Capítulo 3 - Verdadeiramente novo


Liberty riu-se a plenos pulmões, sentada no banco de trás do veículo. Por muito terrível que fosse a sua situação, ela começava a perceber que era impossível permanecer eternamente de cara trancada na presença daqueles dois homens tão distintos um do outro. O mais alto guiava a viatura, mas o seu companheiro criticava cada pequeno gesto do primeiro. Se andava depressa era porque andava depressa, se andava devagar era porque andava devagar.

− A garota vai dizer mal de nós ao príncipe, se você continuar a guiar assim – gritou para o condutor. A jovem conseguiu ver o seu rosto redondo a moldar-se a um receio, claramente exagerado. – Coloca em piloto automático – ordenou com as grandes bochechas quase roxas.

− Você sabe que eu gosto da adrenalina da condução – respondeu-lhe de forma descontraída. Afundou um pouco mais o pé no acelerador para reforçar as suas palavras. O conta quilómetros registou o seu máximo daquele dia. O homem delgado sorriu satisfeito para os 60 km/h que viu desenhados. – E é mais provável que a garota se queixe dessa sua má-disposição.

O pendura cruzou os braços e fechou os finos lábios em desagrado. As suas sobrancelhas grossas quase se uniram numa só.

− Está a apreciar a viagem? – o condutor falou pela primeira vez para a jovem que se limitava a observá-los com atenção. Os seus olhos negros presos nos olhos hipnóticos de Liberty refletidos no retrovisor.

Libby anuiu timidamente.

− Eu sabia – o tom do homem era vigorante. – Isto é que é uma viagem e tanto! A sua aldeia é a mais longínqua da mansão real – informou como se a jovem já não soubesse desse facto quase desde que nascera. – Duas almas gémeas a viver nos extremos opostos da província. Isso é tão romântico!

− Lumière, por favor – o companheiro amparou o rosto roborizado entre as mãos. – Você até acha o encontro entre a chave e a fechadura algo romântico.

− E, não é? – retrucou sem perceber onde o outro queria chegar. – Big Ben, você não esteja com ciúmes. Eu continuo a achar o encontro que você tem com cada refeição o mais romântico que há de toda a mansão. Qui ça, de toda Villeneuve!

Os três gargalharam. Cada um há sua forma, mas ainda assim gargalharam. Lumière tinha um riso sedutor, cada nota balançava no ar e juntava-se ao seu par ideal numa dança única e irrepetível. Big Ben, cujo nome de batismo já nem ele próprio sabia, respirava de forma pesada entre cada som estridente que emanava do seu corpo avantajado. E Liberty, apesar de inquieta com o que o condutor insinuara sobre ela e o príncipe, tinha uma leveza no riso que fazia lembrar a água corrente que enchia a seu tempo a banheira para uma imersão relaxante.

Os dois homens continuaram a discussão incessante, talvez para preencher o vazio ou, simplesmente, porque gostavam de o fazer. Porém, Libby já não prestava atenção ao que os dois diziam, os seus olhos vagueavam pela paisagem emoldurada no vidro da sua janela. Procuravam por algo que nunca tivessem visto antes, mas essa missão já estava condenada logo à partida. As casas brancas por que passavam eram as mesmas que ela via na sua aldeia, mesmo que as pessoas que lá habitavam fossem diferentes. E daí talvez não fossem tão diferentes assim, pensou ao ver uma pequena criança a tentar chamar a atenção de um homem adulto, que se limitava a engraxar uns sapados já impecavelmente polidos.

A moça virou então o rosto para o céu, como fazia tantas vezes durante as noites vazias e silenciosas de sua casa. Em lugar da lua, o sol derramava a sua luz intensa e ardente e, ao contrário da primeira, não permitia que ninguém o analisasse durante mais do que alguns minutos. Talvez ele temesse que se as pessoas o fizessem, descobririam que não é tão belo quanto aparentava à primeira vista. Ou talvez fosse simplesmente invejoso e quisesse guardar a sua beleza só para si. Era por isso que Liberty gostava mais da lua, que apesar de não ter luz própria, mostrava sempre novas formas e novas crateras.

Ao entrefechar um pouco os olhos, conseguiu vislumbrar a redoma que se estendia entre ela e o céu e que ela sabia cobrir toda a província. A barreira translúcida fora criada para os salvar a todos das radiações mortais do sol e do ar irrespirável que haviam invadido a Terra há mais de um século. A terceira guerra mundial fora a gota de água que fez verter o copo, já em si, demasiado cheio. Liberty tinha consciência que era para a proteger, mas não conseguia evitar sentir-se esmagada por aquela redoma que a afastava do céu.

− Ali está a sua nova casa, princesa – declarou Lumière, interrompendo abruptamente Big Ben, que dissertava sobre a importância de se ser pontual. Como a discussão havia chegado àquele tópico, já nem os próprios dos intervenientes se recordavam.

Liberty demorou alguns segundos a perceber que a princesa a quem ele se dirigia era ela. Abriu a boca para contra-argumentar, mas, ao virar-se para a frente, as palavras evaporaram como a humidade do céu, que, muitas vezes, não chega a tocar o solo.

Apesar de longe, era possível discernir um edifício largo que se estendia em direção a um teto mais baixo da redoma, quase chegando a tocar-lhe. A arquitetura moderna da mansão escolhera destacar algumas das superfícies, desnivelando-as em relação à parede negra que se alastrava de uma forma intermitente. Essas zonas eram tão brancas quanto as nuvens em dias ensolarados e carregavam enormes janelas que se deixavam tocar pelo sol. Isso fazia com que a casa não fosse apenas um paralelepípedo gigante, sem personalidade. As subidas e descidas inesperadas dos limiares do edifício despertaram a curiosidade da mulher de olhos vidrados num ponto cada vez menos longínquo. E a ausência de telhado que realçava a incompletude de sua casa, naquela mansão parecia reforçar a abertura para a proximidade da redoma e do céu.

A mansão descansava imponente no final do vale da sétima aldeia por que passavam. Sem qualquer aviso, as inúmeras casas coladas umas às outras simplesmente deixaram de existir e a estrada passou a estar amparada por duas extensas áreas de relva, uma de cada lado. O veículo começara a descer aquela rua tão estranhamente vazia, mas ao mesmo tempo cheia aos olhos de Liberty, que nunca antes antevira um verde tão recheado e vivo como aquele. Nas outras aldeias, haviam ocasionais porções de relva, aqui e ali, mas eram áreas tão pequenas que nem uma criança se conseguiria deitar sobre elas. Libby via naquela erva selvagem inúmeros dedos verdes que apontavam para o céu, e sem a influência da mais pequena brisa, jamais se curvavam numa outra direção que não essa. Naquele pedaço de terra, que não era nada, nem pertencia a ninguém, entre a aldeia e a morada real, a futura princesa conseguiu antever brevemente qual seria a sensação da liberdade.

À medida que a quantidade de verde aumentava, mais a mansão imponente se escondia por detrás de uma muralha impenetrável. E, mais uma vez sem aviso, a estrada terminara e a viatura negra estacou diante de um portão maciço do mesmo tom. Naquele ponto, já mal se conseguia ver o edifício que se aproveitara do tamanho considerável do muro para fugir de olhos curiosos. Apenas uma estreita branca banda superior espreitava do topo daquela fronteira construída pelo homem.

O portão começou a subir lentamente, parecendo deter vontade própria. E Lumière voltou a colocar o pé no acelerador assim que o espaço se tornou largo o suficiente para o veículo passar.

Lá estava a imensa casa de novo, agora assustadoramente gigante. Um longo caminho de terra batida levava a viatura até ela. E a ocupar toda a área circundante, um verde tão viçoso como aquele que antecedera a chegada até ali. Contudo, do lado direito, uma fonte oval ocupava um quinto daquela vasta área. A água subia de uma forma contínua e caía num arco perfeito de 360º, fazendo recordar a redoma que a província sustinha sobre si. Ou seria a redoma a suportar a província?

Lumière retirou o pé do acelerador, dessa vez de forma definitiva, e saiu do carro numa dança enérgica. Big Ben, por seu turno, arrastou-se para fora do assento, esperneando os braços e as pernas assim que se viu livre do enclausuramento do veículo. Enquanto para um a viagem tinha sido tão revigorante como um banho gelado logo pela manhã, para o outro a viagem parecia não passar de uma tortura tão agoniante como tomar banho de manhã e a temperatura da água descer tão inesperadamente que fazia arrepiar a pele.

O homem delgado apressou-se a abrir a porta de Liberty ao lembrar-se da verdadeira intenção da viagem. A moça aceitou a mão estendida de Lumière e viu-se finalmente livre de uma prisão para se ver diante de outra. O criado beijou a pele macia da mão da futura princesa ao constatá-la trémula sob o seu toque. Se não para a acalmar, para a agradecer da oportunidade única de sair, por uns momentos, daquela mansão donde, muitas vezes, se sentia igualmente prisioneiro.

Big Ben começou a subir os inúmeros degraus que tantas vezes percorrera, mas pela primeira vez com um sorriso no rosto. Ele poderia nunca vir a admitir em voz alta, mas tinha apreciado a viagem tanto quanto o seu companheiro. As suas pernas anafadas eram movidas por uma morosidade intencional e a questão da pontualidade já não lhe parecia tão premente quanto isso. Os outros dois seguiam-lhe os passos, de mãos dadas como se se conhecessem há anos.

A tremenda porta, que parecia da altura dos três encavalitados uns nas costas dos outros, abriu-se mesmo antes deles acabarem de calcar o último degrau. Do escuro interior da casa não surgiu ninguém. E Liberty não conseguiu evitar pensar que a sua chegada estaria a ser supervisionada por alguém tão tímido ou cobarde que não se atrevia a recebê-los em pessoa.

Ao se adentrarem na mansão, a futura princesa nem sabia para onde olhar primeiro. Se fosse a sua casa, os convidados não teriam outro remédio senão olhar para o abandonado sofá de três lugares. No entanto, ali, a diversidade de estímulos visuais arrebatou a sua mente apenas habitualmente aguilhoada pelos livros que escondia dos outros. Decidiu começar pelo tapete que se estendia pela divisão em tantos tons que talvez nem soubesse enumerar. O encarnado era o preponderante e abraçava uma abstração de figuras que se confundiam umas nas outras, cada uma, uma pequena parte de um todo que só poderia ser designado de belo. A tapeçaria tecida com tamanho exímio terminava numas escadas de madeira envernizada que subiam em duas direções distintas. Nas paredes daquele espaço, retratos de pessoas e paisagens, que nunca antes a garota havia conhecido, lutavam uns com os outros para ver quem cativaria primeiro aqueles olhos castanhos que absorviam, ávidos, tudo o que encontravam. A habitação da selecionada não tinha alma, aquela dava a sensação de conter milhentas delas.

− Espere para ver o seu quarto, é ainda melhor – Lumière garantiu ao perceber o espanto e admiração da moça ao seu lado. – Vamos?

− Você não a pode levar ainda, o príncipe não deu autorização – protestou Big Ben ao colocar-se de braços estendidos entre os dois e as escadas.

− Acaso você vê ele aqui? De certo, ele não se irá importar, afinal de contas estamos a falar da sua futura esposa.

Liberty sentiu um arrepio a percorrer-lhe todo o corpo. Aquele homem simpático estava enganado, ela nunca haveria de casar com o príncipe, tentou convencer-se a si própria, assim que ele a ouvisse, entenderia que tudo não passava de um terrível equívoco.

Convencida disso mesmo, não se importou quando Lumière a guiou escadas a cima em direção ao quarto em que não tencionava passar a noite. Assim, até que a lua ocupasse o seu lugar no céu, ela poderia aproveitar um pouco para conhecer algo verdadeiramente novo.

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