Capítulo 24 - Confidências

− Têm que admitir que é estranho – realçava Lumière sentado à cabeceira da mesa da cozinha, com Babette ao seu colo.

Big Ben, sentado ao lado do amigo, olhava para os dedos como se estivesse perdido nas contas complexas que executava mentalmente.

− Já se passaram 8 dias desde a seleção – falou Nicolette Armoire pensativamente.

O mordomo encarou-a de cara trancada ao perceber que a criada e modista da família real fizera as contas muito mais rápido que ele. No entanto, o sorriso que ela lhe lançou fê-lo sentir-se amolecer.

− Talvez estejam a dar-lhe tempo para se adaptar – concluiu Madame Potts, não dando importância ao problema levantado por Lumière. Ela remexia o tacho com afinco, preparando a sobremesa para o dia seguinte.

− Não me recordo de terem feito o mesmo com a rainha Florianne – comentou Big Ben fazendo uso da sua memória prodigiosa. Ele era apenas uma criança na altura, mas acompanhou de perto todo o processo da seleção. Para o empregado, uma aprendizagem como outra qualquer. Era importante que ele, como futuro mordomo, soubesse como agir numa próxima seleção.

− O caso de Liberty é diferente – declarou a cozinheira agitando a colher de pau na direção da mesa. Algumas gotas de geléia de groselha verteram no chão.

− O fato de ela ser difícil só deveria fazer com que o treino fosse um assunto ainda mais premente. – Os três criados à mesa balançaram a cabeça simultaneamente de forma afirmativa, incentivando Lumière a continuar o raciocínio. − A garota é teimosa, mas não me parece um caso perdido. Ela é bastante curiosa e educada, preenche os requisitos básicos necessários para obter sucesso no treinamento.

Todos os presentes à mesa voltaram a menear a cabeça em concordância, já Madame Potts virou-se de novo para o fogão, desistindo daquela discussão sem sentido. Os criados não deveriam de comentar a vida dos patrões, pensou mergulhando a colher de pau no tacho fundo.

− Pois, coitada... − Foi Babette quem interrompeu o silêncio que se havia instalado na cozinha. A sua pequena e sedutora mão afagava a perna do namorado que se remexia nervosamente debaixo de si. − Ela anda por aí a deambular de um lado para o outro. Coitada, − voltou a criada a repetir, − se não fosse a biblioteca, morreria de tédio. – A perna de Lumière imobilizou-se, por fim, e a namorada não sabia se tinham sido as suas palavras a surtir tal efeito, ou o seu toque relaxante.

− O baile aproxima-se. Será que ele quer que ela faça má figura?

− Ele quem? O príncipe? – questionou Big Ben sem conseguir acompanhar os pensamentos conspiratórios do amigo.

Madame Potts e Lumière suspiraram simultaneamente. A cozinheira por achar ridícula a insinuação de que o seu menino se queria ver livre da jovem encantadora. O criado a ponto de exasperação, por nunca ninguém entender o que ele falava. Primeiro Elroy, agora Big Ben!, pensou Lumière inspirando profundamente antes de explicitar o que para ele já era óbvio.

− O rei. – O criado fez um esforço tremendo para sussurrar a resposta. Ele temia que as paredes tivessem ouvidos, mais-valia jogar pelo seguro.

− Com que intuito? – Nicolette debruçara-se sobre a mesa empolgando-se com o rumo da conversa. A sua voz saíra no mesmo tom conspiratório usado por Lumière.

Aquela discussão começava a revelar-se mil vezes mais interessante do que os mexericos trocados com os guardas, os únicos que tinham permissão para se ausentar da mansão para as suas rondas diárias pelas aldeias. Não que fosse algo assim tão extraordinário, afinal de contas a melhor fofoca que tinha chegado aos ouvidos de Madame Armoire, até então, era a de um homem urinando nas próprias calças quando interpelado por um guarda que apenas queria saber as horas.

− Ora! – Lumière inclinou-se para a frente, levando Babette com ele. O mordomo, não querendo ficar de fora, fez o mesmo. − Para que seja desseleccionada – murmurou. Os seus olhos espreitaram a câmara quase impercetível ao fundo da cozinha. Um gesto irracional. Ele sabia perfeitamente que não precisaria de se preocupar. As câmaras espalhadas pela mansão só captavam imagens, não o som.

Os três criados abriram a boca em verdadeiro espanto e isso apenas serviu para incendiar a vontade de Lumière de aprofundar a especulação.

− Já deu para perceber que o rei não foi com a cara dela. Convenhamos, ela também não facilita, − argumentou num tom de voz que se espalhou pela cozinha, − até fez o príncipe desobedecer a uma das leis mais sagradas de Villeneuve! Big Ben, − os seus olhos dardejaram na direção do amigo, − tu estavas lá quando o monarca quis expulsar a garota do quarto do filho e até falou na hipótese de uma nova seleção. − O mordomo anuiu, fazendo as criadas à mesa exalarem um som de profundo choque. − Se não fosse o príncipe a fincar a sua posição... − espicaçou Lumière, deixando uma névoa de suspense no ar. Como ele adorava um bom drama!

− Sim, − a voz sedutora de Babette quebrou mais uma vez o silêncio, − ele não pode fazê-lo diretamente agora. Por isso, está a tentar de uma outra forma – concluiu a criada, deixando o namorado a sorrir de orgulho pela sua perspicácia. Ela, sim, o compreendia sempre.

− Deixando o povo contra a garota. – Um ânimo de revolta transbordou através das cordas vocais de Lumière. − Mostrando que ela não se consegue adaptar! – gritou em êxtase, batendo na superfície da mesa com a palma da mão aberta. A namorada pulou no seu colo com o susto. A excitação de ter desvendado o mistério corroía-o por dentro.

Aquele baque sonoro na madeira resistente, testemunha ocular e sensitiva daquela discussão perentória, foi o suficiente para derrubar a compostura dos criados à mesa. Cada um começou de imediato a lançar a sua opinião de forma imperativa, ninguém ouvindo ninguém, talvez nem a sua própria voz eles conseguissem ouvir no meio daquela cacofonia.

− Se assim for, o jogo poderá voltar-se contra o jogador. – A voz experiente de Madame Potts foi abafada por completo pelo alarido atrás de si. Palavras sábias desperdiçadas numa cozinha onde muitos julgavam que nada de interessante ocorria. O próprio guarda que se ria de forma desenfreada para o ecrã que mostrava aquela divisão da mansão, assim o pensara, recostado na sua cadeira da sala de controle. Não podendo ouvir o que diziam, a sua cabeça imaginava cenários hilariantemente ridículos para aquela discussão entre os criados. Até se punha a dublar as vozes deles, à falta de entretenimento melhor.

No entanto, existia uma testemunha um pouco mais atenta que observava e ouvia toda aquela conversa. Uma presença que o guarda extremamente competente na sala de controle não detetara, tal era a sua absorção nos diálogos que se entretinha a improvisar. Se a mansão dependesse apenas da sua vigília, já teria sido invadida há muito! O que lhe valia era que haviam outros guardas espalhados pelo exterior e interior da casa. E, pelo menos, daquela vez, não era um invasor.

Pela fresta da porta entreaberta da cozinha, Liberty era assoberbada por informação que não pedira. Ela apenas queria ir buscar um copo de água, o último recurso em que pensara para aplacar a insônia que a fizera revolver na cama durante quase uma hora. Porém, quando se apercebeu que falavam dela, não conseguiu esquivar-se da sua curiosidade.

Com o coração aos pulos, a futura princesa saiu daquele corredor na direção contrária à da cozinha, sem nenhum copo de água e ainda mais desperta do que antes.

Afinal, parecia que as paredes sempre tinham ouvidos.

Dois dias. Dois dias se haviam passado sem o príncipe pousar os olhos uma vez sequer na sua futura esposa. Andava a evitá-la, claro. Acreditava piamente de que essa era a forma mais fácil de solucionar todo aquele enigma que o inquietava desde aquela conversa com o rei.

O tempo parecia fazer tudo para ajudá-lo, arrastando-se mais morosamente naqueles últimos dois dias. Elroy tentara desesperadamente encher a sua cabeça com alguma tarefa mais frutífera do que ficar a fitar o teto morto do quarto. Mas nada parecia desviá-lo eficazmente dos pensamentos desenfreados que lhe corroíam a mente. Ainda assim, ele não se encontrava mais próximo de uma conclusão para toda aquela história.

Será que Liberty é uma republicana que apenas me quer tirar do trono?, a questão voltou a assomar-lhe à mente, pela centésima vez naquele dia, ao olhar o seu reflexo no espelho embaçado do banheiro. A imagem deformada do rosto que via parecia acompanhar melhor aquele seu corpo marcado para a eternidade. Talvez o espelho estivesse apenas a refletir a verdadeira natureza da sua alma, a vê-lo verdadeiramente. Ao menos, era nisso que ele acreditava. Talvez eu o mereça, suspirou ao passar a mão pelo espelho à sua frente. Quatro grossas linhas cortaram o rosto daquele que Elroy pensava ser o seu verdadeiro "eu". Os olhos azuis acinzentados revelados por detrás da neblina.

O futuro monarca ajeitou melhor a toalha branca em volta da sua cintura ao ouvir a porta do seu quarto a abrir. Deu uma sacudida nos cabelos negros molhados e saiu do seu banheiro privativo decidido a enxotar o seu criado inconveniente, que o decidira importunar àquelas horas da noite.

− Lumière, eu já disse que não quero... − começou o futuro monarca, mas a voz emudeceu-lhe a meio. À sua frente, Liberty, com uma camisa de dormir rendilhada e negra, a cor a que ele já começava a associar à bela moça, olhava-o boquiaberta. Elroy associou o choque da jovem à pele deformada que lhe envolvia grande parte do corpo exposto. – Você não pode entrar assim no meu quarto – falou rispidamente.

− Mas o contrário pode acontecer, não é? – desafiou Libby de queixo erguido no ar, esquecendo-se, por um momento, da falta de trajes do futuro monarca.

O homem desviou o rosto para o chão, executando o movimento contrário ao da jovem. A lembrança daquela noite em que invadira o quarto de Liberty era uma humilhação demasiado grande para ser ignorada. Ele sentia-se como se tivesse acabado de levar um tapa na cara. Mas ele tê-lo feito não justificava, nem muito menos desculpava, o comportamento grosseiro da jovem. A não ser que... Uma preocupação repentina colocou o príncipe em estado de alerta. Os ouvidos atentos a qualquer mínimo barulho vindo do corredor ou do exterior da casa.

− O que é que aconteceu? – interrogou, por fim, ao ver que nada de estranho se parecia passar fora daquele quarto. O seu coração batia descompassado dentro do peito e aquilo surpreendeu-o. Surpreendeu-o que temesse tanto pela vida dela. Naquela fração de segundos, Elroy imaginou o cenário catastrófico dos guardas, a mando de seu pai, estarem em perseguição de Liberty para a executarem pelo crime de traição à coroa.

− Quero saber porque não estou a receber treinamento – respondeu a jovem já não tão certa assim das suas intenções. Ela conseguia quase palpar o receio desmedido do homem à sua frente. Certamente alarmado pela hipótese de a mansão estar a ser invadida, tentou convencer-se, pois a outra hipótese era inconcebível tendo em conta a atitude do príncipe nos últimos dias.

− Deixa ver se eu percebi... − Elroy cruzou os braços à frente do peito. Os seus olhos se fecharam por um momento, enquanto ele inspirava profundamente. Quando ele os voltou a abrir, uma verdadeira tempestade ameaçava ruir a coragem da selecionada. Ela afundou um pouco a cabeça entre os ombros desnudos. − Você invadiu o meu quarto a estas horas da noite para requerer um treino que não quer receber, visto que o lugar de princesa te repudia, não é assim?

A pergunta do futuro monarca tinha uma segunda intenção que não era visível à moça. Astuto como sempre fora, ele aproveitava aquela oportunidade para estudar a jovem. Para perceber, de uma vez por todas, a posição dela face à monarquia.

− Não importa se eu quero receber esse treino, ou não. O que está aqui em questão é estarem a privar-me dele só para me humilharem. – A garota deu um passo em frente e o seu peito inflou com a quantidade absurda de ar que inspirou. − Para fazerem o povo achar que eu não sou capaz de aprender as vossas estúpidas regras. − Despejou as palavras e o ar que prendera dentro de si por demasiado tempo. − De me saber comportar ou de me adaptar a um meio "tão exigente" −, os seus dedos fizeram o sinal de aspas no ar, intensificando a ironia que impusera na voz nessas duas palavras, − como este!

Elroy não gostou de ver o estado alterado de Liberty, de ver aquela raiva contida a emanar do semblante, por norma, sereno, quase angelical, da jovem. Era uma faceta dela que já antevira brevemente noutras ocasiões, porém, naquele momento, a intensidade das suas palavras, da sua expressão contorcida por um sentimento tão negativo, era tudo aquilo que ele pedira, mas não queria realmente ter testemunhado. Não comprovava nada, mas incentivava dúvidas que o estavam a consumir há dias.

Ele poderia ter aproveitado esse momento. Ele poderia ter puxado por aquele lado dela. Aproveitado a sua falta de contenção nas palavras. Se haveria um momento em que ele poderia ter arrancado uma confissão dela, era aquele. Caso houvesse, de fato, alguma confissão a ser feita, aquela era a altura ideal. Mas ele não o fez. Ao invés disso, voltou-lhe as costas.

Embora não tivesse sido planeado, isso apenas serviu para enfurecer ainda mais a jovem.

− Eu ainda não me fui embora! – bramou, avançando atrás dele. Os seus pés delicados embatiam com desmedida força no chão frio do quarto. O príncipe pegou nos trajes de noite que tinha sobre a cama, ignorando a presença cada vez mais próxima da jovem. – Por que você me ignora? – questionou com uma sombra de tristeza a cair sobre si. Ela não se referia apenas àquele momento preciso, mas aos últimos dois dias, e a todas as outras vezes antes disso. O homem à sua frente respirou pesadamente. – Por que você me ignora? – repetiu com um tom de voz mais assertivo.

A mão da selecionada subiu até quase tocar no ombro desnudo do príncipe. Mas Elroy, pressentindo as intenções da jovem, voltou-se a tempo de o impedir.

− Não te estou a rejeitar – garantiu o futuro monarca fixando-se nos olhos marejados à sua frente. – Pelo menos, não ainda, se é esse o teu receio.

A mão, suspensa no ar, deixou-se cair prostrada. Elroy percebeu na expressão magoada da jovem, que as suas palavras tinham atingindo um ponto delicado. Ele não sabia porquê, está claro, mas ele sentiu o ar em torno dos dois ficar subitamente mais denso. E o que poderia fazer ele numa situação como aquelas, senão fazer aquilo que ele sabia fazer melhor? Fugir.

Contornando a moça, ele saiu disparado e fechou-se novamente no banheiro do seu quarto. Enquanto se vestia, os seus pensamentos desembaçavam tal como o espelho à sua frente, já completamente disponível a refletir toda a realidade com que se deparava.

Medo de rejeição. Era isso que explicava a reação exagerada da selecionada ao descobrir que havia sido privada do treinamento. Por alguma razão que ele desconhecia, a simples ideia de ter o povo todo contra ela, de ver as pessoas a rejeitarem-na por a julgarem desadequada ao lugar de futura princesa, abalava-a profundamente. Ele não sabia a história dela. Se soubesse, talvez tivesse compreendido na hora que estava a tocar numa ferida dela que nunca havia sarado.

Elroy sentiu a culpa a corroer-lhe não só o peito, mas todas as células do seu corpo marcado. Os neurotransmissores com uma fome voraz de o ver sofrer.

Ele enfiou a camisa fina pelo pescoço, apressou-se a passar os braços, um de cada vez, pelas mangas compridas, olhou uma última vez para o espelho, certificando-se que estava composto, com nenhuma parte da sua pele deformada exposta a possíveis olhares indesejados, e encaminhou-se na direção da porta disposto a se desculpar com Liberty. Ele imaginou que, naquele momento, a jovem já estaria bem longe, na segurança do quarto que lhe fora atribuído, provavelmente em prantos por causa da indelicadeza dele. Como tinha sido descortês, pensou recriminando-se.

Os olhos do príncipe abriram-se em puro espanto ao ver a jovem sentada sobre a sua cama, claramente esperando pelo seu retorno. Ela não parava de o surpreender. Com o queixo empertigado e sem qualquer vestígio de humidade no castanho determinado dos seus olhos, ela fitava-o atentamente.

− O treino terá início ainda amanhã, se assim você desejar – declarou Elroy. – Eu certificar-me-ei pessoalmente que nada impeça você de brilhar durante o baile.

As palavras inesperadas fizeram com que o espanto se transferisse de um rosto para o outro. Como um veículo poderoso e invisível que ninguém poderia antever, muito menos travar.

− Obrigada.

Liberty concentrou-se nas suas próprias mãos entrelaçadas sobre o colo. Sentia-se uma idiota por ter feito um grande alarido por um treino que nem sequer sabia de que se tratava. Só nesse momento a sua curiosidade incessante se sobrepôs aos receios que não conseguia entender, quanto mais explicar. Porém, ela não teve coragem de dar voz a esse seu lado dela mais espontâneo, daquela vez não. Estava demasiado constrangida para isso.

− Como é a relação que você tem com a sua família?

Ela olhou para o lado, surpresa por a voz do príncipe estar tão próxima dela. Absorta nas suas próprias inquietações, nem reparou quando este se sentara junto a ela na cama. Mas a pergunta, em si, foi o que ela verdadeiramente estranhou. De onde vinha aquilo agora?

− Um pouco conturbada diria. – Decidiu ser franca. Tudo na expressão de Elroy lhe dizia que ele estava genuinamente interessado na sua história. – Tenho uma irmã que sempre arranja algum pretexto para implicar comigo, quando não me ignora. Às vezes, tenho a sensação que me inveja, outras que me odeia, mesmo.

As mãos de Liberty contorceram-se no seu colo com o peso da confidência. Ao príncipe não escapou esse pormenor inquietante, que o fez querer abraçá-la. E ele nem sequer gostava de abraços.

− O meu pai mal para em casa e quando está, é como se não estivesse. Não nos liga nenhuma.

Elroy lembrou-se da visita intempestiva do Beaumont e na sua insistência para ver a filha. Isso não lhe parecia um comportamento de um pai negligente, muito pelo contrário. O príncipe abriu a boca, mas logo se arrependeu. Não lhe poderia contar. Também do que serviria? Isso apenas a iria inquietar ainda mais.

− Mas a minha irmã cassula é adorável – acrescentou ao ver a dificuldade de Elroy em se pronunciar sobre o assunto. – Ela tem uma doença rara. O organismo dela não tolera a 100% a atmosfera da redoma... − O tom de voz da moça voltou a adquirir, de súbito, aquela tristeza que o príncipe sentiu vontade de apagar. Mas ele sabia muito bem que isso era impossível. Haviam coisas que ficavam impressas na alma para todo o sempre. – Contudo... Tens de a conhecer. Ela tem uma vivacidade impressionante e para ela está sempre tudo bem.

O convite camuflado da jovem não lhe passou despercebido e ele olho-a intrigado. A irmã parecia ser bem importante para Liberty e, no entanto, ali estava ela a pensar apresenta-la a Elroy.

− Como se chama?

− Anastasie – respondeu, alegre por ver o futuro monarca atento e verdadeiramente interessado no que esta lhe contava.

− A vossa relação parece ser bem forte.

− E é – confirmou com um grande sorriso no rosto. Qualquer vestígio de mágoas antigas completamente eclipsado. – Sou como uma mãe para ela.

− A vossa mãe... − Hesitou, tentando estudar o rosto da jovem ao seu lado. Ele viu a expressão de Liberty fechar-se, lentamente, e o corpo contorcer-se em notório desconforto. Ainda assim, correndo o risco de a afugentar, ele decidiu incentivá-la a falar. Não estava a ser egoísta, apenas achou que ela precisava de desabafar. Se ela assim o quisesse, ele estaria completamente aberto para ouvir todos os seus receios e angústias. Ele queria que ela soubesse que poderia confiar nele. Que poderia ter nele um amigo. − Você não falou nela. O que lhe aconteceu?

− Morreu – declarou num tom de voz arrastado.

A sua cabeça descaiu com o peso da recordação dolorosa de ver a própria mãe no seu leito de morte. E foi nesse preciso momento que o impulso guiou a conduta controlada do futuro regente de Villeneuve. De forma carinhosa, Elroy pousou a sua mão sobre a da jovem, prendendo-a ao conforto quente do seu toque. Liberty voltou a erguer o rosto, tentando perceber melhor as intenções por detrás daquele gesto inesperado. De alguma forma, aquilo agradou-lhe mais do que esperava. O príncipe parecia emanar um calor muito próprio e a pele formigava-lhe onde ele a tocava. Com a mão aprisionada entre a sua própria perna e a mão de Elroy, ela sentiu-se estranhamente protegida.

− No parto da Anastasie. – O breve sorriso do príncipe poderia parecer contrastante com a informação que lhe chegava aos ouvidos, mas ele tinha os seus motivos. Afinal de contas, não só Liberty se sentira à vontade para continuar a partilhar com ele memórias tão dolorosas, como ainda nada dissera ou fizera para afastar a mão dele. E como ele estava deliciado com a sensação da pele dela contra a dele! – Foi nesse momento que a nossa família se fragmentou. Eu era apenas uma criança, na altura.

Isso foi suficiente para deixar o príncipe, de novo, atento apenas às suas palavras. Para ele era óbvio que aquela era a fonte dos receios mais tenebrosos da garota. Ela via-se como sendo renegada, primeiro pela mãe, que apesar de não ter culpa, abandonara-a à sua sorte, deixando-a com uma responsabilidade enorme sob os ombros. Depois o pai e a irmã, que lhe voltaram costas, cada um à sua maneira, cada um com os seus motivos tremendamente egoístas. Num momento em que se deveriam ter unido, para que pudessem mitigar a dor uns dos outros, apenas se magoaram ainda mais.

− Antes disso, você e o seu pai se davam bem?

− Melhor era impossível – contou, perdendo-se num ponto vazio à sua frente. – Ele levava-me sempre a pensar mais além. Acho que era isso que eu tanto admirava nele. Eu amava as histórias que ele me contava, mas acima de tudo a forma como ele puxava por mim. Nunca me deixava ficar na minha zona de conforto. Sempre que eu conseguia aprender a dominar algo, ele ensinava-me outra coisa qualquer. Desafiava-me constantemente.

− Como é que um homem assim se deixou cegar dessa forma? – Ele estava mais do que habituado a modelos de parentalidade questionáveis. Porém, os seus pais sempre foram o que são. Nunca o trataram de forma diferente, ele sempre se ressentiu pelo distanciamento da mãe e pela exigência e frieza do pai. Mas pelas palavras de Liberty, aquele homem tinha sido mesmo um bom pai. Como deveria ter machucado, essa mudança tão abruta, pensou amargamente, sentindo vontade de castigar de alguma forma o pai da jovem por tê-la feito passar por tal tormenta. − Você e suas irmãs precisavam dele mais do que nunca.

− Eu acho que ele se deixou ir com ela, sabe? Ele amava-a demais! E eu acredito que ele nos ame da mesma forma, apesar de não o demonstrar.

Naqueles dois dias, considerando, esporadicamente, o cenário de Liberty como republicana a realidade, Elroy não conseguia fazer com que as peças se encaixassem. Isso não explicava o fato de ela não ter executado nenhuma das provas da seleção, muito pelo contrário. A sua inércia chamaria certamente mais a atenção. A regra de ouro para se ser um infiltrado é agir consoante as normas do contexto onde este se tenta inserir. Claro que lhe tinha passado pela cabeça a possibilidade de ela se ter juntado à causa depois disso. Que desde criança alguém lhe semeara uma revolta muito grande contra a monarquia, levando-a a recusar reagir aos desafios impostos nas provas. E, só mais tarde, se juntara aos republicanos. Por isso, Elroy quisera saber mais sobre a família dela. Talvez o seu medo em ser renegada explicasse a sua inação durante a seleção. Ou apenas, simplesmente, não desejasse aquela vida, longe da família. Era legítimo, tendo ela uma irmã tão frágil que dependia dela. Porém, ser calculista, dissimulada e mentirosa não combinava com a imagem de Liberty que agora se desenhava tão claramente na mente do príncipe.

Elroy olhou embevecido para ela, que continuava de olhos presos no vácuo. Mentalmente recriminava-se por ter desconfiado dela um segundo sequer. Aquela mulher era impressionantemente forte, humana e bondosa, principalmente tendo em consideração a sua história de vida. Naquele momento, em que olhava para o perfil do seu rosto esculpido minuciosamente, como se de uma obra de arte se tratasse, ele teve a certeza que ela era um anjo. Uma beleza exterior que condizia na perfeição com a sua bela e cativante alma.

Não havia como Liberty não sentir aquele olhar intenso e demorado sobre ela, e o calor da mão dele, ainda sobre a dela, começou a ser subitamente insuportável. Aquela proximidade preocupava-a, porque começava a sentir coisas para as quais não tinha qualquer explicação.

− É melhor eu ir, agora – afirmou constrangida, levantando-se de forma apressada.

Elroy ressentiu-se, de imediato, da ausência do toque macio da pele da moça. É estranho como o ser humano se familiariza tão rapidamente com aquilo que lhe é agradável. Como poderia ele sentir a falta de algo que experienciara apenas por uns míseros minutos? Como poderia sentir falta de um toque, se toda a sua vida havia fugido deles? Mas o certo é que sentia.

Seguindo atentamente os movimentos graciosos da selecionada enquanto se afastava dele, o futuro monarca deu por si a apreciar as curvas salientadas pelo tecido rendilhado. O desejo de a ter perto de si tornou-se dolorosamente insuportável. Como poderia aquilo doer tanto ou mais do que quando os neurotransmissores eram lançados na sua corrente sanguínea movidos pela culpa?

− Obrigada – disse, detendo-se junto à porta. Ela olhou para trás e encontrou-o ainda na mesma posição de há pouco, sentado sobre a cama, de olhos somente abertos para ela. – Gostei desta conversa.

A confidência ficou a pairar no ar entre os dois, ligando-os através daquilo que diziam ser a janela da alma. Mas não demorou para que os lábios de ambos subissem num sorriso sincero e compartilhado através de uma estranha sincronia. Se houvesse mais alguém naquele quarto, iria, certamente, pensar que eram dois bobos. Que outro nome haveria para definir duas pessoas que trocavam olhares e sorrisos sem explicação aparente? Talvez se fosse Madame Potts, a mulher mais sábia da mansão, ela conseguisse lembrar-se de um termo mais propício a toda aquela situação.

A verdade é que à medida que iam descobrindo mais, um sobre o outro, mais difícil era não perceberem as semelhanças que os uniam. Enquanto cresciam, um mesmo temor agigantou-se dentro deles. Por muito diferente que fosse o contexto, o medo da rejeição implantou-se de igual forma naqueles dois corações solitários.

Sem mais nenhuma palavra, se não um simples "Boa noite", sussurrado em timidez pelos dois, Liberty saiu do quarto com um sorriso bobo no rosto.

Hoje, 23 de abril, se celebra o dia mundial do livro e dos direitos de autor. Este é o nosso dia caro leitor e/ou escritor do outro lado da tela. Celebre da única forma possível, lendo e/ou escrevendo muito! 

Eu já deixei aqui o meu presentinho para vocês, um capítulo bem grande e muito especial! 

Espero que tenham gostado.

No próximo capítulo, temos uma adaptação de uma cena bem marcante de A Bela e a Fera.

Até lá. Bjs.

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