Capítulo 25 - Professores exigentes

As faces de Liberty enrubesceram com o comentário desadequado do criado. Ela não poderia aguentar nem mais um segundo calada, não quando a ofendiam daquela maneira.

− Como se atreve, Lumière? – A garota levantou-se precipitadamente, fazendo a bebida quente, dentro da chávena ainda cheia do criado, verter um pouco sobre a pequena mesa da biblioteca. Algumas pingas aqueceram os dedos elegantemente esticados de Lumière. Ele pegava na chávena de uma forma impressionantemente aristocrática. Pessoas experientes na matéria, diriam que não obstante um certo exagero. − Eu não sou uma oferecida!

− Não é aquilo que eu penso – afirmou veementemente. – Estou claramente em personagem, caso não tenha reparado. – As suas longas pernas, voltadas na direção de Liberty, cruzaram-se elegantemente uma sobre a outra. O homem empertigou ainda mais os três dedos que não seguravam na pequena alça da chávena e bebericou subtilmente o conteúdo já morno. – Isto faz parte do treino.

− Como é que me ofender poderá fazer parte deste estúpido treinamento? – O criado recriminou, com um subtil trejeito da cabeça, o tom demasiado alto que a selecionada empregava para se dirigir a ele. Já para não falar da linguagem vulgar. − Pensava que a intenção era ensinar-me a comportar-me durante o "tea-time"?

Uma tradição que nem francesa era, exasperou-se ao ocupar de novo o seu lugar. A sua própria chávena tremeu na mesa, talvez ofendida com os seus pensamentos acusatórios. Ou talvez apenas tenha sido por o seu pé ter embatido numa das pernas da mesa, quando a moça caiu pesadamente sobre a cadeira.

− O chá foi apenas uma desculpa para treinar algo que precisa, visivelmente, de ser melhorado.

− E o que seria isso?

− A sua maneira intempestiva de ser. Diz o que quer e o que pensa. Às vezes, temos de engolir alguns sapos. − Ele tragou mais um pouco do líquido, mas dessa vez a infusão pareceu-lhe ainda mais azeda com a alusão aos animais viscosos que usara. Em vão, porque a jovem ao seu lado nem sequer reconheceu a expressão invulgar. – A instrução foi para se manter calada e sorridente, acenando ocasionalmente com a cabeça, apenas isso – repreendeu o criado, pousando a chávena sobre o pequeno prato redondo. Que bebida mais desenxabida, pensou de cara feia, seguindo por um instante o balancear nauseante do líquido lá dentro.

Não tinha sido atribuído a ele a responsabilidade de iniciar a jovem no comportamento feminino socialmente aceitável para uma futura princesa. Todos os seus trejeitos claramente exagerados deviam-se a anos de observação da conduta da rainha. Não estando em causa a sua capacidade de observador, a sua execução como imitador deixava muito a desejar. Essa tarefa árdua ficara nas mãos de Nicolette Armoire, que começaria as aulas com a jovem precisamente no dia seguinte. Lumière apenas tentaria passar uma parcela do seu carisma a Liberty, que, se absorvesse um décimo sequer, faria, certamente, um brilhareto.

− Não vejo como a província poderia beneficiar de uma boneca como rainha – comentou a selecionada ao lembrar-se do único brinquedo que tinham em casa. Anastasie ainda brincava com ela, mas anos antes esse mesmo objeto tinha entretido alguns dos tempos monótonos das irmãs mais velhas. A boneca limitava-se a sorrir, sorria sempre, nunca estava triste ou sequer pensativa. Não tinha vontade própria. A imagem da rainha Florianne não estaria certamente muito longe disso, mas ela recusava-se a ser assim.

− Uma rainha tem de ser um camaleão, moldar-se às diferentes situações sociais que lhe são exigidas. E, por vezes, ser, sim, uma boneca.

− Não achas que já chega de analogias com animas já extintos há mais de uma centena de anos? − A expressão facial da futura princesa contorceu-se em desagrado. − Isso não melhora em nada as coisas.

Lumière suspirou arreliado. Não tinha sido ele a insinuar no dia anterior que a moça obteria facilmente sucesso naquele tipo de aprendizagens? Até poderia ser verdade, mas ele não se imaginou como o professor, senão não teria dito tal coisa. No entanto, quando Elroy solicitou a sua importante contribuição no treinamento da jovem, ele não teve como recusar. Ainda para mais, depois de ver enaltecidos, pelo próprio futuro monarca, muitos dos seus predicados. Claro que o criado não era ingénuo e sabia perfeitamente que a equipa escolhida não poderia ser outra. Tudo estava a ser feito em segredo absoluto, e o que a garota faria dali para a frente nos seus tempos livres não poderia chegar aos ouvidos do rei. Por isso, o príncipe apenas confiara nos seus mais fiéis criados.

− Big Ben mostrou uma paciência louvável enquanto me ensinava todos aqueles fatos entediantes da parte da manhã – espicaçou Libby.

O criado arregalou os olhos por ver a sua competência questionada. Se o amigo tinha conseguido, ele também não desistiria assim tão facilmente. Não que as aulas teóricas diurnas detivessem da mesma demanda das aulas práticas. Lumière achava que ao companheiro tinha calhado em sorte a parte fácil da coisa. A Big Ben apenas lhe era exigido que conseguisse meter na cabeça da jovem nomes e leis, que esta apenas teria de recitar ou recordar quando interpelada. Já Lumière teria a árdua tarefa de camuflar a personalidade demasiado vincada da jovem. Porque mudá-la, mudá-la mesmo seria impossível.

Arreganhando as mangas, o criado voltou a soltar a língua e deixou escapar, propositadamente, críticas pesadas que a selecionada não ouviria eternamente calada.

O punho fechado da delicada moça embatia com uma desmedida força sobre a massa branca que ainda estava demasiado irregular. Alguns gromos espreitavam desafiando-a a continuar a tortura. A mesa da cozinha, coitada, estremecia a cada nova investida.

− Não me lembro de ter colocado no teu plano de treinos a aprendizagem... − a voz jocosa do príncipe surgiu atrás dela. Liberty estreitou o olhar na direção da porta e o príncipe teve de fazer um enorme esfoço para segurar o riso. Lumière já lhe havia feito o relato do que acontecera em aula e a irritação dela não o apanhou desprevenido. – Bom, a aprendizagem disso – acrescentou, apontando com um certo pesar a massa maltratada entre as mãos da selecionada.

− Então foi você o responsável pelas tortuosas horas que passei hoje na biblioteca com o Lumière! – A mão dela voltou a embater na massa teimosamente resistente sobre a mesa. − Talvez alguns dos impropérios tenham sido até ideia sua, não?

− Não me responsabilizo pelos métodos, apenas pelo conteúdo programático das aulas. – O príncipe avançou para a frente da selecionada com a mesa a servir de escudo entre os dois. – No entanto, parece-me que não teve grande sucesso. Talvez deva acrescentar mais umas duas... Talvez três aulas práticas extras iguais às de hoje.

− Tudo menos isso!

Elroy riu, por fim, ao ver o desespero da jovem. Ele sabia o quanto Lumière poderia ser bem desagradável, quando queria, e chegava mesmo a rachar o insuportável. Ainda assim, o encanto e magnetismo do criado faziam esquecer facilmente esses momentos.

− Não era você que fazia questão de receber este treinamento? – O sorriso no rosto de Elroy fez os músculos de Liberty descontraírem. Isso e a recordação súbita da noite anterior, está claro.

− Acho que me começo a arrepender amargamente disso.

Um sorriso luminoso preencheu o rosto da selecionada e o príncipe percebeu que os seus esforços dissimulados para a acalmar surtiram efeito.

– Você quer ajudar-me? – questionou Liberty de repente. Ela levantou a mão da massa, que parecia não a querer largar. Um fio longo e peganhento seguiu teimosamente o seu movimento, erguendo-se da bola disforme.

− Parece verdadeiramente tentador – respondeu irónico. – Mas não, obrigado.

− Vá lá! – pedinchou a garota, lançando-lhe um olhar, que não fosse aquele contexto, poderia ter sido interpretado como uma forma de o seduzir. Talvez o príncipe se tivesse esquecido disso mesmo, porque as suas pernas tremeram com o que vira.

Sem dar por isso, Elroy aquiesceu ao pedido que já nem se lembrava do que se tratava. O seu pomo de adão desceu e voltou a subir tal era a secura da sua garganta.

− Que bom! Vem cá que eu te ensino.

O homem acordou do transe e recriminou-se pela sua fraqueza. Agora não há como voltar atrás, decidiu e sem ânimo contornou a mesa, escolhendo de propósito o caminho mais longo.

− Tem que a amassar assim. – Ela revolveu a bola entre as mãos de forma enérgica, calcando, depois, alternadamente, com uma mão e a outra. – Sempre que encontrar um gromo, aperta-lo, para que desapareça da massa. E, a minha parte preferida, − acrescentou radiante, − descontas toda a tua raiva acumulada, assim. – Ela esmurrou a bola com três golpes sucessivos. E a mesa, coitada, voltou à sua dança de estremecimento de há pouco.

− Lembra-me de não me meter contigo – proferiu o príncipe numa expressão falsamente assustada. O canto do seu sorriso subiu, desmascarando-o muito rapidamente.

Liberty riu disfarçadamente para a massa, que tentava dividir em duas porções equivalentes.

− Toma. – Uma bola de massa caiu à frente do príncipe. Ele fitou aquele pedaço esbranquiçado inerte sobre a mesa sem acreditar no que se havia metido. – Do que você está esperando? Toca a trabalhar!

A expressão do futuro monarca, nesse preciso momento, foi impagável. A jovem percebeu, pelo canto do olho, que ele a olhava abismado. Ela limitou-se a sorrir e a amassar como se nada fosse com ela. Ela havia mesmo acabado de lhe dar uma ordem? Certamente que não, até porque não haviam testemunhas para o corroborar, e se ela o tivesse feito, Elroy não teria se debruçado à bola sem graça com tanto afinco como o fez.

− Porque estamos a fazer isto, mesmo?

− Para ajudar a Madame Potts – respondeu enquanto as suas mãos trabalhavam loucamente para deixar a massa no ponto. – Enquanto nós estamos aqui a tratar do pão, ela pode estar a dar banho ao filho descansadamente. Ela deu-me todas as instruções necessárias. Não vai ser difícil – acrescentou, mas os seus braços latejavam em prova do contrário. Ela espiou um pouco o trabalho de seu colaborador e contorceu o nariz. – Mais energia! Desse modo, vai ser noite e ainda vamos estar aqui esperando a tua parte da massa ficar pronta.

− Nossa! Que professora mais exigente que eu arranjei – protestou achando alguma graça àquele lado mais mandão dela. Os seus olhos detiveram-se numa larga taça de pó ao centro da mesa. − Para que serve isto? – Interrogou, puxando a taça para mais perto de si.

− Pelo que soube, é farinha e deve ser usada quando os nossos dedos começam a ficar grudados na massa.

− Entendi... Talvez dê jeito – murmurou ao sentir dificuldade em tirar os dedos da mão direita de dentro da mistura peganhenta.

Ele mergulhou a mão esquerda na taça e logo depois a direita, tentando agarrar o máximo de pó que conseguiu. Levantou as duas mãos fechadas e totalmente brancas, mas antes de jogar toda aquela quantidade absurda sobre a bola quis se assegurar que não cometia nenhum erro.

− É suficiente?

Liberty, compenetrada no trabalho, nem repara no que o seu colaborador fazia. Quando a jovem levantou o rosto, desatou a rir ao deparar-se com as duas mãos estendidas na sua direção. Dois gigantes amontoados brancos repousavam castamente nas palmas do príncipe.

− O que foi? – A ingenuidade de Elroy só serviu para aumentar a intensidade da risada incontrolável da selecionada. – É muito?

− Óbvio! A não ser que queira... − Ela tentava conter as gargalhadas, mas o olhar alarmado de Elroy não facilitava. Ele parecia uma pequena criança apanhada numa das suas piores travessuras. − A não ser que queira usar a farinha como nova decoração para a cozinha.

− Decoração, diz você? É, isso acaba de me dar uma ótima ideia.

Sem parar de rir, Liberty apenas olhou um pouco curiosa para o príncipe, sem perceber que ideia seria essa. Mas muito antes dela chegar sequer a prever alguma hipótese, as mãos de Elroy fecharam-se e foram lançadas para trás dele, como se em preparação de arremesso. A jovem apenas teve tempo de recuar um passo e fechar os olhos, quando uma quantidade absurda de pó branco se espalhou por todo o seu rosto, cabelo, ombros...

− E não é que é ótimo para decoração, mesmo – comentou travessamente. Agora era a vez de ele rir desalmadamente.

− Se é guerra que tu quer, é guerra que tu vai ter – ameaçou a jovem, lançando-se na direção da taça, antes que Elroy a pudesse deter.

Ela agarrou o máximo de farinha possível e arremessou-a de imediato contra o príncipe, sem lhe dar tempo sequer de processar o motivo dela se ter debruçado sobre a mesa à sua frente. O homem ficou todo salpicado de branco e chegou mesmo a cuspir uma boa parte do pó, que entrara pela sua boca escancarada pelas gargalhadas que lhe vinham do âmago.

− Oh! Você não foi capaz... − O príncipe acenava negativamente com a cabeça em descrença.

A garota chacoalhou os ombros e ergueu as mãos brancas no ar, realçando as evidências do crime. Como se ele precisasse disso!

− Parece que fui.

O que aconteceu a seguir foi algo verdadeiramente imprevisível. Ora como é que alguém iria sequer adivinhar que um dia os futuros monarcas de Villeneuve entrariam numa épica batalha de farinha? As mãos deles mergulhavam à vez na taça, esfregando-se depois na cara do oponente. E se já não fosse essa munição das mais estranhas que já se viu num campo de batalha, as expressões de alegria e os risos que se propagavam pela cozinha eram totalmente contraditórios com a definição de guerra.

Se outrora os dois guerreavam utilizando palavras que os feriam mais do que balas, naquele dia os toques enfarinhados que trocavam em tom de brincadeira, a propósito de uma batalha prometida que era tudo menos uma batalha, eram uma prova incontestável da cumplicidade crescente entre aquele homem e aquela mulher.

As partículas brancas dançavam entre os dois, como verdadeiros flocos de neve, que não chegavam nunca a derreter, todavia cobriam o chão com a sua cor singela. Efetivamente, aquilo aproximava-se mais de uma dança entre dois amantes, do que a uma batalha entre inimigos.

− O que é que vocês estão fazendo à minha cozinha? – Madame Potts levou as mãos à cabeça alarmada com o cenário à sua frente. Já havia até farinha sobre o fogão. O seu tão amado fogão! A preocupação impediu-a de notar o clima óbvio entre Elroy e Liberty.

− Nada – responderam os dois em uníssono, escondendo as mãos brancas atrás das costas. Um gesto ridículo, visto que eram exatamente as mãos que se esperavam estar brancas, não todo o resto do corpo.

− Está mais que visto que a vossa vocação não é para a cozinha. Desandem os dois, vá! Vão tomar um banho, que bem precisam!

Os dois entreolharam-se e riram com a figura um do outro. Quase nem dava para discernir os traços únicos dos dois debaixo daquela ininterrupta camada branca.

− Onde é que isto já se viu? – reclamou a cozinheira enquanto analisava as duas bolas de massa abandonadas sobre a mesa, toda enfarinhada. Os seus ajudantes já marchavam, de cabeça baixa, para fora da cozinha. Agora eram os dois, as crianças apanhadas em flagrante delito. – Cada um para a sua banheira! – alertou, de súbito, a criada. Como se isso fosse sequer necessário salientar.

Ela pensava em duas crianças, claro, que, depois de apanhadas juntas a fazer uma enorme barafunda, teriam certamente de ser separadas. No entanto, quando os dois se olharam, mais uma vez, já junto à porta, julgaram ambos a insinuação nada inocente, e os pensamentos eram tudo menos os adequados para duas crianças.

À falta de neve em Villeneuve, temos uma batalha de farinha! kkkkkkkk 

Espero que tenham gostado.

Até ao próximo capítulo.

Bjs. 

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