Capítulo 28 - Cavalo de Troia
A carrinha velha, movida a eletricidade, chacoalhava no terreno baldio que dava acesso às fábricas. As pedras irregulares ofereciam resistência aos pneus, que se iam desgastando a cada novo obstáculo. Aquele veículo nada tinha a ver com o automóvel a serviço da família real. O carro negro, nem rodas tinha para se deteriorarem, flutuava junto ao solo, sem nunca chegar a tocar-lhe. Uma engenhoca moderna muito bem cuidada e preservada pelos donos que pouco uso lhe davam.
Gaston assobiava ao volante como sempre fazia. Ele era um dos motoristas que levavam os trabalhadores para as fábricas. Três carrinhas e três condutores para cento e vinte trabalhadores. Isso equivalia precisamente a cinco viagens, com 5000 metros de cada vez. Isso apenas no período da manhã. Ao final da tarde, os números dobravam. E durante um tempo e o outro, transportes de mercadoria poderiam ser necessários, fazendo com que tanto as carrinhas como os dois homens e a mulher que as guiavam tivessem de ficar de vigília. Ainda assim, era um emprego pouco exigente, que permitia o luxo de longas horas de reflexão.
O homem musculado espreitou para um dos espelhos retrovisores e conseguiu avistar o rosto redondo do amigo, quase colado ao volante de uma carrinha exatamente igual à que conduzia. LeFou sempre trazia o assento o mais para a frente possível, e, ainda assim, os pedais lhe pareciam de difícil alcance. Talvez aquela não fosse a profissão mais indicada para o comparsa de Gaston, mas era necessário reconhecer os esforços que este fazia para se encaixar ao lugar. O sentido literal dessa dedicação fez o homem que liderava o caminho gargalhar. Os passageiros, ainda mudos, franziram as sobrancelhas para a estranheza do comportamento do motorista. No entanto, Gaston nem reparou, tão pouco tomou consciência da bizarria de se rir sem motivo aparente.
Quando as gargalhadas cessaram, a melodia estridente do seu assobio voltou a preencher o silêncio incômodo. Se ele tivesse perguntado aos passageiros, que ainda estavam levemente ensonados, certamente estes lhe teriam informado da preferência pelo silêncio relaxante. Mas Gaston julgava saber o que era melhor para eles. De facto, as suas certezas eram mais fortes do que aqueles pneus que sulcavam a terra, e não necessariamente as mais fidedignas.
Os edifícios retangulares das três fábricas de Villeneuve lá estavam recostadas na extremidade da redoma mais afastada das aldeias. Era naquele local que as refeições, tecidos, materiais de construção e mobiliário eram produzidos. A dez metros dali um edifício mais baixo, onde a atividade de toda a redoma era monitorada, olhava-os de soslaio. Todos os produtos tinham de passar pelo Centro de Controle. E era também nesse espaço que se davam as provas para a seleção. Todos os registos armazenados, cuidados e analisados por uma equipa de verdadeiros especialistas.
Gaston guinou o veículo, numa paragem abruta que ele considerava necessária para produzir adrenalina suficiente para despertar os trabalhadores. Uma inspiração súbita que o domou naquele momento. Os passageiros não reconheceram a genialidade e generosidade que o levaram a fazer tal coisa. E apressaram-se a descer da carrinha, em meio de resmungos, fazendo promessas vãs de que nunca mais entrariam num carro conduzido por Côté.
Descendo pelas estreitas escadas encaracoladas, Gaston utilizava a memória e não os olhos para saber onde pisar a seguir. Ereto e de mão no bolso, onde se encontrava o aparelho que emitiria um bip sonoro em caso de serviço, ele movia-se com destreza apesar da escuridão onde mergulhava.
LeFou seguia atrás do amigo com a mão sobre o corrimão e as costas ligeiramente curvadas. Tentava sempre sentir o próximo degrau com o pé, antes de o pousar de forma definitiva. Não fossem os degraus terem mudado de sítio. Ou a sua memória não precisar com correção onde terminava um degrau e começava o outro.
No final das escadas, Côté bateu na porta de metal cerrada. Cinco baques separados por um segundo exato. A expressão "sem ar" foi pronunciada alto o suficiente para se ouvir do outro lado, e, como num feitiço, a porta destrancou-se e abriu-se para deixar passar os recém-chegados.
− Novidades, Taupe? – questionou Gaston depois de cumprimentar o homem que se encontrava de frente para um monitor que registava a oscilação de ondas sonoras.
− Nada de muito relevante ainda.
Taupe era um homem careca, que aparentava ter mais idade do que realmente tinha. Os seus olhos eram pequenos e castanhos e a imagem de uma toupeira parecia ser a mais adequada para alguém que vivia debaixo da terra, na cave esquecida e abandonada da fábrica de refeições. Naquele pequeno compartimento, ele tinha tudo o que precisava. Dormia num sofá, tinha um computador, um luxo que não havia nas aldeias, e sempre que sentia o seu estômago mais vazio, e se haviam esgotado as reservas, subia à fábrica para reabastecer o seu stock.
Exausto, LeFou sentou-se numa das cadeiras da grande mesa redonda que ficava no centro daquele espaço minúsculo. Os seus lábios subiram num sorriso com o recipiente de comida que encontrou esquecido sobre o tampo rígido. Já Gaston preferiu arrastar uma cadeira para se juntar a Taupe.
− O que está acontecendo? – perguntou Gaston se sentando. Os seus olhos seguiam o subir e descer das linhas verdes no ecrã na esperança de entender algo apenas as monitorizando.
− Nada. A garota é demasiado aborrecida. – O homem careca suspirou pesadamente, desviando um pouco os headphones para ouvir melhor o amigo. – Você acredita que ela se ofereceu para ajudar na preparação do baile? – A sua voz transpirava de incredibilidade. – Talvez tu não estivesse certo, Gaston.
− Eu continuo convicto da minha indicação.
− Não sei. – Taupe coçou a cabeça calva. − Ela parece-me demasiado encantada com o príncipe. Tu mesmo ouviu as conversas que os dois têm tido. São conversas de dois enamorados.
Gaston apertou os punhos sobre as pernas. Ele já tinha tirado as suas próprias conclusões, não precisava que Taupe lhe jogasse aquilo à cara.
− Já descobrimos imenso depois dela ter entrado – contra-argumentou, fugindo da insinuação do amigo. Ele tentava convencer-se a si próprio que o encanto passaria com o tempo. Por agora, essa paixão fugaz era-lhes conveniente. − O príncipe confia nela que nem um bobo e é disso mesmo que precisamos. Não deve faltar muito para ele dar um passo em falso e nos dar algo substancial com que trabalhar.
− Seria mais fácil... se ela soubesse... que nos está a ajudar – desabafou LeFou com a voz entrecortada. Cada pequena pausa servia para ele mastigar a ração seca que tinha na boca. − Poderia acelerar o processo.
O olhar que Gaston lançou ao seu melhor amigo parecia poder dilacerá-lo. LeFou engoliu os alimentos mal triturados, que lhe arranharam a garganta. Um pedaço maior acabou por ficar entalado, provocando um ataque de tosse seca. Nenhum dos dois amigos se levantou para ajudá-lo. Taupe não estava satisfeito por lhe estarem a roubar alimentos que tinha ganho com o suor do seu trabalho. Não fora LeFou que arriscara ficar sem mãos. Essa era a pena que o hóspede daquela cave receberia, se fosse apanhado em flagrante. E Gaston estava farto de ouvir sempre o mesmo discurso. Ele era seu melhor amigo, era suposto compreendê-lo melhor do que ninguém. Entregues aos seus ressentimentos, não restou outra opção a LeFou senão desembaraçar-se sozinho. Felizmente, depois de algum esforço, ele lá conseguiu empurrar aquele bocado de comida para o lugar que lhe era devido.
− Liberty é demasiado bondosa, nunca colaboraria connosco de livre vontade – repetiu pela enésima vez a explicação que lhe era tão óbvia.
Gaston não poderia culpá-los, ninguém do grupo a conhecia tão bem quanto ele. Ele também tinha tido as suas dúvidas, mas isso fora antes de privar da companhia surpreendentemente agradável da moça. A aproximação fora pura estratégia. Não fora nenhum interesse amoroso, capricho ou uma aposta idiota entre amigos para ver quem a levava primeiro para a cama. Não, não fora nada disso que o motivara a meter conversa com Liberty há cerca de um mês. Ele não a queria conquistar, nem ser conquistado. Ela era o seu objeto de estudo. Um simples meio para chegar a um fim. Porém, a inteligência, a coragem, a determinação e o altruísmo, que ele tanto procurava, apanharam-no desprevenido. Os traços serviam a causa, mas, sem saber, também serviam o seu coração.
Claro que Liberty tinha um defeito. Ela era o que ele designava de "coração mole". Alguém que nunca seria capaz de usar os outros para atingir os seus objetivos, por muito nobres ou relevantes que fossem. E isso fazia com que ela passasse automaticamente de uma arma extremamente valiosa para uma altamente instável ou até mesmo contraproducente.
Naquele dia, na véspera da proclamação real da seleção, quando Gaston foi ter com Liberty ao trabalho, ele pensou em contar-lhe. Até ao último minuto ele ponderou se não a conseguiria trazer para o seu lado, para o lado da causa. Mas depois o desespero dela em ver-se preso com ele no quarto da creche, mostrou-lhe que ela nunca o poderia entender, que os seus métodos mais duvidosos nunca seriam aceites por ela. E, pior, que ela não confiava nele. Por isso, teve de avançar com o plano A.
Com o pano previamente embebido numa substância anestesiante, Gaston levou Liberty a um estado de inconsciência ideal para que esta não sentisse nada aquando a inserção do dispositivo subcutâneo que alojou no seu antebraço. Fora Taupe, o génio informático da equipa, a desenvolver o aparelho indetetável de gravação de som. Liberty tornara-se, então, cúmplice deles sem a mínima desconfiança disso. E Côté sabia que a moça iria tirar conclusões precipitadas sobre o seu comportamento, que o iria odiar, talvez até sentir repulsa dele. Mas não havia outra opção. Ele aprendera a colocar a causa à frente de tudo e todos. O seu interesse amoroso não poderia interferir. Liberty era o melhor Cavalo de Troia que ele conseguiria arranjar. Tal como o primeiro, elaborado de inofensiva madeira, a moça não tinha consciência do seu papel fundamental naquela guerra.
O seu olhar voltou a pender sobre as ondas oscilantes no monitor. Com quem estaria ela a falar?, interrogou-se. Ele não sabia se eram os ciúmes ou a sua curiosidade a falar. Não sabia qual dos dois interesses o estava a domar naquele preciso momento.
− Deixa-me ouvir um pouco – pediu Gaston já retirando os headphones da cabeça calva do amigo.
Taupe agitou os ombros. Uma pausa era mesmo aquilo que ele estava a precisar.
O informático esticou as pernas sobre a secretária, reclinou-se na cadeira, dobrou os braços atrás da cabeça e fechou os olhos. Apenas os pés pendiam de um lado para o outro, como se alguém os estivesse a embalar. Os calcanhares aguentavam-se firmes sobre a superfície, a meros milímetros do teclado.
− Era uma surpresa. – Gaston estremeceu de raiva ao ouvir a voz irritante do príncipe. − Vinha preparar um ramo de rosas para oferecer-te logo à noite. – A noite do baile, constatou. Aquela era uma prova incontestável de que o príncipe se estava a interessar de fato na moça. Isso não era uma novidade para Gaston. − Daí a tesoura no bolso.
− Tecnicamente fui eu quem colheu essa rosa, então... − A voz melodiosa de Liberty fez acelerar o coração do duro homem que ouvia clandestinamente aquela conversa particular entre os dois prometidos. A visão do rosto angelical da garota ocupou todo o seu pensamento. Ele sentia como se estivesse frente-a-frente com ela e a sua doçura lhe fosse dirigida a ele. − Mas a intenção é o que conta. Obrigada.
− O principezinho precisou de encontrar muitas rosas e viajar por inúmeros mundos para perceber que sua rosa era única. Apenas ela o tinha cativado, e ele a ela.
− Ah! Me poupem! – Gaston atirou com os headphones para cima da secretária. Taupe se endireitou na cadeira em sobressalto. – Esse cara nem sabe fazer uma cantada direito! Mulher não gosta de homem meloso – afirmou convicto, cruzando os braços sobre o peito.
− 'Tá, mas não desconta no material. – Taupe segurou nos headphones e os afagou junto a si. Parecia um pai protegendo sua cria da ameaça de um predador.
Atrás deles, Lefou se levantou do conforto do seu lugar e largou, por fim, a comida, que tinha sido a única coisa capaz de atrair a sua atenção até àquele momento.
− Posso ouvir eu, agora? – questionou o homem pequeno se aproximando dos companheiros.
As sobrancelhas de Côté arquearam-se. Ele analisava o amigo como se este tivesse sido abduzido ou possuído por alguma entidade de um plano paralelo. De fato, por muito sem graça que fossem as rações que lhes serviam de alimento, nunca se vira Lefou trocar a comida por qualquer outra coisa.
− Preciso de aprender o que não devo dizer num encontro amoroso – explicou-se.
O homem careca reprimiu o sorriso com algum esforço e entregou os headphones a Lefou, que se sentou de seu lado direito.
− Como se fosse ter algum no futuro – comentou Gaston entredentes. Taupe, dessa vez, não conseguiu segurar o riso.
− Mas eu não estou ouvindo nada, gente. – Lefou bateu com os dedos indicadores nos dois auriculares. – Acho que você os estragou, Gaston – proferiu abatido.
Os outros dois, alarmados, olharam simultaneamente para o ecrã que continuava a registar ondas sonoras, mas agora de baixíssimo comprimento. A conclusão era óbvia. O equipamento não se tinha estragado, apenas se fizera silêncio entre os dois prometidos.
− Dá cá isso. – Taupe retirou os headphones de Lefou antes que este pudesse sequer reclamar. – Tu não vê que eles estão... − Ele calou-se repentinamente assim que as suas orelhas foram acomodadas pelas almofadas dos auriculares. – Ela está gemendo?!
Côté precipitou-se na direção do companheiro, agarrando-se ao equipamento que este detinha sobre a cabeça como se a sua vida dependesse disso.
Não tardou para que os seus ouvidos testemunhassem o cenário que os seus olhos não conseguiam alcançar. Mas a cena imaginada era tão ou mais dolorosa do que a simples e dura realidade. Gaston levou as mãos às têmporas que latejavam e cerrou os olhos para tentar não ver. Mas era inevitável, as imagens estavam cravadas em seu cérebro. Os sons de gemidos baixos e da subtil sucção de lábios amplificavam-se mil vezes na sua mente, alimentando as imagens que se tornavam cada vez mais reais.
De um momento para o outro, o silêncio tomou lugar. As linhas no monitor eram agora mais estáticas, mas ainda eram capazes de registar o respirar ligeiramente ofegante dos dois prometidos. E esse momento foi ainda mais tortuoso do que o anterior. Côté teve a esperança vã de ouvir Liberty a colocar o príncipe no seu devido lugar. Uma estalada, um empurrão, um xingamento, uma mensagem clara de que não queria nada com ele ou até o simples som de passos apressados em fuga. Qualquer coisa seria melhor do que o silêncio absoluto da aceitação.
Ele tinha que enfrentar os fatos. Houve um beijo, um longo beijo, claramente correspondido. E isso significava que Liberty poderia estar apaixonada pelo príncipe. Uma constatação que não agradava a Gaston. Ele dizia a si próprio que era pela causa, que isso poderia interferir com os planos deles. Não era de todo mentira, mas o que mais pesava, naquele momento, não era o seu cérebro, mas o seu coração inchado de ciúme, inveja e ódio.
− Mudança de planos – disse decidido. Os companheiros olharam-no de testa franzida. – Liberty tem de ser relembrada dos ensinamentos do pai o quanto antes. E vamos aproveitar o baile de hoje à noite para isso.
Lefou revirou os olhos pressentindo problema. Alterações de última hora eram demasiado perigosas. Ainda se fossem justificadas, mas o seu instinto dizia-lhe que o seu melhor amigo estava a deixar ser-se guiado por sentimentos e não pela razão.
− Vai tudo correr como queremos – garantiu Gaston, mais para si mesmo do que para os companheiros. − Antes do casamento, nós vamos conseguir entrar na mansão real e acabar com tudo de uma vez por todas.
32 dias antes
O processo passava de mão em mão na mesa redonda. Os olhos ávidos por encontrar a escolha óbvia que Gaston jurava ter achado.
− Os registos de Beaumont são, de fato, impressionantes – constatou Dimitri, o homem mais idoso do grupo, depois de ler os ficheiros que Côté havia reunido. – Ele nunca me contou que andava a treinar a filha.
Gaston sorriu satisfeito. Ele analisara mais de cem dossiers até chegar àquele achado. Inúmeros registos de membros anteriores do grupo antes de terem conseguido ocupar em definitivo a cave abandonada da fábrica de refeições, onde fora instalado o computador produzido de raiz por Taupe.
− Nem sei porque estamos sequer a considerar esta hipótese – desabafou Claude, uma mulher de meia-idade, do outro lado da mesa. − Gérard abandonou o grupo há anos, com a morte da mulher.
− Mas ele foi um dos elementos mais ativos enquanto esteve connosco – relembrou Dimitri. Quatro dos quinze presentes acenaram em concordância, os únicos que já pertenciam ao grupo nessa altura, à exceção de Claude que continuava ressentida com o abandono do seu grande amigo de infância. – E não estamos a considerar o pai, mas antes a filha.
− A questão é que ela é apenas uma opção por causa de oito míseros anos de treino – contra-argumentou a mulher. As suas mãos agitavam-se no ar à medida que falava. − Depois disso a vida dessa criança descarrilou.
Uma das leis mais sagradas do grupo era manter total sigilo, especialmente perante crianças, que acabam não tendo consciência do peso de um segredo como aquele. Não havia necessidade de envolver e pôr em causa pequenas crianças inocentes, atormentando-as com tal responsabilidade. Todavia, Beaumont, sem revelar nada à filha, preparara-a a pensar e a agir como uma verdadeira republicana. Ensinara-a a temer a monarquia, mas não se deixar imobilizar por esse medo. Levara-a a ambicionar por uma realidade melhor para além da redoma e a idealizar um futuro mais justo.
Não se poderá dizer que foi apenas o ensinamento do pai a moldar as atitudes e comportamento da primogénita. Gérard tentara trilhar o mesmo caminho com a filha do meio, mas sem qualquer sucesso. Segundo os registos do homem, Éliane mostrava pouca resistência à frustração, uma ambição pouco saudável, repleta de sonhos vazios e irrealistas, e um fascínio desmedido por grandeza.
− Pedi ao Taupe para aceder aos registos das provas dela – informou Gaston de semblante sereno. Ele já estava preparado para receber alguma resistência. Era um dos elementos mais novos do grupo. E, apesar de todas as vozes serem ouvidas e respeitadas em torno daquela mesa, os anos de experiência traziam um certo prestígio inegável. – Por incrível que pareça, ela não realizou nem uma única prova da seleção ao longo de todos estes anos.
Murmúrios se alastraram num círculo quase perfeito. A onda de som era interrompida em pontos aparentemente aleatórios. Claude apenas abanava a cabeça em descrença, ela não se deixaria impressionar por tão pouco. Taupe e Lefou, companheiros e cúmplices de Gaston, mantinham-se de olhos erguidos e em posição, preparados para defender o amigo em caso de necessidade. Já Dimitri olhava de forma demorada o jovem Côté, conseguindo avistar nele um potencial que desconhecia.
− Ela conseguiu dar a volta ao sistema – reforçou Gaston. – Querem prova maior de que ela está contra a monarquia e as suas estúpidas regras? Ela é uma republicana! – Ele embateu com o punho fechado sobre a mesa, movido pela adrenalina do momento. LeFou, sentado ao seu lado, encolheu-se no lugar com o susto. – E, ao contrário de nós, ela sempre foi uma republicana – acrescentou mais controlado, ciente que um discurso demasiado empolgado poderia transparecer amadorismo.
A maioria acenava afirmativamente com a cabeça. Não eram ainda movimentos decididos, tinha que haver algum espaço para reflexão, mas aquilo foi o suficiente para Côté erguer o queixo másculo para a multidão que o cercava.
− Estaremos a arriscar demasiado. – A voz de Claude já começava a irritar Gaston. Parecia que ela tinha tirado o dia para o contrariar. − Ninguém aqui a conhece. – Os olhos de âmbar da mulher percorreram, um a um, os rostos dos presentes, detendo-se, por fim, na expressão dura de seu oponente. − Pelo que sei, é uma jovem reservada que vive para tomar conta da família. A escolha mais segura é a Charlotte. – A garota de longos cabelos negros sorriu ao seu lado. − Continuo convicta disso.
− Charlotte é prestativa e esforçada – concordou Taupe, porém, o seu tom de voz deixava antever que isso estava longe de ser suficiente. – Mas... Eu estive a estudar as provas, é complicado contornar o sistema e Liberty, não só, foi a única a tentar, como foi a única que o conseguiu. A garota tem fibra.
A jovem dos cabelos negros baixou os olhos, constrangida por ser considerada desadequada para o cargo. Ela juntara-se aos republicanos há menos de um ano, pouco depois de atingir a maioridade, por influência da tia, Claude Dubois. Apesar da entrada não ter sido por mérito próprio, ela queria muito mostrar que poderia ser útil à causa.
− E se desconfiarem? – questionou Dimitri pensativamente. Novas inquietações começavam a surgir-lhe. − Se forem ver os registos dela, chegarão rapidamente à conclusão que o programa foi hackeado.
− Eu posso invadir o sistema informático da seleção para implantar resultados falsos nas provas dela.
− Isso, sim, seria arriscado, Taupe – declarou Gaston. Entrelaçando as próprias mãos sobre a mesa e trazendo o tronco mais para a frente, ele continuou, − Mudar as linhas de código da tiragem do nome da selecionada já será uma tarefa árdua, imaginem estar a implantar dezenas de dados falsos. Eles não vão desconfiar de um processo com centenas de anos. Nunca falhou, porque haveria de falhar agora? – Ele fez uma pausa para que os companheiros pudessem assimilar o que ele dizia. – Mas prezamos pela democracia, então vamos a votos. A minha sugestão é simples. Durante as próximas duas semanas, irei pessoalmente investigar a garota. Se ela tiver tudo o que é necessário, será ela a escolhida. Se não... − Ele fixou o olhar duro e determinado em Claude. − Charlotte assumirá a responsabilidade. – A jovem, do lado da tia, engoliu em seco nervosa com a possibilidade. Dito daquela maneira, ela já não tinha a certeza de querer ser ela a selecionada. – Todos a favor levantem a mão.
A mão de Lefou precipitou-se no ar, antes mesmo de Gaston terminar de falar. Taupe, seguro, seguiu-lhe o exemplo. Contudo, foi a aceitação de Dimitri que despoletou uma onda enérgica de braços em direção ao teto da pequena cave da fábrica. Escusado será dizer que Claude se manteve à defesa, agarrada às suas certezas, de braços cruzados sobre o peito. Internamente, ela desejava que aquilo desse errado e que Liberty se afigurasse como uma grande desilusão. A jovem Beaumont nem faz parte do grupo e já lhe dão mais crédito a ela do que à minha sobrinha, pensou, revirando os olhos para aquele cenário que lhe revolvia as entranhas. Ela sentia como se a estivessem a apunhalar pelas costas.
Ao ver a própria sobrinha a erguer timidamente a mão no ar, Claude abriu a boca horrorizada. Os seus olhos estreitaram-se em sinal de aviso, mas a garota olhou para o outro lado da mesa, fingindo nem notar a repreensão da tia.
Gaston Côté sorrio em escárnio. Ele tinha vencido aquela batalha e sentia-se pronto para enfrentar a guerra. Perder não era opção. Liberty seria o seu Cavalo de Troia.
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