Capítulo 39 - Ponta solta

Liberty não conseguiu reprimir a desilusão que sentira ao entrar na sala, mas nenhum dos ocupantes percebeu sequer a sua entrada. Babette estava acocorada atrás de um dos sofás. Uma das alças do vestido rasgada e os seus longos cabelos castanhos, quase negros, soltos, ao contrário do habitual. Ela espreitava a medo o que se passava do outro lado da sala. Se há poucos minutos receara por sua própria vida e integridade física, naquele momento, afligia-a perder o seu mais que tudo. Um medo que era infundado, já que o namorado estava em total controle da situação.

Lumière sorria enquanto apertava o pescoço de um homem que se debatia, mais fora do que dentro da sala, com as pernas a espernear no ar. A janela segurava o invasor e a noite parecia desejosa de o tragar. A luz do espaço permitia ver as cores arroxeadas que seu rosto ia adquirindo.

− Estou apertando com demasiada força? – questionou irónico o criado. – Você quem sabe!

As mãos de Lumière se estenderam no ar e o homem, com o desequilíbrio inesperado, caiu da janela abaixo. Um estrondo, seguido de um queixume alto, irrompeu no ar um segundo depois.

− Pena que não estamos no segundo andar – proferiu o criado olhando para o intruso se levantando a custo. – Quando a mulher diz não, é não, seu porco! – Mirando no alvo, ele cuspiu. A saliva escorreu pelo escasso cabelo do homem lá em baixo.

− Meu herói! – Babette correu para os braços do namorado e o abraçou forte. Percebendo que este se retesava um pouco, ela se afastou e analisou os ferimentos que percorriam todo o lado esquerdo de Lumière. O vidro cortara-o em inúmeros locais diferentes, quando ele e o intruso, agarrados um no outro, embateram na janela, estilhaçando-a por completo. – Pobrezinho! Eu vou cuidar de você.

− Você está bem, meu amor? – O criado olhou fundo nos olhos da garota e esta sorriu enternecida como resposta.

Felizmente, Lumière tinha chegado mesmo a tempo de impedir uma desgraça. O plebeu tinha acabado de se acercar da moça, rasgando-lhe a alça do vestido e puxando-lhe o atilho que prendia o cabelo, no momento em que o criado chegara à sala.

Os dois apaixonados se beijaram, se amparando no conforto um do outro.

Liberty limpou a garganta incomodada por ter de estragar aquele momento, mas não havia outra opção. Aquela cena lhe tinha alimentado a esperança que quase se esvaíra completamente por seus poros.

− Mademoiselle! – Lumière cambaleou na direção de Libby. O ferimento na perna esquerda era fruto da batalha na entrada, não do confronto mais recente para salvar a namorada. Por pouco, ele e Big Ben não escapavam com vida, esmagados pelo aglomerado de invasores. Por estarem vestidos de negro, se camuflaram entre a multidão e isso garantiu-lhes não terem de lutar, mas não os preveniu das mazelas. – Ele corre grande perigo! Eles vieram para o matar! Eu deveria ter ido com ele, mas... − As palavras saíam atropelando-se umas às outras, enquanto o criado avançava morosamente com o peso da culpa dificultando os movimentos. Ou seria dos ferimentos que trazia no corpo? − Eu...

− Tudo bem, Lumière – tranquilizou-o Liberty. As mãos da garota agarraram nas do criado. − Só me diz onde ele está.

− Eu não sei. Nós estávamos indo para a sala... − O criado se calou e a olhou preocupado. O príncipe tinha-lhe contado da grande revelação que resolvera fazer à prometida. Lumière não tinha ficado nada satisfeito com a decisão imprudente. Não lhe parecia o mais correto fazer uma frágil moça passar por isso. No entanto, Liberty era tudo menos frágil e estava ali disposta a enfrentar um exército inteiro de homens furiosos e descontrolados só para salvar Elroy e, eventualmente, toda uma nação.

A garota anuiu e saiu disparada. Aquilo era suficiente para ela saber onde tinha de ir.

− Obrigada, Lumière! – gritou ela, antes de desaparecer no corredor.

Quinze minutos antes

Um corredor que havia sido construído para encaminhar futuros monarcas até a uma dor atroz, não poderia ser igualmente uma passagem para a salvação. Ou poderia? Eram esses os devaneios do príncipe, naquele momento, ao ser escoltado, junto com seus pais, até à sala de tortura. Os passos, ele não os contava, mas desejava que não fossem 107. O número nunca era bom agoiro.

− Não estavam pensando fazer uma festa sem mim, estavam?

O estranho círculo com brechas estacou. A voz que chegou a eles fez até Killian, o mais compenetrado dos guardas, gelar no local. Mas a sua velocidade de pensamento permitiu-o readequar a estratégia numa questão de poucos segundos.

− Perfilar! – ordenou para os sete guardas. Os homens de branco abandonaram suas posições e formaram uma linha contínua na frente da família real. Killian deixou-se ficar para trás, esperando a melhor oportunidade para prosseguir com sua missão. Seria demasiado arriscado correr para a porta com a realeza tão exposta a projéteis afiados de metal.

Gaston largou o dispositivo eletrónico que o havia trazido até ali e ele se estilhaçou ao embater no chão. Os vinte homens na sua retaguarda se sobressaltaram com o barulho. A insegurança criava monstros nas sombras dos guardas. As mãos dos invasores apertaram fortemente as barras metálicas.

Keandre Morfrant fitou os resquícios do objeto e logo concluiu que havia um traidor debaixo de seu próprio teto. A selecionada, a resposta apareceu-lhe na mente como uma faca afiada encostada ao pescoço. Suas suspeitas tinham servido de pouco e ele acabaria por pagar o preço de sua inação.

− Nós estamos em maior número – comunicou Gaston, analisando as presas que se escondiam atrás do muro de homens. – Vamos evitar mais derramamento de sangue inevitável, se entreguem de uma vez! – A rispidez das últimas palavras do republicano fez o sangue do monarca ferver.

− Nunca! – bramou Keandre, dando um passo em frente. Killian teve que optar por deixar mãe e filho, e se colou ao rei. − Villeneuve nasceu para ser uma monarquia. Sem mim, a província perecerá!

LeFou sentiu suores frios com aquilo que lhe pareceu ser uma maldição. Ele já teria fugido há muito, não fosse Gaston tudo o que lhe restava de bom na vida. Deixando o amigo para trás, ele estaria traindo-se a si próprio.

− Engraçado – falou Gaston, mas seus lábios se curvaram no sentido exatamente oposto ao esperado para um sorriso. – A mim me parece que tudo em que você toca é que apodrece. – O republicano deu dois passos à frente, calcando, sem remorsos, o aparelho desfeito. A linha de guardas se colocou hirta, pronta a entrar em ação, mas não avançariam sem um sinal de Killian. – Não é assim, Florianne?

A rainha despregou, por fim, os olhos do chão, recém acordada de seu estado letárgico. Seu nome havia sido lançado ao ar como uma bomba, sem preparação ou doçura.

− Como se atreve a se dirigir à sua rainha nesse modo, garoto?! – As palavras foram arremessadas em resposta pelo homem, que sem a coroa, parecia tão humano e frágil como qualquer outro. Sua pose altiva, porém, era a de alguém que se recusava a dar como vencido.

− Eu posso, não é, titia?

Primeiro, veio o atordoamento generalizado. Depois a repulsa surgiu do lado do corredor onde estavam os monárquicos. "Titia" era uma denominação que já nem se poderia considerar apenas informal, mas antes ofensiva. E mesmo os republicanos atrás de Gaston admitiam internamente que a jogada tinha sido suja e desnecessária. Foi Florianne a primeira a perceber que a palavra carregava em si uma verdade esquecida no passado distante.

− Não é, titia? – repetiu com seus olhos presos nos dela. A rainha expirou o ar pesado que inalava. – Vocês não sabem, mas eu tive um forte motivo para procurar os republicanos e me querer juntar a eles – explicou, se voltando para trás. Taupe e Lefou receberiam a notícia juntamente com a família real e isso não lhe parecia justo, mas nunca tinha tido coragem de contar seu segredo mais profundo a ninguém, nem mesmo aos seus dois melhores amigos. Ele esperou que um olhar fosse suficiente para que estes o desculpassem.

Killian calculou que aquela era a brecha por que procurava. Porém, o rei conseguiu perceber seus movimentos e agarrou no pulso do guarda, travando-o a tempo. O monarca sabia que a melhor forma de derrotar um inimigo era saber suas fraquezas, e Gaston, ingénuo, parecia a ponto de as entregar de bandeja.

− Pouco depois de Elroy nascer, a rainha Florianne começou a aparecer em entrevistas com um semblante carregado. – Era a vez do príncipe sentir sua curiosidade espicaçada. Elroy não botava fé de que aquele homem, pouco mais velho do que ele, pudesse saber algo sobre suas origens que ele próprio já não soubesse, mas ainda assim, se sentia enfeitiçado pelo que ouvia. − Mais cabisbaixa, como se as forças lhe tivessem sido sugadas. Sua vivacidade completamente eclipsada. – A culpa corroeu o coração de mãe e filho. Mas se a primeira não tinha escolhido fazer parte da monarquia, o segundo não tinha sequer escolhido nascer. − Muitos defendiam que era o resultado de um parto difícil, − continuou Gaston, completamente embebido nas suas próprias palavras. − Outros que ela simplesmente não tinha o dom para ser mãe. Contudo, quem a conhecia estava atento o suficiente para saber que tudo fora um processo gradual e o nascimento do herdeiro Morfrant uma última peça instável que deitara abaixo toda a torre. Ela tinha deixado família para trás, pessoas que a amavam e que viam o seu sofrimento carimbado no rosto. – Gaston engoliu em seco. Tantos anos guardando dentro de si as palavras, que elas, agora, lhe queimavam a garganta. − Mas o rei não viu com bons olhos quando a irmã e o cunhado da rainha ameaçaram criar um complô contra ele e decidiu que era mais fácil matá-los.

A rainha olhou escandalizada para o marido, que preferiu ignorá-la como de costume.

− Eles cometeram injúria contra o rei! – Keandre defendeu-se. Não que lhe importasse o que o filho ou a esposa estavam a pensar dele naquele momento. A sua única determinação era sair dali com vida. − O crime é punido com a morte. A Jasmine me acusou de estar cometendo violência doméstica! Eu nunca levantei um dedo contra a minha mulher!

− A Jasmine... − Gaston repetiu o nome com amargura. Doera-lhe na alma só de ouvir o rei pronunciá-lo como se tivesse direito a tal. − Era minha mãe!

Óbvio que era! Já não tinha o rei recebido pistas suficientes? Talvez ele não fosse tão astuto como sempre se julgara. Mas em contrapartida, todos pareciam tão atordoados quanto ele, a não ser Florianne, que olhava o sobrinho com ternura. A última vez que o vira, ele ainda era um bebê, não seria capaz de o reconhecer passados tantos anos. Se bem que ele tem o olhar de falcão de outrora, divagou Florianne em pensamentos, enquanto se agarrava mais uma vez ao passado.

– Eu sou a ponta solta que deixou para trás, TIO. – Aquela forma de tratamento magoava-os aos dois, mas Gaston estava esperançoso de que fosse o ego do rei a sofrer mais com a situação. – No fim, sempre fica uma ponta solta.

− Me deixem falar com o meu sobrinho – pediu a rainha se aproximando da linha cerrada de guardas. Sem sinal afirmativo de Killian ou do rei, os homens não se moveriam nem um milímetro sequer. Elroy ficou para trás, estático no lugar, sem conseguir processar tudo aquilo. – Ele não me vai fazer nada que eu não permita – garantiu, tentando abrir uma brecha forçada entre dois dos guardas. Mas os homens pareciam colados um ao outro.

− Ela que vá – proferiu Keandre decidido. Na sua cabeça retorcida, ele via a atitude da esposa como uma traição. Florianne, mais uma vez, parecia preferir a família a ele.

Os guardas cederam às investidas da rainha e abriram espaço para permitir apenas a passagem de seu corpo delgado. Apesar de lhe apetecer correr, ela sabia que tinha de ser contida nos gestos, para que nenhum dos lados agisse precipitadamente.

No curto, mas ao mesmo tempo tão longo, caminho, Florianne olhou uma única vez para trás. O destino de sua atenção era um só, o filho. Ela queria poder dizer-lhe que o amava, que sempre o amou, mas não conseguiu. Esse era o problema dela, ela nunca conseguia. Sempre se calava, escondia, aceitava. Ela era boa nisso, a se anular. A fingir que a vida não lhe pertencia. Não era de espantar que ela voltasse a fazê-lo, naquele momento.

− Meu querido sobrinho!

A mulher abraçou o homem forte que não conhecia, mas que sabia ter parte dos genes da sua amada e única irmã. Tê-lo pegado ao colo algumas vezes não contava como uma relação íntima. Porém, ele era a ligação mais concreta que tinha com um passado onde fora feliz. De alguma forma, morrer ali, nos braços do descendente de Jasmine, se afigurou para ela como um fim digno e um caminho para a paz. Como se o garoto fosse um elo, um portal mágico, que a levasse para fora do terror daquela mansão e para mais perto de sua essência.

Florianne se colocou nas pontas dos pés e trouxe a cabeça do sobrinho para mais perto da sua.

− Me mata – implorou ela ao ouvido de Gaston. Um simples sussurro que o levou a duvidar da sua sanidade. – Me mata... Me mata... Me mata... − ouviu uma e outra vez, num desespero crescendo, que os dois já partilhavam. Estranhamente, aquilo o fez lembrar de uma canção de ninar. Como se a tia o estivesse a tentar fazer dormir. Mas o que ela lhe pedia era precisamente o contrário. A rainha recordava-o do motivo por que ali estava, da sua missão. Florianne tentava despertá-lo.

O corpo da mulher ocultava os movimentos discretos de Gaston e os guardas não conseguiram antever o objeto afiado que o republicano trazia no bolso das calças. Ele havia encontrado uma pequena navalha escondida atrás do balcão do bar, que Emmanuelle costumava usar para abrir caixas do pequeno armazém.

Sendo um assassinato, não se seria de esperar que a vítima afastasse seu ventre para dar espaço à arma de lhe perfurar os órgãos internos. Mas aquele não era um crime qualquer, nem, muito menos, uma morte qualquer. A rainha só rezava para que o sobrinho fizesse bem o trabalho e que tudo não fosse demasiado doloroso. Aquilo era um sacrifício pelos outros, mas também um pouco por ela. Seu egoísmo não conseguia ficar de lado, nem naquele momento. O jovem Côté inspirou a essência que emanava dos cabelos loiros da tia, antes de espetar a navalha. O cheiro era doce e intenso e ele ficaria gravado para sempre na sua memória. Ou, pelo menos, até à sua morte. Ele não sabia, nem poderia sabê-lo, mas apenas uma flor tinha aquele cheiro. O jasmim marcá-lo-ia, inevitavelmente.

As convulsões do corpo da esposa do monarca foram o sinal de alarme para os guardas. Só aí eles perceberam, mas Killian viu mais além. Ele lamentou a morte de sua rainha, porém seus olhos estratégicos viram a oportunidade que a mulher sabiamente havia criado para eles. "Ele não me vai fazer nada que eu não permita", Florianne havia dito e o guarda não percebera na altura. Se as suspeições dela e as de Killian estivessem corretas, os republicanos, já fragilizados por todas as questões recém-descobertas, ficariam escandalizados por Gaston ter morto a própria tia que, para todos os efeitos, apenas queria um abraço do familiar perdido. Os dois estavam longe o suficiente para que ninguém tivesse percebido o que segredava a mulher ao ouvido do sobrinho. Bastavam uns bons segundos de atordoamento para dar à guarda real a vantagem de que precisavam para conseguir salvar o príncipe e o rei.

O sangue começou a ser expelido pela boca que se abria e fechava sobre o ombro de Gaston. Killian viu, então, na expressão dos homens de negro, que o seu momento de agir tinha chegado.

− Vamos! – O guarda ordenou ao rei, suas posições temporariamente trocadas. Mas o monarca apenas agiu em modo automático, voltando costas à esposa, aparentemente, assassinada. Com o príncipe, foi preciso ter um pouco mais de trabalho. – Vamos! Temos de ir agora! – Porém, Elroy fincava os pés no solo, não se deixando ser levado pelo guarda. – Sua mãe fê-lo para o proteger – explicou, olhando alarmado para o outro lado do corredor. Gaston não parecia afetado por ter o corpo da tia a desfalecer nos seus braços. Seus olhos se cruzaram com os do guarda e Killian conseguiu perceber que as probabilidades de sucesso desciam vertiginosamente. – A morte dela não poderá ter sido em vão.

O futuro monarca decidiu acreditar nas palavras do homem que trabalhava para seu pai. Também trabalhava para ele, claro, mas Elroy não confiava facilmente nas pessoas, principalmente em guardas. Contudo, no seu íntimo, começava a dar sentido ao último olhar que a mãe lhe havia dirigido. Ao mesmo tempo que suas pernas se moveram para longe dali, uma lágrima ganhou força e irrompeu solitária sob a forte luz que outrora tentara reclamar sua alma.

Apressado, Gaston deitou a mulher no chão. A irracionalidade do gesto era explicada pelos remorsos que lhe formigavam o corpo. Já que querendo matá-la, não havia motivo para tais cuidados. Dentro dele, se travava a maior das batalhas, mas seria difícil, se não mesmo impossível, ele recuar, naquele momento, depois de anos sofrendo em silêncio com seus fantasmas.

− Ataquem! – bramou para trás ao ver os imbecis, que tinha trazido consigo, de braços cruzados. Até os seus melhores amigos se limitavam a olhar entorpecidos. – É a nossa vida que está em causa, neste momento! – relembrou. Já que se a república não vingasse, todos os invasores teriam o mesmo fim trágico. – Ataquem!

Guardas e republicanos fizeram daquele corredor um novo campo de batalha, enquanto Lefou e Taupe seguiam apressados atrás de Gaston, passando incólumes pelos espaços vazios.

Este é o penúltimo capítulo, espero que estejam a gostar destas últimas emoções finais. Alguém suspeitou que Gaston tivesse mais alguma motivação para além das já reveladas? Pois é, ele parece uma verdadeira caixa de surpresas. O que será que ele vai aprontar no fim da obra?

Não tarda nada chegará o último, vou tentar terminá-lo entre hoje e amanhã. 

Até lá.

Bjs.

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