Capítulo 32 - Cento e sete passos eternos
Elroy desviou as cortinas pesadas de seu quarto, que haviam sido colocadas de novo na janela, naquela mesma manhã, depois de mais um acesso de fúria do príncipe. Não era para menos, já que a prisão de Liberty se afigurara como um golpe duro no seu coração fragmentado.
Naquela altura, os gritos já eram mais do que claros. A selecionada ouvia e entendia o que lhe chegava aos ouvidos, mas nem queria acreditar. Talvez se ela visse com seus próprios olhos, a realidade se tornasse mais plausível.
Ela se aproximou da janela, sem ser preciso o futuro monarca dar alguma indicação nesse sentido, e fixou os seus olhos incrédulos no mar de pessoas que se estendia para lá do portão exterior da mansão.
Do quarto do príncipe, conseguia ver-se perfeitamente os braços enérgicos do povo a cortar o ar a cada nova palavra proferida. Mas as palavras não eram realmente novas. Era sempre a mesma, repetida vezes e vezes sem conta. Como um estranho cântico de feitiçaria.
− Li-ber-ty! Li-ber-ty! Li-ber-ty! – os gritos chegavam ao interior do quarto, abafados pelas paredes grossas da mansão.
− Chegou um grupo grande ontem à noite e, desde então, só tem vindo a chegar mais gente – informou Elroy. A jovem colou a sua mão no vidro que a separava de todas aquelas pessoas que estavam ali por ela. Mas a janela não era o único obstáculo entre ela e o povo.
Big Ben tinha sido o único com ousadia o suficiente para se pôr a contar as cabeças que bloqueavam a entrada e saída da mansão. Uma curiosidade um pouco estranha, mas para ele a tarefa era necessária para sentir um pouco mais de controle sobre a situação. Uma sensação ilusória, claro. Ninguém da mansão, nem mesmo o rei, estavam com as rédeas do que estava acontecendo lá fora, mesmo por baixo de seus narizes. Depois de contar dez vezes, o mordomo ficou confiante do número a que havia chegado. Segundo ele, eram precisamente duzentas e catorze pessoas. Um verdadeiro exército! Nenhum com preparação para a guerra, mas todos com expressões ávidas por sangue. Pelo menos, assim davam a entender.
− Porquê? – questionou a jovem sem conseguir entender todo aquele apoio repentino. – O que eu fiz para merecer tudo isto?
− Não me parece que tenha sido algo de agora. Acho que a tua atitude e palavras têm vindo a alimentar a chama de revolta que já havia dentro do povo. E ontem, no baile, tudo se desenrolou de uma forma... Acho que você se tornou numa mártir para essas pessoas.
− Não era minha intenção – sussurrou de olhos caídos sobre o muro rígido, que ela sabia que sempre estaria ali para separar a monarquia do resto da população.
− Eu sei que não. – Elroy pousou a mão dele sobre a da selecionada. O calor da pele dos dois, em contato, era contrastante com o frio que Liberty recebia da janela. – Mas foi graças a isso que você não passou o resto dos teus dias naquela maldita cela – proferiu amargo. O desgaste físico de Liberty realçado pela luz da janela só tornava tudo ainda mais doloroso para ele.
− E o rei cedeu assim? Tão facilmente?
Mesmo que Libby visse todas aquelas pessoas lá fora, revoltadas, ela não acreditava que isso fosse suficiente para demover o cruel monarca. Ele nunca se havia importado com a opinião do povo. E ele continuava seguro no conforto do seu lar, enquanto que todas aquelas pessoas esgotavam suas forças, sem conseguir penetrar verdadeiramente na dureza do muro que tinham à sua frente.
− Tens razão, não foi nada fácil – admitiu Elroy. A sua mão caiu inerte junto ao tronco, deixando a de Liberty descoberta. − Mas Keandre Morfrant não suporta não ter o povo sob controle. Eu tive que o convencer de que te libertando, o povo olharia para ele com outros olhos, que passaria a ser visto como benevolente e tudo seria esquecido. Me ofereci para dar uma entrevista o defendendo e tudo. E... − O príncipe se calou, sem ter forças para continuar aquele raciocínio que o magoava profundamente na alma.
− E? – repetiu Liberty, se voltando para ele.
− Tem mais uma coisa que te quero mostrar – anunciou friamente. Seus olhos se perdiam num ponto distante no horizonte. Ele já se começava a preparar para a separação inevitável que os esperava.
98... 99... 100..., Elroy entoava mentalmente cada novo passo que dava. Mesmo que suas pernas tivessem crescido tanto ao longo dos anos, ele continuava a dar exatamente a mesma quantidade de passos. Eram mais curtos e controlados, mas continuavam a deter a inquietação de outrora.
Ele sentia a presença de Liberty atrás dele e aquilo parecia-lhe incongruente. Na sua mente, ele já recuperava todas as dolorosas sensações que sempre vivenciava após realizar aquele simples percurso. Mas sentir o cheiro adocicado e leve da jovem, naquele corredor, desnorteava-o. As suas melhores memórias se mesclavam com as suas piores, numa mistura sem sentido. Não era suposto ela estar ali. Mas tinha de ser assim, ele se convencia, concentrando-se nos números. Eles sempre lhe agraciavam com a abstração de que precisava.
− 107 − pronunciou num murmúrio antes de estacar.
Ele baixou o rosto desanimado para a porta à sua frente. O número pareceu-lhe errado. Tanta coisa havia mudado dentro de si, mas aquele corredor fazia questão de o recordar que, no final, tudo sempre acabaria da mesma forma. Com ele sozinho e entregue às suas dores.
Liberty estranhou o número e, ao lado dele, olhava-o tentando decifrar o que era aquilo tudo. Aquele era o corredor que Elroy lhe tinha proibido de entrar quando fez a sua primeira exploração na mansão. Na altura, tinha ficado muito frustrada por ver sua curiosidade incessante completamente ignorada. Mas, naquele momento, vendo a expressão cabisbaixa do homem que havia conquistado sua afeição, ela já não queria saber onde aquela porta ia levar.
No entanto, o futuro monarca, afogado nos seus próprios receios, não conseguiu detetar a hesitação da mulher ao seu lado, e, respirando fundo, ele colocou seu polegar no leitor de impressões digitais junto à porta.
Com um estalido quase impercetível, a entrada estava livre e a sala pronta para os receber.
O espaço era pequeno e desprovido de supérfluos móveis, que não fariam outra coisa que não tapar os espaços deixados pelo vazio. A luz do teto acendera-se automaticamente com a entrada dos dois visitantes, disfarçando a escuridão que camuflava aquela estranha sala a maior parte do tempo.
Sem janelas, espelhos, retratos ou quadros pendurados, o cinza escuro das paredes se tornava um pouco sinistro para o gosto de Liberty. E no meio da sala apenas duas redomas encaravam a jovem sem pudor. Fortes e imponentes no vazio.
A selecionada se voltou para a mais pequena, atraída pela estranha flor, quase sem pétalas, que a fitava. Um verde caule sem qualquer folha, mas repleto de espinhos, segurava firmemente uma única pétala vermelha, que tombava teimosa para baixo. Na base do recipiente, repousavam inanimadas e numa cor desbotada, todas as outras pétalas que outrora haveriam de ter formado uma bela e viçosa rosa.
− O que é? – questionou Liberty ao se aproximar do suporte negro onde se encontrava a pequena redoma.
− Como já te tinha dito, esse é o símbolo da nossa resistência. – A jovem espreitou para dentro da redoma, com o rosto quase colado na superfície translúcida, e se lembrou das palavras de Elroy sobre a rosa, uma flor forte e persistente, que ali lhe parecia tão frágil, sustentando apenas uma única pétala. – Antoine Morfrant colocou um líquido aí dentro para que a rosa mantivesse, o máximo de tempo possível, a sua vitalidade, mesmo sem estar em contato com a terra.
Era possível ver algumas minúsculas bolhas que ascendiam da base até serem esmagadas pelo topo do recipiente. Se não fosse isso, Libby iria jurar que era apenas ar, aquilo que ocupava o espaço em torno da rosa.
− Claro que não se poderia esperar que fosse eterno – acrescentou o príncipe absorto em seus pensamentos. – Nada o é.
A não ser os malditos cento e sete passos que antecediam seu pesadelo. Na cabeça de Elroy eles eram eternos, ao menos. Não que isso correspondesse realmente à verdade.
A garota sentiu o desânimo na voz de Elroy e se voltou para ele.
− O homem era um pouco obcecado, não era? Jogou redomas para tudo o que é lado. – A tentativa de suavizar o ambiente com piadas não resultou. Talvez o problema fosse da piada. Mas mais certamente seria do ouvinte, que evitava a todo o custo olhar para a redoma enorme no centro da sala. Libby se deixou contagiar pela feição fechada do homem à sua frente. − A ideia da rosa até que é bonitinha. Mas me faz pensar que a nossa vida aqui, debaixo da Redoma, não será eterna.
− Um dia, todos morremos, não é, mesmo? – O comentário soturno incomodou a jovem, que esfregava o pescoço para aliviar a tensão. Porém, a culpa de a conversa estar seguindo aquele rumo era um pouco dela. − Mais tarde ou mais cedo, nosso dia chegará.
A frase caiu pesada no meio dos dois, como uma sentença. Ambos se olharam e uma preocupação única lhes passou em mente: "O que seria eles viverem um sem o outro?". Elroy, por mais decidido que estivesse, não se conseguia conformar com sua decisão. Ele sabia, mesmo antes de Liberty, que esse momento em que teriam de dizer adeus um para o outro estava demasiado próximo.
O fututo monarca se aproximou lentamente da enorme redoma oca, que poderia albergar certamente um ser humano. O pior era que tinha sido para isso mesmo que ela havia sido construída.
− Só quero que você saiba que o que está a ponto de observar, serve apenas para que você conheça toda a realidade – disse o príncipe, começando a despir a camisa. − Nua e crua, sem fantasias ou idealizações.
Liberty pestanejou confusa. Porque é que ele se está a despir?, se interrogou, fitando a pele deformada de que já havia até se esquecido. As cicatrizes eram ainda uma incógnita para ela, mas estavam prestes a deixar de o ser.
Quando ele retirou as calças, ela começou a duvidar da sanidade do homem. Não que desconfiasse dele, era mais do que óbvio que ele a respeitava como mulher e nunca tentaria nada contra sua vontade. Até no recente envolvimento amoroso que se havia desenvolvido entre os dois, Elroy era contido nos seus gestos, não a querendo afugentar de modo algum. Ainda que naquele momento fosse exatamente isso que ele queria.
O único tecido que passou a envolver o corpo machucado do futuro monarca, eram os bóxeres. A selecionada conseguiu, pela primeira vez, testemunhar até onde se alastrava a pele deformada dele e apenas os pés, tornozelos, antebraços, pescoço e cabeça escapavam incólumes. Ela desconfiava que a pele escondida pelo tecido também se juntasse a esse grupo, mas preferiu não se embrenhar demasiado nessa sua curiosidade. Não seria certamente digno para uma garota solteira.
Elroy pousou a mão sobre a redoma e uma pequena abertura se desenhou na superfície, permitindo a sua entrada. Um bip sonoro suou pouco depois da redoma voltar a recuperar a sua forma contínua, já com o príncipe no seu interior. Liberty enrugou a testa com a estranheza da situação. Ela continuava, infelizmente, a não conseguir montar as peças do puzzle. Talvez se tivesse antevisto, ela poderia ter evitado os momentos aterrorizadores que se seguiram.
A superfície da redoma começou a expandir-se internamente. Parecia derreter-se do topo, envolvendo e se fixando em torno da cabeça do seu integrante e apenas cessando o seu movimento ao proteger todo o pescoço. Os antebraços do homem e os pés e tornozelos foram também sugados pelo invólucro estranho. No fim, a zona do tecido foi igualmente reconhecida e protegida com sucesso. Os pontos em que o homem se unia com a estranha máquina, não eram pensados como uma simples proteção. Pelo menos, não apenas. Elroy sentia a tensão que era exercida, impedindo-o de se mover. Nem uma única vez, ele havia sido capaz de se espernear ou sequer golpear as paredes da redoma, aquando no seu interior. Ele era um prisioneiro ali dentro, ele sabia-o.
Uma luz intensa começou a emanar do interior e seu brilho pareceu quase divino para a jovem ingênua que assistia a tudo de fora.
Mas do nada, um barulho forte de carne a ser rasgada, chamou a atenção da moça. Seus olhos bem abertos encararam um fio de sangue que escorria por um corte recentemente aberto na perna direita de Elroy. As gotas escarlates eram sugadas pela base da redoma como se lhe pertencessem. Outro barulho idêntico ressoou na mente atordoada da jovem, seguido de outro, e outro, e outro... A pele de Elroy estava a ser aberta em pontos aleatórios de seu corpo e o sangue jorrava em quantidades absurdas. Era como um chicote de ar, que mesmo sendo invisível, se tratava de uma arma, eventualmente, letal.
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