Capítulo 22 - Um muro de certezas
Os raios da manhã tornavam ainda mais viçoso o verde que contornava a grande mansão onde vivia a família real. Noutros tempos, naquela mesma região do país, em pleno dezembro, esperar-se-ia encontrar um céu encoberto a ameaçar verter uma humidade enregelada sobre os simples mortais a deambular sobre a superfície da Terra. No entanto, há mais de um século que isso deixara de acontecer. Eram raras as vezes que chovia, sendo a água poluída do exterior purificada ao atravessar a proteção da redoma. E o microclima altamente controlado de Villeneuve impedia que os seus habitantes tivessem demasiado calor, ou demasiado frio.
Liberty caminhava descalça por entre a frescura da erva recentemente irrigada. A sua cabeça estava jogada para trás com a luminosidade do dia a incidir sobre as suas pálpebras cerradas. Os braços estendidos ao lado do corpo com as palmas abertas para o céu límpido daquela manhã. Uma tranquilidade inesperada invadia todo o seu ser e, por momentos, a rapariga conseguiu esquecer as inquietações do passado e o desespero de um futuro que já não lhe pertencia. Vivia o presente como se apenas ela existisse. Ela, o sol e a grama que lhe formigava os pés.
Elroy, de braços cruzados sobre o peito e de pés calçados, olhava Libby demoradamente enquanto avançava ao lado dela pelo jardim das traseiras. Os cabelos castanhos da jovem reluziam e baloiçavam subtilmente com a ténue brisa que se fazia sentir sob a redoma. E o rosto angelical voltado para o céu contagiava-o com uma paz a que se começava facilmente a habituar.
O passeio pelo jardim tinha sido ideia do príncipe que, desta vez, não o fizera para agradar a moça. Convidara-a a acompanhá-lo para que esta pudesse conhecer um pouco mais sobre ele. Aquela era a parte da mansão que mais o atraia desde pequeno. O único lugar aberto em que não se sentia sufocar. O único lugar que não o obrigava a encarar constantemente a vida que não escolhera para ser a sua. Ali, a natureza recebia-o sempre de braços abertos sem qualquer tipo de questionamento ou exigência. Claro que havia o grande muro que cercava o terreno a relembra-lo que tudo não passava de uma fantasia temporária. A recordá-lo que, eventualmente, ele sempre tinha de voltar para dentro.
− Porque é que você não tira os sapatos? – a voz de Liberty despertou Elroy, que perdido em pensamentos, fitava amargamente o muro distante.
− Não me parece apropriado – respondeu de forma esquiva, sem desviar o olhar da recordação das suas obrigações em forma de pedra. Quase nunca se deixava abalar por causa da grande muralha. Porquê agora?, recriminava-se mentalmente.
− Apropriado para quem? Não está ninguém aqui, para além de nós dois. – Os olhos do príncipe varreram o grande espaço à sua frente juntamente com os da jovem. − E não me parece que você vá infringir alguma regra, se o fizer – acrescentou ao fixar a sua atenção no pulso de Elroy. Apesar da pulseira estar oculta pelo tecido fino, ambos se recordaram da sua presença naquele momento. O príncipe agarrou no seu próprio pulso de forma constrangida. − Ou existe uma regra para isso? − Liberty questionou alarmada, movida por uma interpretação errónea do gesto do futuro monarca.
− Não, não existe uma regra para isso – Elroy respondeu ao sorrir.
O príncipe não se preocupou com a grama molhada quando se agachou para tirar um sapato de cada vez. Também não se apoquentou com a hipótese de alguém da mansão o ver com os pés descalços fincados sobre a terra húmida do jardim. Nada mais lhe passava pela cabeça naquele momento, se não a sensação de liberdade e leveza que a jovem o fazia sentir com uma facilidade impressionante. A maciez da terra e a verdura a roça-lhe suavemente a pele fizeram com que Elroy não só enxergasse o jardim, mas que o pudesse sentir plenamente pela primeira vez.
− Como é que você se sente? – perguntou Liberty ao ver o semblante do príncipe a transbordar de uma tranquilidade que não lhe era usual.
Elroy inspirou profundamente enquanto se perdia na vasta área verde à sua frente. Quando os seus olhos pousaram, por fim, nos da jovem ao seu lado, traziam consigo uma luminosidade refrescante.
− Melhor do que nunca. – Os dedos dos seus pés agarraram-se mais firmemente à terra húmida. − Parece que estou a ver este jardim pela primeira vez.
− Também eu – murmurou a jovem ao fitar o azul para além das nuvens que habitavam o olhar do príncipe. Ao ver a confusão inundar a expressão de Elroy, a jovem apressou-se a corrigir, entre risos nervosos − Quero dizer, para mim é mesmo a primeira vez que estou neste jardim.
Os dois caminharam mais alguns passos em completo silêncio, seguindo os movimentos dos próprios pés como se tivessem medo de cair.
− Você está a ver aquela pequena redoma lá ao fundo? – o príncipe questionou consciente de que tudo ali era desconhecido para a jovem.
Liberty levantou o rosto para a forte estrutura arredondada que se encontrava a cerca de 15 metros deles. Mas a forma de cor opaca e acastanhada, sem mais nada para além de uma porta, não conseguiu prender o olhar da jovem por muito tempo. No lado oposto do jardim repousava uma casa transparente que deixava antever uma diversidade estonteante de cores, onde o verde continuava a ser predominante. Seriam plantas?, a curiosidade invadiu o seu pensamento.
– É onde albergamos os animais – explicou Elroy sem perceber o desvio da atenção da moça. – Agora só aves, mas antes também criávamos porcos, cabras e vacas.
− Cheguei a ver imagens desses animais em aula – informou Liberty agora com o olhar na direção onde os olhos do príncipe se fixaram. – Mas por que é que já não criam outros animais para além das aves?
− As vacas e as cabras não podiam pastar, porque a grama que pisamos, − o pé direito de Elroy balançou por entre as ervas, − é imprópria para consumo, graças aos químicos que se impregnaram no solo. E apesar do espaço criado para elas ser grande e a alimentação ter sido controlada, acabaram por não resistir durante muito tempo. Os porcos adaptaram-se melhor, mas geraram-se problemas de fertilidade e não se reproduziram à velocidade suficiente. Todos acabaram por se extinguir muito antes de eu nascer, menos as aves. O recinto agora é um aviário cheio de animais com asas, mas que não voam.
− Irónico isso, não? – Liberty estacou imaginando que aquelas aves eram como ela. A ela também lhe tinham sido dadas pernas, mas continuava presa debaixo da redoma. Fadada a conhecer apenas uma pequena parte do enorme planeta Terra. Para quê ter asas se não se podia voar?, a questão inquietou-a.
Big Ben pigarreou atrás dos dois, constrangido por interromper os futuros monarcas. Liberty voltou-se curiosa para saber a identidade do intruso, já Elroy trancou o rosto em desagrado mesmo antes de embater os olhos no mordomo.
− Pe-peço... Peço desculpa – gaguejou o criado fugindo dos olhos dilacerantes do príncipe. O tronco rígido do mordomo curvou-se numa pequena vénia e a sua atenção foi rapidamente sugada pelos pés descalços de Elroy entre as ervas.
− Há algum problema? – questionou o futuro monarca cada vez mais irritado com a situação.
O mordomo ergueu, por fim, a cabeça. Os olhos do criado haviam-se agigantado no rosto e pareciam duas azeitonas bem-desenvolvidas. E as sobrancelhas distanciavam-se de tal forma assombradas pelo crescimento repentino dos seus vizinhos mais próximos.
− Não... Eu... − Big Ben não conseguia formular uma frase sequer. Já nem se lembrava do motivo por que ali estava. Olhou brevemente para trás de si e conseguiu avistar sobre a erva recentemente irrigada os sapados negros do príncipe que brilhavam deitados um para cada lado, abandonados à sua sorte. O criado voltou a fitar Elroy que, apesar de lhe parecer furioso, continha no azul dos olhos uma luz que não estava ali antes. Disso o mordomo tinha a certeza. – O rei solicita a sua presença no escritório, Sua Alteza – informou ao retomar o controlo dos seus pensamentos.
Elroy abriu a boca para protestar, mas foi de imediato invadido por uma onda incontrolável de dor. Os neurotransmissores foram libertados na sua corrente sanguínea assim que o pensamento de desobedecer a uma ordem do rei lhe passou pela cabeça.
− Não tem problema, continuamos o nosso passeio noutro dia – assegurou Liberty tentando tranquiliza-lo. Ela conseguia ver no seu rosto a luta interna que travava.
− Tudo bem – Elroy assentiu sentindo-se derrotado. – Eu vou. Mas Big Ben, − o mordomo engoliu em seco temendo tornar-se o alvo da revolta reprimida do príncipe, − mostre o aviário à Liberty, por favor.
Os olhos do mordomo ofuscaram ao perceber que não só a sua cabeça se manteria sobre o pescoço, como ainda tinha sido promovido a guia. Aquela seria a oportunidade perfeita para que alguém reconhecesse o seu nível prodigioso de cultura geral. E mesmo que não soubesse muito sobre aves, ele daria um jeito de desviar a conversa para um assunto que ele dominasse. A futura princesa ficaria impressionada, concluiu ao ajeitar o pequeno laço que trazia ao pescoço.
− Com todo o prazer, Sua Alteza. Mas e quem o acompanha até ao escritório?
− Big Ben, eu acho que ainda sei onde fica o escritório – comentou achando alguma piada à preocupação desmedida do mordomo. Big Ben, de facto, levava muito a sério o seu cargo naquela casa e Elroy gostava de ter, pelo menos, um terço da dedicação do criado nas suas funções como futuro monarca.
O príncipe curvou a cabeça para a jovem ao seu lado, que o reverenciou com uma vénia e um sorriso tímido. Ela não estava nada habituada aquelas formalidades todas, mas começava a perceber que não teria outro remédio senão moldar-se minimamente àquele estranho mundo, se não quisesse ser tragada por ele.
Elroy afastou-se de Liberty e avançou até ao local onde tinha deixado os sapatos. Ao espreitar para as plantas dos pés, constatou que não seria uma muito boa ideia calçá-los, sem antes passa-los por água. Por isso, limitou-se a pegar nos sapatos e a dirigir-se para a pequena e discreta torneira de água próxima da entrada da casa. Antes de desaparecer por completo do campo de visão da jovem, o príncipe voltou-se para trás e sorriu-lhe.
− Obrigada, Big Ben – proferiu a jovem num tom de voz doce ao envolver a sua mão no braço dobrado do mordomo, que se havia colocado do seu lado.
Com um sorriso bobo na cara e os pés ainda descalços, Liberty caminhou levemente sobre a grama, desejosa, não de conhecer o aviário, mas de um futuro encontro com o príncipe.
Antes mesmo de bater na porta do escritório do pai, Elroy conseguiu ouvir o arrastar dos seus passos inquietos lá dentro. A sua experiência dizia-lhe que aquilo não seria um diálogo, mas antes um monólogo. Um longo e tedioso monólogo para o advertir da importância de se seguirem as normas do reino. Como se já não tivesse tido a minha lição, pensou amargamente ao agarrar-se à pulseira.
− Entre – Elroy ouviu a voz dura do pai a trespassar a porta fechada, logo depois do terceiro baque seco na madeira.
Ao adentrar no escritório, Elroy encontrou o pai sentado na sua poltrona, como se sempre estivesse estado ali, hirto e recostado, à sua espera. O príncipe ponderou, por momentos, a possibilidade de os passos que ouvira terem sido de Babette a limpar um dos cômodos do piso superior.
O rei permaneceu imóvel enquanto o filho se curvava numa vénia demorada e nem sequer pestanejou quando este começou a avançar na sua direção.
− Mandou-me chamar? – questionou Elroy ao parar em frente à secretária.
− Sente-se – ordenou Keandre.
Com o príncipe sentado do outro lado da mesa, o rei continuou.
− Vejo que você já está recuperado.
Elroy nada disse como resposta, porque sabia que aquela era apenas uma forma subtil de o rei mostrar o seu desagrado pelo fato de o filho não o ter vindo informar disso pessoalmente. O monarca só ficara a saber da recuperação do filho através do mordomo, que, quando questionado sobre Liberty, deixou escapar acidentalmente que esta estava no jardim com o príncipe. Essa descoberta apenas servira para lançar mais achas para uma fogueira que começava a ficar perigosamente sem controlo.
− Agora você pode explicar-me por que foi irresponsável ao ponto de ir para uma entrevista, com transmissão em direto para toda a nação, vestido de negro?
− É só uma cor – protestou num murmúrio.
− Não, não é só uma cor e você sabe muito bem disso. É tradição. É lei. É para se cumprir – o tom de voz do monarca subia a cada nova frase que proferia. – Nos vestimos de forma diferente da do povo, para mostrar-lhes que não somos iguais a eles. Para mostrar que somos superiores – acrescentou de forma mais controlada. – Mas a culpa não é totalmente tua, é dela também. Ela está conseguindo dar a volta a você, tal como eles queriam. − A expressão do rei foi subitamente moldada por uma raiva tão forte, que nem mesmo ele conseguiu ocultá-la do filho. Os lábios tremiam-lhe visivelmente, deixando antever os dentes arreganhados da fera.
− Eles quem? – Elroy começava a pôr em causa a sanidade do homem mais velho.
− Há muitas coisas que você não sabe sobre essa garota. Ela é perigosa – afirmou o monarca com uma chama ardente a consumir-lhe o olhar.
− O senhor não a conhece mesmo.
− Será? Será que sou eu quem não a conhece? – As mãos do rei subiram em punhos fechados até ao tampo da secretária. O seu tronco inchou com a presunção que lhe inflava o peito. – Acaso você sabia que ela não realizou nem uma única prova para a seleção?
− Que absu... − a voz do príncipe apagou-se no ar. Uma lembrança havia-lhe roubado as palavras. A lembrança bem vívida do primeiro encontro com Liberty. Ela tinha-lhe dito... não, ela gritara-lhe que não realizara nem uma única prova da seleção. Mas ele não acreditou. Como podia? – Isso não pode ser verdade.
− Mas é. Ela esteve presente em todas as provas, mas nunca realizou nenhuma. Quando me contaram também não quis acreditar, mas coloquei uma equipe da minha confiança a examinar o caso discretamente e essa informação foi-me confirmada hoje de manhã. – Elroy deixou decair os olhos sobre a superfície da mesa. Ele não sabia o que pensar. – Mas há mais – afirmou o rei satisfeito por estar a conseguir destruir o muro de certezas que o filho havia construído em torno de si próprio. – O nome dela foi implantado no sistema informático para que fosse a selecionada. – O príncipe ergueu o rosto para o pai, procurando pelo mínimo sinal de que este lhe estivesse a mentir. − As linhas de código foram modificadas, passando a existir 100% de probabilidade de ser ela a escolhida.
− Mas quem o faria? E por que motivo?
− Só podem ser os republicanos! – o monarca bramou enfurecido. – Eles querem a nossa queda, filho. Não vão descansar enquanto a república não estiver instaurada em Villeneuve.
− Não percebo como é que a Liberty irá ajudá-los a atingir esse objetivo – refletiu Elroy em voz alta.
− Fácil. Ela é uma manipuladora que fará com que você reivindique do seu direito ao trono. Ela é uma deles! – As mãos do monarca embateram violentamente sobre o tampo da mesa. Irritava-o o facto de ter uma republicana a viver debaixo do seu próprio teto, mas o pior era saber que o filho era facilmente influenciável.
− Isso não faz sentido. Ela não queria estar aqui, nunca mostrou gostar de mim. Ela parecia revoltada por se ver obrigada a casar comigo.
Aquelas informações surpreenderam o monarca que desconhecia a dificuldade de aproximação do filho com a selecionada. Mas Keandre Morfrant não passara anos a ler livros de estratégia militar para nada. Para ele, uma guerra não se decidia em batalha, mas sim na sua preparação.
− Você falou no passado. Ela mudou de atitude, não foi? Agora ela tem você na palma da mão. Faz tudo parte do plano.
− Se ela me pedisse para abdicar, eu não o faria – disse convictamente.
Elroy poderia não gostar da ideia de ser regente, mas aceitava-o como uma missão de vida. Algo que estava tão impresso em si, como a pele que o cobria. Não havia nada, nem ninguém que o conseguisse convencer a desistir de uma parte de si mesmo. Se ele pudesse escolher, teria nascido no seio de uma outra família qualquer, sem o peso da coroa a dificultar-lhe os passos. Mas isso era algo que ele não podia mudar. E sendo que lhe era impossível renascer no corpo de um plebeu, a coroa era o seu único destino.
− Você não o faria hoje. Mas ainda faltam alguns dias para a oficialização do noivado, até lá você tem de se manter alerta. E não se deixe amolecer.
Liberty não seria assim tão dissimulada, ou seria?, o pensamento inquietante ocupou todos os pequenos espaços livres do cérebro de Elroy, abalando todas as certezas que tinha vindo a construir ao longo daquela semana.
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