Capítulo 37 - Luz e trevas
A sombra em movimento se mesclava na escuridão da noite. Seus cabelos, sem luz, balançavam no ar, mesmo que ao seu redor não houvesse nada, não houvesse ninguém. Nem a mais pequena brisa se fazia sentir naquela noite de breu. A luz que a lua roubava do sol para se iluminar, era apenas suficiente para definir recortes pouco definidos da mansão ao longe.
O suor escorria pela pele quente da moça e as roupas negras começavam a colar-se-lhe ao corpo. O desconforto da humidade e o cansaço lutavam contra Liberty. Porém, ela apenas continuava a correr. Corria de cabeça erguida, com o coração cada vez mais descompassado. A ansiedade e o receio eram seus piores inimigos no momento. Não ter encontrado nem uma viva alma no seu percurso pelas aldeias, apenas servira para a aterrorizar ainda mais.
A corrida tinha sido longa, mas ela não abrandara uma única vez sequer, num caminho que seguia quase sempre a direito. A inclinação do único vale de Villeneuve, onde repousava a sétima aldeia, tinha sido especialmente difícil de percorrer a pé, mas, naquele momento, ultrapassado o pico, e deixando as casas brancas para trás, era sempre a descer. As ervas pontiagudas pareciam um mar de finos dedos que lhe roçavam nas pernas a fim de a fazer travar. Mas nada seria capaz de a demover.
O declive não era acentuado e a terra seca ajudava a firmar ao solo os sapatos gastos da jovem. A ação da gravidade se aliava a ela naquela ânsia de impedir Gaston e seus homens de cometerem um erro abissal.
A luz artificial dos candeeiros do jardim da mansão saudara Libby muito antes desta se acercar da muralha imponente. O portão completamente aberto permitia livremente a saída daquela claridade contrastante com a escuridão exterior. Não obstante os esforços da luz, ela era rapidamente sugada e se desvanecia na noite, sem conseguir chegar muito longe.
Liberty não se deixou abalar por um fato que era quase certo. Se ela não tinha encontrado o exército improvisado no seu caminho, era porque eles tinham sido mais velozes do que ela. Suas pernas foram buscar energias a algum recôndito compartimento interno da garota, e ela já quase que voava. Quase, porque voar era algo que parecia cada vez mais distante para ela.
Ao atravessar a muralha, pelo portão relevado a nada por um pequeno aparelho, que não o deixara cumprir a sua missão, a selecionada começou a avistar os corpos sobre a grama do jardim. Os movimentos da garota se tornaram mecânicos, ela avançava pelo caminho de pedra, numa velocidade morosa, atordoada com o cenário decadente dos rastos de uma batalha.
De cada lado do portão, tinha um guarda deitado como se estivesse apenas dormindo. As pálpebras completamente cerradas para o céu. Não havia manchas de sangue, nem feridas abertas ao ar. Os corpos iam depois se alastrando e multiplicando cada vez mais. Até que Liberty começou a ver roupas negras, entre as vestes brancas dos guardas, e sangue. Por fim, sangue se derramava e marcava os tecidos rasgados por armas improvisadas de metal. Algumas delas esquecidas para trás, entaladas entre as entranhas de um corpo sem vida.
A selecionada estacou. Atravessados no caminho de pedra, dois homens unidos por uma mesma barra de metal. O sangue ainda jorrava do estômago do homem vestido de negro parcialmente pendurado no ar. As gotas escarlates escorrendo pelo metal exposto, onde as mãos dele, estáticas e grudadas no resíduo, firmavam posição. Suas pernas caiam sobre o homem estirado no pavimento, agarrado ao invasor pelo metal que lhe trespassava o coração. A camisa branca do guarda quase toda embebida em sangue, o dele e o do seu assassino. Dois homens, que lutavam em lados opostos da batalha, reservados a um mesmo fim partilhado. No fim, pouco importava se um era monárquico e o outro republicano.
Do lado dos dois, um pano branco e imaculado repousava inocente. Em outras batalhas, em um outro tempo, aquele simples objeto estendido no ar, na altura certa, poderia fazer um verdadeiro milagre e poupar milhares de vidas. Mas aquele não tinha sido o caso.
O estômago da jovem se revolveu, enquanto ela contornava os dois corpos a arrefecer lentamente na noite. Com o olhar fixo em frente, Libby ignorou as vidas que se perderam no verde viçoso que tanto a cativara outrora. O suor e o sangue desapareceriam no solo, mas as memórias ficariam para sempre.
Vinte minutos antes
Gaston sorria. As câmeras haviam mostrado que apenas seis guardas faziam a ronda no jardim, naquele momento, e os outros se encontravam dentro da mansão. Ele sabia que a partir do momento que seu exército improvisado se acercasse do portão, os guardas saberiam da presença deles, mas seriam apanhados completamente desprevenidos quando o vissem a se abrir.
O jovem olhou para trás de si e se sentiu orgulhoso. Cerca de duzentos homens seguiam silenciosamente as suas pegadas por entre a escuridão da noite. Com aglomerados de homens já prontos para a batalha, em cada uma das aldeias, Gaston não teve que parar nem uma única vez durante todo o trajeto. Nenhuma mulher se ofereceu para se juntar à causa, ou talvez tenham sido os maridos, pais e filhos a adverti-las da imprudência de tal atitude. Numa sociedade que se vestia toda de negro se camuflavam os preconceitos retrógrados que marcavam Villeneuve, como outrora haviam marcado o mundo inteiro. Claude Dubois, tia de Charlotte, era a única mulher no meio de todos aqueles homens, por seu lugar inequívoco como republicana.
A enorme mancha negra seguia em passo rápido pelo verde da colina, e em silêncio para não gastar energias, nem alertar o inimigo da sua chegada. Quase pareciam um exército preparado durante anos a fio, não fossem as armas toscas empunhadas junto ao corpo.
Na frente do exército, iam os republicanos que participaram da planificação do golpe. Até Taupe havia, miraculosamente, saído de seu esconderijo na fábrica e se juntado ao exército aquando este passava na sétima aldeia.
− É agora – sussurrou Gaston, sentindo seu sangue ferver com a antecipação. Um toque no dispositivo que tinha entre as mãos bastou para que o portão se abrisse.
Os dois guardas se entreolharam ao perceber que os homens no exterior não foram travados pela grande muralha. À mínima brecha, Claude e Taupe avançaram, tal como planeado, agarraram nos dois guardas, cada um o seu, e pressionaram o pano embebido numa substância anestesiante contra as vias respiratórias dos homens ainda em choque. Em menos de um segundo, os dois caíam inconscientes no verde que seria cúmplice de inúmeras tragédias seguidas.
O exército avançou, ganhando ânimo ao ver as primeiras duas baixas. Eles se começavam a sentir imbatíveis ao constatarem a facilidade da tarefa que sempre imaginaram como impossível de realizar. Com receios deixados de lado, aqueles invasores se tornaram numa verdadeira ameaça a todos os integrantes da mansão.
Dimitri, o republicano mais idoso, avançou para o guarda que irrompeu das sombras de uma árvore e usou exatamente a mesma estratégia anterior. Ainda que o guarda se tenha debatido e tenha ainda acertado o atacante no estômago, o pano acabou por encaixar nas suas narinas abertas em fúria, levando-o para um sono profundo.
Quantos mais homens eram levados à inconsciência pela fila da frente do exército, mais as filas de trás se tornavam irrequietas. Os urros começaram a soar descontrolados e corpos se comprimiram por entre espaços abertos para chegarem ao pico da ação.
Um primeiro homem esguio conseguiu se soltar do centro do aglomerado e apareceu, de forma inesperada, numa das extremidades de arma em riste, soltando um estranho grito de guerra, enquanto se lançava para um dos guardas que se aproximava. Sem que nada o antecipasse, o intruso mergulhou o metal afiado bem fundo no peito do homem, que arregalou os olhos em descrença. Nenhum dos anos que passara em treinamento o havia preparado para aquilo, o guarda, como todos os outros, julgavam Villeneuve uma província pacífica, onde não haviam sequer armas.
As feições do guarda se contorceram em dor, quando o atacante reclamou de novo a arma para si. O metal reluziu com o sangue debaixo do grande foco que emanava luz sobre os dois. O candeeiro de jardim perdera toda a sua inocência, naquele momento, e nunca mais seria o mesmo. O homem ferido caiu sobre os joelhos e tombou para trás, não suportando mais o seu próprio peso.
− O plano não era este, Gaston! – Dimitri gritou, por fim, percebendo o verdadeiro perigo inerente à situação. Até então, seus olhos estavam fechados pelo entusiasmo da concretização de um sonho de há muito.
Lefou ficou branco do lado de Gaston, se sentindo nauseado com o buraco no peito do guarda que borbulhava o líquido vermelho para fora. Um órgão vital tinha sido rompido e o homem morreria numa questão de alguns segundos.
− Não podemos controlar tudo – afirmou simplesmente. Seus ombros se agitaram no ar e ele continuou avançando no mesmo ritmo de há pouco.
− Ainda podemos recuar – contra-argumentou o homem experiente. As filas de trás empurravam-no, obrigando-o a seguir um rumo que já não queria para si. – Antes que as manchas de sangue fiquem marcadas para toda a eternidade em nossas mãos.
− Eu não vou sair daqui sem recuperar a minha sobrinha. – Claude vincou a sua posição. Apenas na perda, a mulher reparara o quanto Charlotte significava para ela. A jovem era como a filha que nunca teve.
Se sentindo empático pela dor da amiga, Dimitri respirou fundo e rezou para que mais nenhum sangue fosse derramado. Porém, suas preces não seriam ouvidas.
Mais três plebeus se escaparam da formação cada vez menos ordenada, para terem também uma oportunidade de ação. A adrenalina corria-lhes no sangue e o cérebro já não tinha como impedir os instintos primitivos que lutavam para sair cá para fora. No entanto, daquela vez, os guardas já estavam conscientes e em alerta máximo. Não lhes foi difícil de esquivar aos golpes e de lhes retirar as barras de metal das mãos. Mas os intrusos eram alimentados por uma crença irracional de que eram invencíveis, só pela simples presença de um numeroso exército atrás deles, e, por isso, lançaram punhos fechados contra os guardas que evitavam eficazmente cada novo arremesso com a barra de metal que empunhavam. Outros dois homens se juntaram e ao todo já eram seis homens na frente de ataque contra três guardas, enquanto a linha da frente do exército, que talvez já não se pudesse considerar como tal, tentava travar os ânimos exaltados atrás de si.
O homem com a barra ensanguentada, que havia ficado um pouco para trás para analisar a situação, aproveitou para se aproximar em um momento de distração de um dos guardas, que lutava contra dois ao mesmo tempo, e perfurou-lhe os pulmões através das costelas. A morte foi lenta e dolorosa, com a falta de oxigénio a queimar-lhe a garganta.
Acabando de trespassar a porta, um novo guarda, alertado pelos barulhos já audíveis dentro da mansão, viu seu colega e amigo se espernear na busca por ar que entrava em seu organismo, mas que de pouco lhe servia. Movido pela raiva, ele correu na direção do assassino, que ria presunçoso para o homem a morrer aos seus pés. Todo o exército testemunhou horrorizado, ao homem de branco subir no ar, com um impulso que parecia suficiente para o fazer voar, e descer com os dois pés sobre o adversário que se voltava atordoado. O plebeu caiu com o golpe tremendo e sua cabeça colidiu com o solo. A barra rolou das mãos dele e o guarda, sem dificuldade, a segurou e fincou fundo no coração do assassino, caso este realmente o tivesse. O metal ficou aí, impregnado no negro que habitava aquele ser. Dessa forma, as trevas não teriam como escapar. Ou assim pensou erroneamente o guarda, que, rapidamente, se viu cercado por dez homens revoltos pelo primeiro sangue, dos seus, que era derramado. Ainda que tenha dado luta, quatro troços de metal diferentes acabaram por perfurar o defensor da mansão e um quinto se afundou no corpo já sem vida.
Os outros dois guardas presentes se viram sem opção a não ser começarem também eles a tragar as vidas daqueles miseráveis que se atreviam a colocar no lugar de Deus. Mas a cada novo corpo trajado de negro que caía ao chão sem vida, mais quatro ou cinco irrompiam do exército determinados a se vingar.
Dimitri, de pano em riste numa mão e com a longa barra de metal na outra, que ali estava, em teoria, para somente amedrontar os guardas, saiu da sua posição recolhida para tentar evitar uma possível carnificina. Ao apertar o pano molhado contra a boca do primeiro homem vestido de negro, LeFou e Claude perceberam o plano e se juntaram a ele. Mas com suas saídas na linha da frente para atacar o "lado errado" daquela batalha, o exército se desmembrou por completo. Gaston e Taupe foram dos poucos que ficaram para trás quando inúmeros corpos trajados de negro correram, cada um na sua direção, pelo jardim que os separava da casa.
− Assim não! – reclamou Gaston. – Seus idiotas, voltem às vossas posições!
Mas era escusado. Mesmo que o tivessem ouvido no meio da cacofonia que irrompia aquele estranho campo de batalha, não teriam voltado.
Um guarda e Dimitri se defrontavam num duelo frente-a-frente, nenhum percebendo as reais intenções um do outro. Para o homem de branco, as armas e a roupa do invasor o denunciavam como oponente, mas o fato de este o ter salvo de um dos atacantes furiosos, agarrando-lhe por trás e apertando um simples pano contra a face do homem, estava a deixá-lo um pouco confuso. Já o republicano, não deixava de conseguir ver no outro um obstáculo para a concretização da missão que o tinha levado até ali. Não o queria matar, mas teria de o deixar inconsciente.
Ironicamente, a escolha não foi tomada por nenhum dos dois. Os homens que corriam que nem loucos pelo jardim, empurraram Dimitri ao passarem por ele. O republicano foi projetado para a frente e a arma de metal perfurou o coração do guarda. Ambos caíram e o corpo de Dimitri foi amparado pela longa barra pontiaguda, que adentrou no seu estômago.
Os invasores contornavam os dois corpos unidos atravessados no caminho de pedra, enquanto o republicano usava as suas restantes forças para se desenvencilhar do objeto dilacerante. Porém, as mãos húmidas, com o sangue que jorrava da abertura dolorida, aliadas à posição instável do seu corpo, que quase planava, fracassavam. As forças que ele investia faziam com que o metal mergulhasse ainda mais fundo nas suas entranhas e a dor já quase o cegava de tão intensa. Chegou a um ponto em que ele sabia. Retirar o material intruso no seu organismo apenas levaria a uma morte mais dolorosa. Deixando as mãos firmes sobre o metal, se entregou ao seu último suspiro. O desmaio não seria ainda seu fim, o sangue verteria, gota a gota, e ele não estaria realmente lá para lutar pela vida. Tal como não estaria presente para ver o desfecho daquela guerra, que já não lhe pertencia. Aqueles dois homens estendidos no chão, agarrados um ao outro, tinham sido apenas mais duas vítimas esquecidas naquele caos. Nem Gaston, nem Taupe pararam quando os viram lá, apenas se limitaram a contornar os obstáculos e a seguir o caminho que o exército descontrolado havia "limpo" por eles.
Repousado no chão, tinha ficado para trás o pano branco completamente estático e inútil. A rendição não estava sequer à vista dos homens decididos a destruir qualquer coisa ou qualquer um.
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