Capítulo 4 - Receção calorosa
A grande cama já se habituara ao corpo delicado de Liberty, apesar dos poucos minutos de convivência. De braços abertos sobre a maciez do edredom que jazia sobre ela, parecia um anjo envolto de rosadas pétalas soltas, congeladas no branco do tecido. As paredes, estampadas com o mesmo motivo floral, davam um toque fresco e jovial ao quarto, que os dois homens diziam ser o dela. Logo ela, que estava habituada a dormir numa cama dura que partilhava com as suas duas irmãs. Não que ela alguma vez se houvesse queixado disso uma única vez, mas sabia bem receber o conforto da mais bela cama que alguma vez vira na vida.
− Viu? Eu disse que ela ia gostar – sussurrou Lumiére para o companheiro. Os dois olharam para ela sem saber muito bem o que dizer ou fazer, o que só poderia ser um verdadeiro milagre.
− Gostar? Eu adorei – confessou a garota ao sentar-se sobre a cama. Os seus olhos sorriam tanto quanto os seus lábios rosados. – Os quartos daqui são todos iguais a este? – questionou ao passar a mão sobre as cortinas transparentes que ladeavam a cama. Mais uma redoma, pensou um pouco desiludida com a inesperada falta de criatividade daquela gente. O quarto era belíssimo, mas aquele pormenor inquietava-a.
Os dois empregados desataram a rir das suas palavras ingénuas.
− Não, que disparate – respondeu Big Ben ao ver a expressão confusa da jovem. – Este quarto foi decorado especialmente para a receber.
− Por mim – cantou uma voz magnificamente afinada atrás dos dois homens. Uma mulher corpulenta de meia-idade acabava de entrar no quarto ainda de portas abertas. A sua pele parecia refletir a cor de avelã dos seus longos cabelos ondulados. – Foi uma correria para deixar tudo pronto a tempo, mas acho que é a sua cara – explicou num tom, que apesar de falado, ainda trazia algum resto de melodia consigo.
Libby pensou que seria difícil qualquer tipo de decoração naquele quarto não a impressionar, tendo em conta a sua vida modesta, mas resolveu guardar esse pensamento para si. Aquela mulher parecera ter-se dado a tanto trabalho por ela, que não queria deixá-la magoada.
− Obrigada. Está muito bonito.
− Espere até ver os vestidos que tenho para si – cantarolou satisfeita ao dirigir-se ao gigante armário de um tom rosado que preenchia uma parte de uma das paredes laterais.
A futura princesa olhou para as roupas que trazia vestidas.
Qual era o problema do seu macacão?, questionou-se.
− Esta é a madame Nicollete Armoire – apresentou Big Ben demorando o seu olhar nas curvas da mulher reclinada sobre o armário. A mulher parecia ter sido quase totalmente tragada pelo objeto, que era bem mais fundo do que aparentava à primeira vista. Apenas se viam as suas pernas e pouco mais. – Ela será a sua criada de quarto e estará responsável por a tornar apresentável todos os dias. – Lumière deu uma cotovelada ao companheiro, que se apressou a emendar, − Digo, responsável por lhe realçar a beleza natural.
− E poderá cantar-lhe todas as noites para ajudá-la a adormecer, se esse for o seu desejo, mademoiselle – acrescentou Lumière com uma vénia pomposa no final.
− Na verdade, não é – confessou cabisbaixa.
− Entendo na perfeição. Eu próprio acabo por me enjoar do dramatismo exagerado das suas canções – o homem delgado proferiu num tom sussurrado, com a mão esquerda a escudar-lhe a boca.
− Não, eu quis dizer ficar aqui. Não é meu desejo ficar na mansão.
A madame Armoire saiu disparada do profundo armário, que parecera cuspi-la. Os seus braços desajeitados deixaram cair um tecido vermelho cheio de folhos no chão.
− Outra vez com essa história? – indignou-se Big Ben ao lembrar-se do quão difícil tinha sido para a convencer a vir com eles. O cotovelo agulha do seu companheiro voltou a espicaçar a sua proeminente barriga.
− Calma vocês dois. – Lumière avançava no quarto como se dançasse uma valsa lenta. – Ela vai habituar-se à ideia. Assim que conhecer o príncipe, mademoiselle, não vai dizer o mesmo.
− Eu preciso mesmo de ver o príncipe! – confessou debruçando-se sobre os pés da cama. A sua criada de quarto levou as mãos ao rosto num agradecimento mudo, ao interpretar de forma errónea a intenção por detrás daquela necessidade tão urgente da garota. – Onde é que ele está?
Os três criados entreolharam-se de forma suspeita. Eles conheciam a personalidade difícil e imprevisível de Elroy, o encontro dos dois futuros monarcas poderia dar-se esta tarde ou apenas daqui a duas semanas, se assim fosse seu capricho. E o facto de ele não ter vindo receber a futura princesa, não poderia ser bom sinal.
− Quanta ansiedade, – pronunciou por fim a criada, − típico dos jovens. Primeiro, deixe-me tratar de si. – Madame Armoire apanhou o tecido vermelho do chão e ao estende-lo à sua frente, desenhou-se um pomposo vestido no ar. – Venha. Então, não estava com pressa?
Liberty piscou os olhos atordoada com a intensidade visual do vestido. O tecido era tão garrido que fazia lembrar-lhe a cor do sangue. E a quantidade de folhos que o envolvia deixava claro o quão difícil seria movimentar-se dentro de uma coisa daquelas. A moça sabia que os trajes reais eram muito distintos dos trajes negros do povo. Já vira a rainha aparecer na televisão com sedosos e coloridos tecidos a envolver-lhe o corpo feminino. A maioria transformada em vestidos justos ao tronco, que caiam numa larga redoma à volta das pernas. Aquele que a criada pretendia que ela vestisse tinha também esse formato, mas era mil vezes mais vistoso.
Para não fazer a desfeita à mulher simpática que a encarava, a futura princesa levantou-se da cama e caminhou até ao vestido que não queria ter de usar. Madame Armoire, com um sorriso a inundar-lhe o rosto bem composto de carne, colou o tecido ao corpo ainda vestido da moça. Liberty olhou para baixo e não se imaginou dentro daquela exuberância toda.
− Ela já chegou e vocês não me disseram nada – ralhou uma mulher de traços ternurentos ao entrar no quarto. Ao passar entre Lumière e o companheiro, a sua estatura baixa foi realçada, sendo ainda mais pequena que Big Ben. Talvez nem tivesse um metro e meio de altura. – Mas ela é ainda mais bela ao vivo – comentou de mãos vincadas na sua cintura bem redonda. O avental negro que trazia vestido pareceu ficar ainda mais justo com o movimento. – Venha cá, minha querida, deixe-me abraçá-la.
Liberty saiu de bom grado de detrás daquele vestido encarnado que madame Armoire ainda segurava no ar. E quando chegou junto da recente chegada foi sugada num abraço forte por que sempre sonhou receber desde a morte da sua mãe, há 10 anos atrás. As mãos pequenas da mulher afagavam-lhe o fundo das costas e a sua quente respiração aconchegava-lhe a pele do braço. A jovem decidiu entregar-se por completo àquele momento inesperado, evolvendo também ela os seus braços em torno do corpo reconfortante daquela estranha.
− O meu filho avisou-me que já tinham chegado, mas eu não acreditei – acrescentou a mulher ao separar-se da rapariga. – Pensava que assim que chegassem fossem diretos para a cozinha. A Liberty, − a futura princesa deu um pequeno solavanco ao ouvir o seu nome ser pronunciado pela primeira vez naquela casa, − deve estar esfomeada, por amor de Deus! – A sua gentil mão embateu no braço de Lumière como se esta estivesse a sacudir-lhe o pó.
O estômago da jovem emitiu a resposta por ela.
− Pobrezinha! − A mulher atenciosa afagou-lhe o rosto. – Vou já tratar disso. – Ela voltou costas a Libby antes que esta pudesse sequer agradecer. Mas ao chegar à porta, pareceu lembrar-se de algo, estacando. A sua figura redonda virou-se para os dois homens parados lado-a-lado, − E vocês o que estão aqui a fazer de braços cruzados? Venham ajudar-me!
− Sim, madame Potts – concordaram os dois em uníssono, seguindo logo de seguida atrás dela.
− Obrigada – gritou Liberty para os três, mesmo antes de os ver virar na curva do longo corredor.
− E agora, onde estávamos nós? – questionou a criada de quarto balançando o vestido vistoso à sua frente.
Liberty não sabia se havia de rir ou de chorar com os folhos saltitantes do tecido.
A futura princesa teve direito à melhor refeição que já comera em toda a sua vida. Nas sete aldeias, eram distribuídas, em todas as casas, rações secas semanais em quantidade suficiente para alimentar todos os membros da família. Ninguém passava fome, mas também ninguém comia mais do que o necessário para a sua sobrevivência. O sabor não importava, era apenas um pequeno pormenor. E Liberty não podia queixar-se, ao menos as refeições em sua casa não sabiam mal. No entanto, o almoço na mansão tinha ultrapassado todas as suas expectativas.
Quando a madame Potts trouxe um tabuleiro e o repousou no colo da jovem, ela limitou-se a encarar o prato fumegante de sopa como se estivesse a analisar uma obra de arte. O cheiro delicioso rapidamente preencheu-lhe as narinas e isso foi incentivo mais do que suficiente para mergulhar a colher, que parecia ser de prata, no líquido de tom esverdeado. Só depois de engolir o conteúdo e gemer com o prazer que a sopa lhe proporcionara, começou a ponderar se aquele tom verde se devia à relva por que passara antes de entrar na mansão.
Comeu a sopa toda num instante, mesmo com as advertências da mulher mais velha de que se poderia queimar de tão quente que estava o alimento. Ela pouco quis saber, e só depois se apercebeu que o seu céu da boca parecia começar a escamar-se. A mulher propôs trazer-lhe mais um prato cheio de sopa e ela não conseguiu recusar a oferta generosa, mas antes quis certificar-se de que não acabara de comer pedaços de relva. Madame Potts riu de forma contagiante com a sugestão inesperada e apressou-se a garantir-lhe que o que havia comido não era relva, mas antes couves. Liberty não sabia o que isso era, mas decidiu que mesmo que tivesse acabado de comer relva, não se importava minimamente, porque o seu estômago sorria pela primeira vez em dezoito anos. Se a sua irmã soubesse disso, aí, sim, morreria de inveja.
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