Capítulo 38 - Prioridades
A porta da casa estava totalmente aberta, permitindo vislumbrar o interior, mesmo antes de se entrar. Os quadros jogados no chão, alguns partidos na metade, outros completamente estilhaçados, fizeram Liberty sentir que não havia esperança. Aqueles homens, aqueles monstros, atacavam qualquer coisa que lhes aparecesse à frente. Estavam totalmente descontrolados e dificilmente alguma coisa ou alguém seria capaz de os travar.
Aos seus ouvidos chegavam gritos animados vindos do andar de cima. Ela podia sentir o embate de inúmeros pés contra o chão, como numa dança assíncrona e grosseira, intervalado pelo som de móveis a serem arrastados.
O cheiro acre do sangue irrompeu-lhe pelas narinas em reconhecimento de uma lembrança desagradavelmente recente. Junto às escadas, cinco guardas jaziam amontoados, sobre uma vasta mancha escarlate. E Liberty achou irónico que o longo e requintado tapete continuasse ali, imaculado, parando apenas a alguns centímetros da poça de cor vívida. Era como se o sangue tivesse temido marcar definitivamente aquela peça de arte, com dó de todas as outras que já tinham sido destruídas naquele espaço.
A imagem de Elroy embebido em sangue no chão do próprio quarto veio à mente da jovem. Tão vívida que a deixou atordoada por uns segundos. Mas não adiantava de nada sofrer em antecipação, quanto mais tempo ela demorasse, menos hipóteses haviam de encontrar o príncipe com vida.
Sem saber para onde se dirigir, ela apenas seguiu seus instintos. Avançaria até os sons da confusão que se alastravam pelo segundo andar da mansão. Porém, um ruído estridente, de vidro a ser quebrado, a fez estacar junto aos guardas mortos na base das escadas. Alguém estava lá em baixo junto com ela, provavelmente, na sala de estar, já que o barulho não parecia muito distante. E se o exército parecia todo concentrado lá em cima, quem teria ficado para trás?, o pensamento desafiou Liberty.
Contrariando toda a racionalidade, a jovem voltou atrás e se dirigiu para o corredor que dava acesso à sala de estar.
Vinte minutos antes
Elroy conseguiu ouvir os grunhidos e gritos do exterior a se aproximarem cada vez mais. A mansão estava a ser invadida e ele continuava deitado na cama, segurando contra o peito o livro em que ela havia tocado. O livro poderia ter sido o seu preferido antes dela entrar na sua vida, mas, naquele momento, as palavras de Antoine de Saint-Exupéry significavam tão mais.
O príncipe havia aprendido a amar e a ser amado apesar de qualquer ferida que lhe marcava o corpo e a alma. Havia conhecido a sua rosa, estimara-a e protegera-a, e ela dera-lhe tanto em troca, mesmo que ele não exigisse ou esperasse por tal coisa. Nas últimas semanas ele tinha conseguido viver verdadeiramente graças a ela. E foi por nutrir um sentimento tão profundo que vincava as suas raízes no seu coração dilacerado, por anos de tortura, que ele teve de a deixar ir.
Sentia-se derrotado, sem forças para se levantar daquela cama, ao saber que ela nunca mais leria para ele, que nunca mais partilhariam uma refeição, que nunca mais poderia ver o seu rosto de anjo ou tocar na sua pele de seda. Sentia que aquele poderia ser o seu fim. Ele já tinha tido a oportunidade de vida por que sempre ansiara. Poderia ter sido breve, mas valera cada pequeno segundo gasto. Qualquer segundo, dali em diante, seria apenas um vazio infinito que o magoaria como nada até então. Talvez fosse melhor mesmo deixar-se ficar ali, à espera.
A porta do quarto abriu de rompante e o futuro monarca nem pestanejou.
− Mestre, estão invadindo a mansão! – alertou Lumière. Seus olhos se abriram em espanto ao ver o homem simplesmente deitado, fazendo pouco de suas palavras. – De certo, são republicanos e só vão parar quando a família real estiver toda morta! – Elroy suspirou enquanto abria o livro na página marcada. − Eles estão matando os guardas!
− Deixa-os vir.
O príncipe pegou na rosa espalmada que caiu sobre o seu peito. As pétalas se mantinham suaves mesmo depois de aprisionadas dentro das páginas do livro. Veio à memória de Elroy a primeira vez que beijara os lábios vermelhos e macios da sua ex-prometida. Não se tinham passado nem 48 horas, e Elroy já suspirava como se tivesse perdido a companheira de uma vida inteira.
− Não me parece que morrendo resolva alguma coisa. – O criado, irascível, avançou até à cama. Seus braços se balançavam no ar como se estivesse a marchar. A batalha poderia estar acontecendo no jardim, mas, ali, naquele quarto, Lumière teria de vencer uma outra batalha ainda mais premente, onde sangue algum teria de ser derramado. – Se morrer, ela vai sofrer – argumentou com os ânimos controlados. A imagem de seu patrão agarrado a uma simples rosa esmagada comoveu-o.
As palavras pareceram, por fim, ter algum efeito em Elroy, que levantou o rosto para Lumière.
− Se tudo o que quer é poupar o sofrimento de Liberty, terá que viver. – Elroy engoliu em seco. Ele não sabia o que lhe doía mais, se a ideia de ter de viver sem o grande amor de sua vida, se a constatação de que, fizesse ele o que fizesse, sempre a acabava magoando. – Lute por ela.
Talvez não fosse o motivo mais correto. As pessoas deveriam querer manter-se vivas por si mesmas. Mas a culpa era de quem tinha feito o ser humano um ser social. A necessidade de cuidar do outro era instintiva, tal como em muitos outros animais antes da Redoma. Também a agressividade o era e isso explicava, em parte, o comportamento irracional dos homens lá fora. Em parte, porque ao Homem tinha, igualmente, sido dado o livre arbítrio e o controlo sobre as suas próprias ações. Elroy ter-se levantado da cama e seguido lado a lado com o criado era uma escolha dele, tal como era uma escolha dos homens lá fora tragar a vida de tantos inocentes.
A rosa e o livro ficaram esquecidos para trás, sobre a cama vazia.
Os degraus vibraram com a quantidade de pés que os pisavam. Mal eles sabiam que aquilo não era nada comparado com o que os esperava daqui a míseros minutos. Um círculo de homens fardados de branco escudava a família real, sem deixar qualquer brecha visível. Lumière seguia ao lado, sem ter direito a qualquer tipo de proteção, que não suas próprias mãos e pés. Sua agilidade nos movimentos teria de ser suficiente para garantir a manutenção de sua vida. Afinal de contas, a família real era o que verdadeiramente importava ali. Pobres dos criados, que ficavam entregues à sua própria sorte.
− Já fechei a cozinha – informou Big Ben ao aparecer afogueado na base das escadas. O medo transparecia de forma evidente no seu rosto, mas sua competência sempre se sobressaía. – Os criados estão a salvo.
Babette surgiu atrás do mordomo e Lumière revirou os olhos.
– Eu tentei – acrescentou encavacado, com as mãos voltadas para o teto.
Na verdade, não tinha sido apenas a teimosia de Babette em ficar onde o namorado estivesse o único obstáculo à simples tarefa a cargo do mordomo. Madame Potts e Nicolette Armoire pareciam igualmente irredutíveis. Cada uma com suas próprias motivações. À criada de meia idade já se esperava tal atitude, tendo em conta o perigo em que seu filho de criação se encontrava. Do outro lado, Nicolette mantivera suas intenções ocultas de todos, e ninguém a ouvira suspirar quando Big Ben fechara a porta, correndo na direção da morte. Mas o mordomo soubera. Uma tragédia poderia trazer à tona segredos e sentimentos ocultos. E esse era claramente o caso. Momentos antes de a porta da cozinha ser fechada, os dois tinham trocado um olhar intenso que dizia tão mais do que as infinitas palavras que eles já haviam trocado sob aquele mesmo teto. E talvez Babette tivesse sido insensível, ou apenas tão cega como os restantes criados, mas aproveitara essa distração momentânea para escapar mesmo a tempo do enclausuramento forçado.
− Mon cher! – Lumière desceu os restantes degraus de dois em dois, tal era a pressa em chegar lá abaixo. – É perigoso, aqui. – Ele abraçou a namorada e sussurrou-lhe ao ouvido palavras doces dissonantes com os barulhos de guerra que chegavam do exterior.
O rei bufou indignado com a demonstração de afeto entre a criadagem. Não fosse a situação de crise em que se encontrava, teria repreendido os dois. Aliás, teria aproveitado para descompor ainda o mordomo que tivera a ousadia de perder o seu tempo tentando colocar a salvo meros criados ao invés de seu rei. Porém, não fosse a situação de crise, também os criados não estariam arriscando tanto. Quando a vida é colocada em causa, outros valores mais altos se levantam. Naquele momento, tudo o que menos importava era a opinião do monarca.
Uma tempestade de homens atravessou as portas da mansão deixando o círculo de guardas vulnerável. Killian agiu como um trovão, comandando cinco homens a formarem uma barreira, que ainda que frágil, seria a única hipótese de travar o avanço dos republicanos a tempo de levar a família real para longe dali. O guarda era jovem, mas mostrava uma capacidade impressionante de agir sob situações de stress e, na ausência do chefe da defesa real, ele assumira o papel de líder, por iniciativa própria. Killian não sabia, porém, o chefe, naquela altura, jazia morto no jardim.
− Vamos, rápido – ordenou Killian para os seus companheiros do círculo interrupto.
− Vai com eles – pediu Lumière para a moça que fincava as unhas nos seus braços. Ela tremia a cada investida dos republicanos sobre os cinco guardas solitários na frente do corredor. – Vai! – Ele a empurrou ao ver um dos homens trespassar o frágil cerco montado com menos de meia dúzia de homens. – Esconde-te na sala de estar – sugeriu, alternando o olhar entre ela e o plebeu que corria para ele.
A criada hesitou, mas ao ver a face do invasor contorcida pela ira, um temor agigantou-se dentro dela. Só lhe restava fugir, já que seu cérebro não conseguiu processar uma melhor opção.
Escudando a namorada, Lumière correu para cima do homem. O metal acertou no lado esquerdo do abdómen do criado, sem o perfurar, mas fazendo-o retesar-se de dor. Quando a barra foi atrás, no ar, para ganhar balanço, Lumière recuperou o equilíbrio e se atentou na trajetória do objeto. Foi fácil para ele antever o próximo ponto de embate e seu corpo se moveu agilmente, fazendo o metal cortar o ar. Com o republicano desnorteado, o criado aproveitou a sua altura para dar uma cabeçada nele. Os crânios colidiram de forma dolorosa para os dois. Se ambos sobrevivessem, um alto incômodo surgiria na testa de cada um com o nascer do sol.
Enquanto os dois homens se agarravam ao orgulho para evitar pronunciar qualquer queixume, a arma se manifestou, despreocupadamente, ao colidir com o chão.
Do outro lado, Big Ben era encurralado por dois republicanos armados. O mordomo tentava encolher seu corpo robusto contra a parede e isso apenas pareceu animar ainda mais os atacantes, que riam cumplicemente um para o outro. O mais alto acenou com a cabeça dando permissão para o outro avançar. Ele aguardaria pacientemente pela sua vez de fazer o criado pagar por sua submissão cega à monarquia.
Big Ben foi levantado no ar pelos colarinhos, fazendo-o guinchar. O republicano não era especialmente alto, mas era encorpado graças ao trabalho físico que lhe era exigido na manutenção e recuperação de máquinas.
− Olha o que eu achei! – O republicano falava para o amigo. – O lambe botas do rei! – Os homens riram-se jocosos e o mordomo começou a rezar baixinho. Sua fé era a única coisa que o impedia de sucumbir. − É esse o teu trabalho, não é? Responde! – bramou, sacudindo-o violentamente.
Os sussurros sem sentido de Big Ben começaram a irritar o invasor. As mãos fortes do homem se abriram no ar e o mordomo se estatelou contra a parede. O osso do ombro direito saiu do lugar com o impacto e a dor deu fim às preces murmuradas.
Um punho foi preparado no ar, mas num movimento estranhamente precipitado, acabou acertando na parede ao invés de no rosto redondo de Big Ben. E todo o corpo do republicano foi projetado atrás deste, se esborrachando na superfície dura, já que os reflexos do mordomo foram suficientemente rápidos para se desviar. Na verdade, o mordomo havia visto a expressão furiosa de Lumière atrás do seu atacante e previra aquele desfecho. O amigo era o anjo da guarda por que ele havia chamado. Ou talvez se ele não tivesse pedido por nada, o criado chegaria à mesma para o salvar. Sob os comandos de Deus ou da pura sorte, não interessava, o importante ali era que Lumière tinha chegado a tempo de evitar o pior.
O republicano mais alto ajudou o amigo a se recompor. As dores levaram-no a encarar a situação com outros olhos. Isso e o fato de agora serem dois contra dois. A vantagem comoda havia se desmoronado, juntamente com um de seus dentes da frente.
− Não importa! – protestou o homem recentemente desdentado. Os dentes do lado da estranha cavidade estavam salpicados de sangue. – Deixa-os aí para serem dilacerados pelos outros. – O riso foi sombrio e contagiou o amigo que segurava nele.
Os dois saíram a correr na direção das escadas, seguindo o republicano que ainda cambaleava pela dor de cabeça que Lumière lhe havia provocado. Os três republicanos tinham esperança de encontrar a monarquia lá em cima, nos seus aposentos reais, Porém, suas intenções sairiam frustradas. Não seriam eles a ter esse gosto.
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