, haviam apenas vestes brancas e negras a revestir os homens que perderam a vida naquela escura madrugada.
− Abram a... − A voz da garota esmoreceu com o som da porta a abrir-se. Ela passou pela passagem estreita antes que quem quer que lhe tivesse cedido a passagem do outro lado acabasse por se arrepender.
− Ainda bem que você chegou, Liberty – disse Gaston com um sorriso rasgado. − Sem você, nada disto teria sido possível. – Ele gesticulou para o cenário à sua frente.
Taupe mantinha a navalha, ainda marcada com o sangue da rainha, pressionada contra a jugular do príncipe. Aos pés de Gaston, o rei ajoelhado sangrava por inúmeros cortes ao longo do corpo. O tecido da roupa, reduzido a simples frangalhos, não conseguia esconder as feridas recentes mescladas com as de anos de tortura. LeFou empunhava uma barra metálica um pouco acima do crânio do monarca. A arma improvisada tremia-lhe nas mãos com a recordação do homem a que ele havia tragado a vida no jardim.
− Eu... sabia... − A voz do rei saiu em esforço, quase num mero sussurro, mas audível o suficiente para chegar até à jovem estacada junto à porta.
− Eu não fiz nada – defendeu-se Liberty. Os seus olhos agarraram-se aos de Elroy numa súplica para que ele acreditasse nela.
Killian, que tinha recebido a ordem de Gaston para abrir a porta, observava apenas a cena, calado e quieto. Ele obedecia cegamente às ordens do republicano, porque não havia outra opção. Ele se via de mãos atadas, completamente inútil, sabendo que um simples passo seu poderia significar a morte do monarca. Porém, a entrada da selecionada tinha vindo mexer com a dinâmica de um jogo viciado. Se ela estivesse do lado dos rebeldes, o guarda poderia usá-la para manipular Gaston. Talvez nem tudo esteja perdido, pensou ao orquestrar o próximo plano de ação. Seria Liberty a ponta solta dos republicanos?
− Mas como não? – Gaston se animava cada vez mais com a ideia de estragar o romance que nunca deveria ter surgido em primeira instância. − A escuta implantada no teu antebraço foi o que nos garantiu estar aqui agora. – A garota volveu os braços na procura de algo que lhe tivesse escapado. Ela não sabia se haveria de acreditar ou não naquela história aparentemente ridícula, mas o tom do republicano transmitia uma confiança que a perturbava. − E você ainda nos trouxe aquele dispositivo com acesso às câmaras e à abertura das portas desta mansão.
− Não! Isso é mentira! – gritou indignada. – Você roubou-o! Eu não lhe entreguei nada – assegurou a Elroy, concentrando-se, de novo, no fundo de seus olhos.
O futuro monarca engoliu em seco e a navalha reclamou um pouco de seu sangue, num corte superficial, que este nem sentiu. Apesar de confuso com tudo o que ouvia, ele continuava absolutamente convicto do julgamento que havia feito do caráter de sua amada. Para ele, Liberty seria incapaz de enganar os outros em benefício próprio. Mas e em benefício de uma causa?, a dúvida cresceu dentro de si.
− Você vai negar que eu e você passámos muito tempo juntos antes da proclamação do resultado da seleção?
− Não, mas... − Elroy sentiu seu coração parar, por instantes, com a resposta dolorosa da selecionada. Então, eles se conheciam, o pensamento martirizou-o. As especulações sobre a natureza daquele relacionamento cortavam mais fundo do que a lâmina colada ao seu pescoço.
− E teu pai é um republicano, não é mesmo? – A insinuação apanhou a jovem desprevenida, que desceu os olhos envergonhada. Ela ainda não podia acreditar que o progenitor se tinha envolvido com aquela gente capaz de matar. − Foi ele que te ensinou a repudiar a monarquia, não foi?
Liberty assentiu contrariada. Ela não queria mentir, não poderia fazê-lo a Elroy, mas doía-lhe ter de admitir aquelas verdades que a coloriam de tons que não a favoreceriam nada aos olhos do príncipe.
− Eu sempre disse que ela te queria roubar o trono – confrontou o rei, ao levantar o rosto para o filho. A pulseira já agia velozmente, cicatrizando as feridas.
− Estou a ver que já recuperou, sua alteza – disse Gaston, alerta para a sua verdadeira motivação. Liberty tinha sido apenas um obstáculo no seu caminho de vingança. Um contratempo difícil de controlar. Talvez se ela lhe tivesse retribuído a afeição, ele tivesse desistido. Quem sabe? O coração do republicano era capaz de amar, mas com mais força ele odiava. O ódio cresceu junto com seus ossos e músculos, se tornando parte dele. – Me parece que já está pronto para uma terceira volta na máquina. Estou curioso para saber se desta vez irá resistir. Não que me incomode, de todo, passarmos o dia todo a tentar. Liberty já assistiu ao espetáculo com Elroy, não ficará, certamente, impressionada.
A selecionada passou a mão sobre seu antebraço, consciente de que tinha sido mesmo ela a permitir a entrada dos republicanos na mansão, mesmo que sem intenção. De que outra forma saberia Gaston sobre o último encontro que tinha tido com o príncipe? Não tardou muito para que ela montasse todas as peças e percebesse o momento em que Gaston havia injetado nela o aparelho de gravação de som.
Naquela terceira vez, o rei não resistiu quando Gaston o arrastou para a máquina. Suas forças se haviam esvaído.
− Nem mais um passo! – comandou Killian ao chegar o corpo de Liberty para junto de si. O braço do guarda apertava o pescoço da garota, dificultando-lhe a respiração. Ela não podia ver o rosto do seu atacante, mas a respiração quente do homem era pesada o suficiente para lhe trespassar os cabelos. – Ela morrerá, se não soltar sua alteza real.
Elroy reagiu por instinto e avançou um passo, a navalha cortou-o junto ao osso na base do pescoço. Taupe bufou com a inquietação do príncipe e voltou a posicionar a lâmina no local certo como aviso. Se ele estivesse distraído, poderia ter morto o homem ali mesmo. Mas ele não queria matar ninguém por puro acidente. Se Gaston dizia que Elroy teria de ficar vivo por enquanto, assim seria. O informático confiava nas decisões sábias do amigo. Afinal de contas, tinha sido Gaston o verdadeiro impulsionador daquele avanço dos republicanos.
− Me parece a mim que o príncipe não está muito satisfeito com essa sua decisão, general. – Gaston espicaçou, sem largar o rei, que pendia pelos colarinhos da camisa manchada de sangue. Os rasgões no tecido eram esticados, provocados, para ver até onde se aguentariam. – General, não é mesmo? Já que todos os seus companheiros morreram, será general, nem que seja de si próprio. Não lhe parece esta uma jogada que está a pender para o lado errado do tabuleiro, general?
Killian ficou perturbado por alguns segundos, afrouxando a pressão em torno do pescoço da garota. Liberty arfou profundamente.
− Será mesmo? – A pressão voltou a aumentar e a selecionada levou suas mãos ao braço forte do guarda, em desespero. O ar escasseava cada vez mais, os pulmões já lhe ardiam, sobrepondo-se à dor aguda no pescoço. – Eu estou disposto a testar essa teoria.
Os gemidos de Libby começaram a sair entrecortados e seu rosto empalidecia gradualmente. A cor vermelha a dar lugar ao branco do desespero, do vazio, do nada. Sem oxigénio, seus pensamentos se resumiam a pedaços desconexos. Não era a vida que lhe passava em mente, mas episódios aleatórios sem início, meio ou fim. Ela prendia-se àquele plano através do rosto distorcido de Elroy. Mantinha os olhos abertos para ele, ainda que não pudesse ter a certeza que o enublado confuso que via fosse realmente Elroy. Mas o tom cinzento estava lá. E isso era suficiente para ela.
− Killian... − O príncipe tentou, mas Taupe dobrou-lhe o braço atrás das costas numa ameaça velada. O informático exercitava tanto a mente como o corpo, no seu esconderijo secreto na fábrica. A força do republicano não era pouca e o futuro monarca estava entre a espada e a parede, quase literalmente.
Para frustração do príncipe, o guarda fingiu não ouvir e se debruçou um pouco mais sobre a garota. Gotas de suor escorriam pela testa do homem que sentia o batimento acelerado de Liberty a repercutir no seu corpo. Ele não queria ir demasiado longe e a culpa começava a pesar-lhe no peito. A jovem era apenas a isca, porém, o peixe, para seu infortúnio, não parecia ter fome.
− Basta! – bramou Gaston, largando o rei despreocupadamente. O monarca embateu com a nuca na superfície da máquina. Os seus queixumes provaram que ele havia sobrevivido à queda. – Você conseguiu o que queria, general. Agora a largue.
Killian ergueu os braços no ar e a moça caiu sobre os próprios joelhos se agarrando ao pescoço dolorido. O ar que entrava sôfrego parecia esmagar-lhe as entranhas. Nunca antes ela tinha estado tão consciente do processo que a mantinha viva. Respirar, naquele momento, era tão doloroso como premente. Seus músculos iam relaxando, pouco-a-pouco, à medida que o sangue voltava a reclamar o oxigênio que tanta falta fazia ao seu corpo. Elroy, do outro lado da sala, se permitiu a relaxar junto com ela, ainda que a posição em que se encontrava não fosse nada cómoda.
− Dá cá isso – pediu Gaston, retirando das mãos de LeFou a barra de metal longa e afiada. O guarda se mantinha alerta aos movimentos do republicano, tentando antecipar seus próximos passos. – Eu já cansei deste jogo, de qualquer forma.
Com uma precisão invejável, a lança improvisada trespassou Keandre de um lado ao outro. Gaston sorriu enquanto o rosto do rei se contorcia em horror. Não haveria pulseira ou qualquer outro equipamento que pudesse recuperar os tecidos rasgados no interior do monarca. O coração não poderia ser substituído, estava irremediavelmente dilacerado.
Sem conseguir engolir mais uma derrota tão pesada quanto aquela, Killian arriscou tudo e se lançou na direção do assassino do rei. Todavia, Gaston ainda que maravilhado pela concretização de sua vingança, estava em alerta máxima, temendo um contra-ataque que poderia vir de qualquer lado. O republicano retirou a arma do corpo do rei e a arremessou no ar, na direção do alvo que voava na sua direção. Os reflexos rápidos do guarda permitiram-no afastar-se um pouco da trajetória do objeto cortante, mas não o suficiente. O metal instalou-se na lateral do seu abdómen, fazendo-o sucumbir de dor.
Liberty rastejou até ao homem ferido e sussurrou-lhe palavras tranquilizadoras. Mas nem ela acreditava totalmente nas promessas que fazia. O sangue jorrava em grandes quantidades e sem assistência o guarda acabaria por morrer.
− Me desculpe... − pronunciou o guarda envergonhado com seu próprio fracasso. Tinha sujeitado a moça a uma dor atroz para, no fim, ter condenado toda a província a um futuro negro nas mãos da república. Claro que o príncipe ainda estava vivo. Mas até quando? Gaston não pararia certamente por ali. – Me desculpe... Me desculpe. – A barra enorme subia e descia com a sua respiração irregular. A garota não conseguia decidir se haveria de arrancá-la de uma vez, ou deixá-la ali a afundar cada vez mais no interior do guarda.
− Chega de lamurias. Vamos ao próximo. – Gaston acenou para Taupe, que aquiesceu ao comando não verbal. Ele empurrou o príncipe na sua frente, pressionando a lâmina na jugular. – Agora é a nossa vez, atual rei de Villeneuve.
− Você pode fazer o que quiser comigo, apenas não toque nela – falou Elroy em esforço, sentindo a navalha a cravar em alguns pontos do seu pescoço. A pulseira ajudava a cicatrizar as pequenas feridas que se iam abrindo.
− Priminho, se Liberty quiser ficar comigo eu não me vou opor, como você deve calcular. – A jovem ergueu a cabeça intrigada. Eu ouvi bem?, se perguntou, achando que tudo talvez não passasse de um sonho. Ou melhor, um pesadelo. A estranheza não era pela suposição absurda desenhada por Gaston, mas antes pela forma de tratamento para com o príncipe. – Ela é demasiado irresistível, não é mesmo?
Taupe sentiu a raiva a crescer dentro do homem que agarrava e o afastou de Gaston, antes que o atacasse.
− Eu nunca ficaria com você, Gaston. – Liberty deixou claro. Aquilo pareceu aquietar Elroy que sorriu, mesmo depois da tragédia que se abatera na sua vida, deixando-o órfão de pai e mãe.
− Você também jurou a pés juntos que nunca ficaria com o príncipe e olha onde isso te levou. Está aí tremendo pela vida dele como se fosse a sua – recriminou-a Gaston. O argumento escondia uma mágoa profunda. Se podia amar o príncipe, porque não o poderia amar a ele?, pensou ofendido.
− O que eu sinto por Elroy não se explica. – Um silêncio imperou no espaço, reclamando-o para si. O príncipe e a selecionada eram os únicos que comunicavam um com o outro, sem precisarem de usar palavras. − Se o matares, uma parte de mim sucumbirá com ele. Por favor, não o faças. – As lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces rosadas. – Por favor.
Era preciso não ter coração para ficar indiferente ao pedido emotivo da jovem. Gaston talvez não o tivesse, mas Taupe certamente que o tinha. Só isso explicava ele ter se afastado de Elroy, libertando-o do seu enclausuramento. A navalha, jogou-a para o fundo da sala, impedindo que ela fosse usada por qualquer um dos primos.
− O que você está fazendo? – questionou Gaston indignado com a traição do amigo. LeFou, atrás deste, sorrira por ver a coragem no outro que ele dificilmente teria. A conceção que tinha da amizade estava deturpada. Ele poderia não compreender algumas das atitudes e comportamentos de Gaston, mas achava que sempre tinha de as aceitar e compactuar com elas.
− Estou saindo daqui – admitiu Taupe, simplesmente. − Para mim, já deu.
Gaston observou, pasmado, o amigo a sair da sala. As coisas começavam a sair-lhe do controle. Sem armas e num enquadramento de dois para dois, já que o guarda ainda que vivo, não se levantaria tão cedo, o cenário não era dos mais animadores.
− Parece-me a mim que o vento acabou de mudar – anunciou Elroy em provocação. – Acabou, PRIMO. – Gaston não gostou de provar do próprio veneno. Uma coisa era ele usar o parentesco que partilhavam de forma irónica, outra muito diferente era ser o príncipe a fazê-lo. − Você já teve a sua vingança. Se for embora agora, poderei deixar passar o que você fez.
A selecionada sorriu satisfeita com a atitude de Elroy. Ele mostrava não ser rancoroso, e isso era uma qualidade essencial num líder. Mostrar misericórdia era digno de um futuro grande rei.
− Mentira. Isso não passa de uma grande mentira! Nunca que você deixaria passar o assassinato dos reis incólume. Você perderia, por completo, o respeito do povo, que te veria como o fraco que realmente é. Os Morfrant vivem de aparências, de capas que montam para esconder horrendas cicatrizes. Sempre foi assim e sempre assim será.
− Prefere então enfrentar-me? O que ganha com isso?
− Liberdade? Paz de espírito? – sugeriu irónico. – Sem os Morfrant, eu e todos os habitantes poderíamos respirar, por fim. Impor as nossas próprias regras, já que a redoma é um destino que a sua família nos condenou para toda a eternidade.
− Claro, porque a extinção de toda a humanidade era um cenário muito mais agradável – devolveu sarcástico o príncipe. – E a república nunca poderá agradar a toda a gente ao mesmo tempo com as "suas regras". Parece-me um pouco caótico, não. Basta tomarmos como exemplo esta vossa insurreição, que foi tudo menos pacífica.
Gaston não gostava de ser contrariado. A verdade é que ele não tinha pensado no "depois". Ele vivera para aquele dia. Para o dia em que obteria a sua vingança e para isso ele tinha que acabar com a monarquia. Ele apenas esperava que outro qualquer assumisse as rédeas dali para a frente.
Deixando-se levar pela ira, o republicano se inclinou para a frente, pronto a levar a sua missão até ao fim. No entanto, LeFou, cedendo ao impulso que emergia no seu interior, se lançou enérgico, em posição de ataque, e embateu na lateral do amigo antes deste chegar a tocar no príncipe. Gaston desequilibrou-se e caiu para dentro da máquina, que, constatando um novo ocupante, se fechou, por fim. As mãos do homem foram tragadas sem que ele pudesse tentar a fuga antes. Os pés fixos à base e a expressão de mágoa e desilusão, por ter sido traído por seu melhor amigo, impressa no invólucro translucido que lhe caía sobre a cabeça.
LeFou olhava-o do lado de fora, ainda sem acreditar no que acabara de fazer. Aquela coragem súbita completamente eclipsada. Para todos os efeitos, Gaston ainda era seu amigo e ele não lhe desejava nenhum mal. O ritual estava prestes a começar e ele não se sentia com forças para testemunhar o resultado horrendo de sua impulsividade. Ele sabia que cada corte, que cada gota de sangue vertida, seria sua responsabilidade. Seria ele a magoar, não, pior, a torturar o amigo. Por isso, limitou-se a correr. A fugir como o cobarde que se achava.
− Killian – chamou Liberty ao deixar de sentir a pressão da mão do guarda contra a sua. O enclausuramento de Gaston na máquina descansava-a mais do que a preocupava. – Killian, mantenha os olhos abertos. – O homem ouvia uma voz distante que já não sabia a quem pertencia. Uma mulher, conseguiu constatar apenas. A imagem da mãe surgiu-lhe na mente e isso fê-lo agarrar-se à brecha de consciência que ainda o acompanhava. – Sê forte. Vai correr tudo bem.
A especialidade da jovem era aquela. Cuidar dos outros. Ela era boa nisso. Não poderia eliminar a dor física, curar doenças ou impedir que a morte acabasse por chegar, no final, mas ela poderia estar lá. Amparar, sorrir, tranquilizar.
Enquanto umas lágrimas secavam no rosto da jovem, outras surgiam, trazendo novas lembranças, novas mágoas. Sofria por aquele guarda que nem conhecia, mas a dor não era a do presente, mas a de um passado distante. A mãe morrera à sua frente, sem que ela pudesse evitar, levada pelas dores de um parto difícil. Uma criança pequena não deveria presenciar tal coisa, mas Liberty sempre fora curiosa e persistente, acabando por se esgueirar para dentro do quarto ao ouvir o choro da irmã recém-nascida. Ela nem desconfiava que junto com o ganho, ela teria de perder tanto. Talvez o mesmo estivesse a acontecer naquela fatídica madrugada da invasão. Villeneuve estaria a ganhar algo no meio de todas aquelas perdas e suspiros de dor.
Liberty sentiu o conforto da mão de Elroy na sua e o coração aqueceu-lhe dentro do peito. Ela também precisava de ser tranquilizada, amparada, algumas vezes, mas nunca ninguém tinha estado lá para ela depois da morte da mãe. Em meio ao choro, ela conseguiu sorrir para o príncipe que não lhe fazia promessas, nem lhe dava garantias, apenas a olhava. Olhava-a com todo o amor que lhe dedicava e o sofrimento que habitava agora no olhar dos dois, unia-os e tornava-os mais fortes.
Recordando-se do seu plano, Elroy focou-se no guarda moribundo. A pulseira que se soltara do braço do rei com a morte do mesmo, poderia salvar a vida que se esvaía aos poucos de Killian. E fora exatamente nisso que o príncipe pensara.
− Eu vou retirar a lança de metal – avisou o príncipe enquanto revestia o pulso do homem com o mecanismo que o poderia curar. – Quando a ferida ficar exposta, pressiona-a com isto. – Ele tirou a própria camisa pela cabeça e entregou-a à jovem, que aquiesceu.
Os gritos abafados que se ouviam não eram os de Killian, que continuava semiconsciente. O republicano era o único que sofria em total consciência, sentindo cada novo corte que lhe surgia na pele. Nem quando o metal foi desalojado de supetão do orifício que se alojara nos músculos internos, o guarda se manifestou.
− Ele vai ficar bem – disse Liberty ao comprimir o tecido com força na ferida aberta. Não era uma promessa, ou sequer uma premonição, ela apenas se tentava convencer a si própria.
− Vai, sim. – Elroy afagou os cabelos da jovem sentada ao seu lado com uma mão. A outra segurava o metal no ar, como uma haste sem bandeira. O sangue descia lentamente e impregnava-se na mão contraída. – Vai, sim – repetiu, absorto no vazio. Se aquele homem se levantaria ou não, novamente, ele não sabia, mas a certeza da morte dos pais abalava-o mais do que ele gostaria de admitir. Até mesmo a província corria o risco de não se erguer depois da morte dos monarcas. Aparentemente, decaía tudo nas mãos e ombros de um só homem, o príncipe.
Elroy foi misericordioso e se ocupou de Gaston, assim que viu que não poderia fazer mais nada pelo guarda. O republicano não poderia receber uma pulseira que sarasse os seus ferimentos, já que não havia mais nenhuma disponível. Elroy teria cedido a dele de bom grado, mas esta firmava-se no pulso como se fizesse parte dele. Apenas o rei e o médico da família real sabiam o código para a desativar e como Elroy não havia morrido, para frustração de Gaston, esta mantinha-se segura no lugar a que sempre pertencera.
Com os restos do tecido da roupa negra do republicano, o príncipe pressionou as feridas de Gaston com pior aspeto. O sangue teria, ao menos, de ser estancado, não se podendo fazer o tratamento adequado. O estado debilitado do assassino dos reis indicava que ele poderia não sobreviver à tortura física por que passara. A máquina presumia que ao receber homens adultos no seu interior, estes já tivessem passado por anos de treino e que estivessem equipados com a pulseira que os permitiria recuperar rapidamente. A formatação rígida dos seus mecanismos digitais não deixava espaço a improviso ou opiniões próprias.
− Nada é eterno – pronunciou Liberty num tom sombrio ao olhar para trás e ver o rei morto, estirado no chão. Ela lembrava-se de, naquela mesma sala, Elroy ter-lhe dito aquilo. E enquanto segurava o tecido embebido em sangue, sentia a respiração fraca de Killian que o comprovava.
Ao espreitar um pouco mais adiante, viu também Elroy acocorado junto a Gaston, que de olhos fechados, parecia completamente morto de tão imóvel que estava. Talvez esteja mesmo morto, ponderou, já sem sentir nada por mais uma vida em causa. Não é que lhe fosse sentir a falta e não se poderia considerar propriamente injusto. Ele trouxera a morte e a infelicidade para o seio de muitas famílias com aquele ataque à mansão. Mas ainda assim, não lhe conseguia desejar a morte.
Pelo canto do olho, a cor garrida da pétala da rosa, a mergulhar lentamente no líquido contido na pequena redoma, chamou a atenção da jovem. Ela analisou-a enquanto esta se juntava às restantes companheiras desgastadas na base do recipiente.
− A última a cair – pronunciou tristemente.
O caule despido continuava em pé e verde, apesar de tudo. Liberty achou isso intrigante. Era como se continuasse a existir vida depois da morte. O fim da rosa não tinha chegado com a queda da última pétala. "O símbolo da nossa resistência", relembrou a garota.
− Você estava enganado. – O príncipe olhou para trás curioso com o que Libby quereria dizer com aquilo. Foram tantas as vezes que se enganara. Na verdade, passara uma vida a enganar-se a si próprio, escondendo-se numa pessoa que o pai quisera que ele fosse. Gaston não deixava de ter razão em muitas das coisas que dissera. − Uma parte da rosa sempre persistirá. Eternamente. – A garota se levantou ao se assegurar que a ferida do guarda já estava completamente selada. Se Killian iria recuperar ou não, só o tempo o poderia dizer. – Antoine Morfrant era viciado em redomas e seria normal querer viver debaixo de uma. A sua obsessão salvou-nos, mas ele não teria razão para nos condenar eternamente a isto. Talvez ele tenha desenhado um meio de escape. – Liberty começou a avançar para a pequena redoma como se estivesse hipnotizada por ela. Elroy franziu as sobrancelhas sem conseguir perceber onde ela queria chegar. − Uma forma de nos dizer quando é que poderíamos regressar ao mundo lá fora. A vida não é eterna e a destruição também não o é. Há sempre algo que fica para trás, um vestígio de esperança para um novo recomeço. Tal como este caule. – A mão da jovem parecia puxada por uma força magnética advinda da planta.
O príncipe se levantou de um salto.
− Espera! – A jovem paralisou no lugar e olhou para o homem que avançava para ela. – Não deves tocar-lhe. O meu pai... − A voz de Elroy emudeceu-lhe e o rapaz evitou olhar para o homem morto no chão ao passar por ele. – O meu pai sempre me disse para nunca tocar na redoma da rosa, para que não a quebrasse.
− Sim, mas talvez porque não fosse a altura certa. A última pétala caiu – comunicou a jovem como se aquilo escondesse uma verdade poderosa. Mas o príncipe não conseguia enxergar aquilo que já era óbvio para ela. – Se isto não passar de um objeto decorativo, nada de mal advirá se lhe tocarmos, certo? Confia em mim.
Elroy anuiu. Ele não confiava em pessoas, no geral, nem nele próprio, mas com Liberty era diferente. Por isso, apenas sorriu quando ela lhe segurou na mão e a conduziu até ao pequeno recipiente, onde minúsculas bolhas circulavam o caule. Cada um deles segurou num lado da redoma e, num movimento síncrono, investindo alguma força, levantaram o objeto, de olhos presos um no outro, crentes em um futuro melhor.
O líquido verteu pelo pilar que sustentava a pequena redoma e as pétalas da rosa se dissolveram em contato com a atmosfera tão especial da província. O caule se manteve hirto no centro, eterno vestígio de esperança.
Aquele não era o fim, mas apenas um novo recomeço para a humanidade.
Chegámos no fim! Ainda temos um epílogo muito fofo que nos contará o que aconteceu com Liberty e Elroy depois deste dia. E irei também trazer novidades.
Espero que tenham gostado do final, mesmo que ele tenha deixado algumas coisas "em aberto". Não me matem por isso kkkkkkkk Eu queria exatamente refletir a questão de que nem sempre um "fim" é um "fim" kkkkkkk É por isso que ficamos sem saber se Gaston e Killian morreram ou não.
Até ao epílogo!
Bjs
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