Capítulo 20 - Bem-intencionado
Caminhando de um lado para o outro no quarto, Liberty não se conseguia decidir. Uma parte dela clamava para que fosse visitar o príncipe naquela manhã. Dizia para si mesma que não era pela companhia surpreendentemente agradável do futuro monarca, mas antes pela leitura do livro que havia ficado apenas a meio. E, além do mais, ela era uma pessoa zelosa, que ansiava pela rápida recuperação de Elroy. Porém, uma outra parte dela fincava-lhe os pés naquele quarto, alertando-a para a perigosidade do caráter instável do príncipe. Para além de que ela não queria, de modo algum, passar uma mensagem errada.
O desjejum daquele dia foi-lhe servido no quarto, tal como todas as suas últimas refeições desde aquele desconfortável almoço em família. Ela não estava com disposição para enfrentar novamente o rei, ainda para mais na ausência de Elroy, que fora o único capaz de a proteger quando o monarca a humilhara. E, por muito que lhe apetecesse ir à cozinha para tentar saber de alguma novidade sobre o estado de saúde do príncipe, ela achava que seria mais seguro permanecer no quarto, não correndo o risco de esbarrar com o temível Keandre Morfrant.
Alguém bateu à porta, enquanto Liberty continuava a ponderar incessantemente sobre o assunto. O coração acelerou-se-lhe no peito ao pensar na remota possibilidade de ser o rei.
− Entre – anunciou a jovem sem medo. De certo, é um dos criados, o rei nunca perderia o seu tempo e a sua dignidade procurando por mim, pensou convicta.
De imediato, a porta obedeceu ao seu comando e do outro lado surgiu o príncipe. As mãos atrás das costas agarravam-se uma à outra tentando incutir a coragem que lhe começava a fugir.
− O que está aqui a fazer? – questionou Liberty de olhos arregalados. − Não deveria de estar em repouso?
− Eu sinto-me melhor do que nunca – assegurou Elroy ao erguer os ombros, a sua postura recomposta numa força fingida. No seu rosto, um meio sorriso impôs-se ao perceber que a reação não foi aquela que receava receber. Ao invés da jovem se alarmar com a presença dele por não ser apropriado ou não desejar a sua companhia, ela parecia apenas preocupada com a sua saúde. – Vim fazer uma proposta.
− Uma proposta – repetiu Liberty cruzando os braços à frente do peito. – Que tipo de proposta?
− Do tipo irrecusável − comentou ao encostar descontraidamente o ombro sobre a parede que ladeava a abertura deixada pela porta totalmente aberta. − Quero levar você a conhecer o melhor espaço interior desta mansão.
− E o que o faz pensar que eu estaria interessada nessa proposta? – disparou fingindo-se indiferente.
O sorriso de Elroy alastrou-se de tal forma que lhe chegou aos olhos.
− Eu sei que você é curiosa. Além do mais, eu posso garantir que você não se irá arrepender.
Os olhos de Liberty pestanejaram assoberbados pelo cenário inacreditável que se estendia à sua frente. O espaço amplo em que se encontrava era um labirinto de estantes que unia o teto ao chão. A madeira maciça dos móveis era ladeada por detalhes curvilíneos em prata que se cruzavam num padrão abstrato. Escadotes largos igualmente de prata espalhavam-se pelas estantes para permitir aos usuários chegarem aos livros do topo. As janelas surgiam nos espaços em branco entre as estantes, do mesmo comprimento que elas, e deixavam entrar os feixes de luz que incidiam sobre as cores vibrantes das infindáveis lombadas. A luz natural do exterior competia com dois enormes focos de luz donde aparentava cair uma chuva de prata suspensa no ar, com os cristais a refletir a luz em todas as direções. Num dos cantos da sala, encontravam-se dois grandes cadeirões voltados para uma vista do descampado verdejante que rodeava as muralhas da mansão.
− Isto não pode ser real – a voz de Libby expressava a estupefação estampada no seu rosto.
A garota avançou pelo corredor de livros que tinha à sua frente, os seus braços estendidos ao lado do corpo sem chegar a tocar em nenhum deles.
− Mas é – confirmou o príncipe seguindo-lhe os passos. – Você gostou da surpresa?
Rodopiando sobre os seus próprios pés, Liberty voltou-se de forma enérgica para trás ainda com os braços abertos. O movimento parecia parte de uma dança improvisada.
− Se gostei? Eu amei! – Os braços da jovem caíram-lhe ao lado do corpo. − Mas como é que isto é possível? Nas aldeias...
− Sim, nas aldeias é proibido, mas aqui não – Elroy explicou interrompendo-a. – É uma proibição para o povo, não para a família real. Aqui, você não tem de viver sobre as mesmas restrições.
A jovem desviou o rosto para o lado e deixou-se navegar pela infinidade de títulos sem se deter em nenhum em particular. Na sua vida toda, apenas conseguiu ler cinco livros fora do contexto escolar. Todos clandestinos, claro. Livros que passaram de pai para filha. Fora Gérard Beaumont que lhe incutira o prazer pela leitura, sempre lhe assegurando que não havia nenhum pecado, nenhum crime, em ler de forma recreativa.
− Já leu estes livros todos? – questionou boquiaberta ainda perdida algures na enorme estante à sua esquerda.
− Não – admitiu com um sorriso no rosto. – Isso faz parte da magia deste lugar, saber que são tantos, mas tantos, os mundos que podemos visitar, que nunca vamos chegar a conhece-los a todos. É como se esta sala não tivesse paredes.
A impossibilidade de uma resposta deixou a selecionada calada. Ela não se sentia capaz de pronunciar um único som sequer. Era impressionante como as palavras do príncipe tocavam em todos os sítios certos do seu ser. Aquelas palavras poderiam ter sido de Liberty, mas, estranhamente, não eram.
− A partir de agora, você pode vir aqui sempre que quiser – continuou Elroy constrangido com o silêncio da moça. – Só eu costumo vir à biblioteca, os meus pais não são grandes apreciadores de livros.
− Posso mesmo? – interrogou a jovem sem conseguir acreditar no que lhe estava a acontecer.
O príncipe assentiu satisfeito com a reação maravilhada de Liberty.
− Acho que vou acabar por me arrepender disto, porque agora você não vai largar a biblioteca, mas se é isto que faz você feliz... − a voz de Elroy acabou quase num sussurro. Ao menos ela ficará na mansão, bem próxima de mim, pensou agarrando-se a um otimismo que não lhe era típico. Ele queria mostrar-lhe que ela poderia ter uma vida ali, do seu lado, mesmo que não fossem um verdadeiro casal, e que havia fortes possibilidades dessa vida superar aquela que ela poderia vir a ter algum dia nas aldeias.
− Sim, mas, Elroy, são tantos livros que talvez precise da tua ajuda para saber por onde posso começar – sugeriu num fio de voz doce que fez as entranhas de Elroy agitarem-se descontroladamente. Ao príncipe, não passou despercebida a forma informal com que a moça se dirigira a ele. Aquele era, sem sombra de dúvidas, um progresso gigante.
Libby e Elroy sorriram um para o outro. Os livros não serviriam como um obstáculo entre ambos como temera o príncipe. Na verdade, tinham sido os livros a aproximá-los. Mas para os juntar talvez fosse preciso um pouco mais do que uma biblioteca recheada e um futuro monarca bem-intencionado.
Sentados nos cadeirões junto a uma das janelas da biblioteca, Liberty e Elroy seguravam cada um o seu livro. A conselho do príncipe, a jovem mergulhava na intensidade dramática da maior tragédia de amor existente na literatura clássica. Já o seu companheiro de leitura nem olhava para as letras abandonadas nas páginas que segurava. Os seus olhos azuis enublados decoravam cada pequeno gesto da jovem ao seu lado. A forma como ela mordia o lábio inferior quando o autor a apanhava de surpresa, a forma como debruçava o seu corpo para a frente sempre que o clima dramático atingia o seu auge, a forma como as suas mãos se agarravam firmemente ao livro aberto sempre que se deparava com uma pista de que as coisas não acabariam da melhor forma para os dois apaixonados, ou até a forma subtil como a sua perna esquerda tremia sempre que Romeu e Julieta se encontravam. Claro que Elroy não sabia que eram esses os motivos inerentes a cada um dos gestos, mas isso só o deixava ainda mais intrigado.
Ao terminar a leitura do ato II da obra, Liberty olhou finalmente para o lado, flagrando o futuro monarca a espiá-la.
− O que se passa? – quis saber a jovem.
− Nada – respondeu apressadamente o príncipe. O seu rosto voltou-se para a paisagem que se estendia à frente dos dois.
Libby continuou a fitá-lo, sem conseguir perceber a sua reação. Há quanto tempo estaria ele a olhar?, pensou a rapariga, intrigada com aquela situação.
− Talvez devêssemos ir almoçar – avisou Elroy depois de consultar as horas no relógio de parede. – Já deve estar com fome.
O estômago da selecionada roncou em resposta e o seu rosto enrubesceu.
− Bem que me parecia. – O príncipe sorriu. – Vamos, então.
− Espere – advertiu Libby ao vê-lo levantar-se da poltrona. – Talvez seja melhor comer no meu quarto. – A cara de Elroy fechou-se de imediato. A jovem percebeu que este havia interpretado erroneamente as suas intenções e apressou-se a acrescentar, − Não quero almoçar com os reis.
− Já somos dois. – Liberty arregalou os olhos com tal confissão. Elroy não conseguiu evitar sorrir ao deparar-se com a expressão dela. – Sempre que posso, almoço na cozinha. E, hoje, os meus pais nem vão dar pela minha ausência, provavelmente vão concluir que ainda estou de repouso no quarto.
Por mais triste que fosse, Libby conseguia rever-se no lugar dele. Na maioria das vezes, Gérard Beaumont não partilhava as refeições com as filhas. Claro que ela tinha as irmãs, mas o silêncio era tal durante esses momentos que mais parecia estar completamente sozinha.
Desse modo, aceitou de bom grado o segundo convite daquele dia. Por mais estranho que fosse, tinham os dois sido feitos pelo homem que ela há tão pouco tempo julgara odiar.
Os criados entravam e saiam da cozinha transportando tudo o que ainda faltava para servirem o almoço aos reis. Os movimentos sincronizados numa competência invejável. O hábito provera-os de tal perfeição. E nenhum deles se deixou intimidar quando Big Ben, uma hora antes, os havia alertado sobre o estado especialmente irritadiço do rei, que parecia ter dormido com os pés destapados. A exigência subia sempre para um patamar exponencialmente elevado em casos como aquele e até Babette e Lumière eram chamados a colaborar. Apenas Nicolette Armoire era dispensada para se dedicar às suas criações de moda.
Madame Potts estava de volta das suas panelas que libertavam um saboroso aroma por todo o espaço e Jesper já salivava debaixo da mesa, desejoso que a refeição dos reis fosse dada como terminada para que ele pudesse finalmente reconfortar o estômago vazio.
− Lumière, deixe isso – falou madame Potts ao vê-lo a tentar segurar na terrina a ferver sobre o balcão. – Vá antes servir o meu menino que, no estado em que está, não pode ficar tanto tempo sem se alimentar.
Jesp endireitou-se de imediato com o estômago a saltar de alegria, quase batendo com a cabeça no tampo da mesa.
− Ele já deve estar bem melhor, porque não o encontrei no quarto quando lhe fui servir o dejejum – as palavras do criado insinuavam algo que ninguém naquela cozinha conseguiu captar.
Os pequenos ombros de Jesper decaíram ao perceber que não poderiam estar a falar dele, mas antes do príncipe.
− Ele não estava no quarto e você não me disse nada? – questionou indignada a criada, levando as mãos à cintura. A colher de pau afundou-se dentro do tacho a ferver. – E você nem se preocupou em ver onde ele estava ao que parece!
Babette, pouco interessada na discussão que o namorado estava a ter com madame Potts, desfilava pela cozinha com a concha pesada de prata que faltava para a sala de jantar. O espírito leve e despreocupado de Lumière colidia algumas vezes com o sentido aguçado de responsabilidade e organização da criada mais velha. Por isso, para a namorada dele aquilo não era nenhuma novidade. Prestes a chegar à porta, Babette deixou cair o utensílio que transportava ao ver Elroy e Liberty entrarem, um ao lado do outro. Com o estrondo, todos os presentes se voltaram na direção dos três.
Lumière assobiou baixinho com os progressos notórios que o seu discípulo na arte de sedução havia alcançado. Nenhuma mulher resiste a um homem debilitado. Como é que eu não me lembrei desse truque?, pensou invejoso do engenho do príncipe. E Madame Potts, por seu turno, levara as mãos às bochechas contraídas num sorriso contido. A mulher já adivinhara este desenvolvimento na relação dos dois no dia anterior.
Babette agachou-se para apanhar a concha, sem nunca desviar os olhos dos dois à espera que a miragem desaparecesse. A verdade é que a criada havia apostado com o namorado que Elroy nunca encantaria mulher nenhuma se continuasse com os seus modos grosseiros e cenho franzido. E, naquele momento, Babette começava já a pensar na dança sensual que tinha prometido fazer ao seu mais que tudo, caso perdesse a aposta.
− Porque estão todos aí parados? – questionou Elroy sentindo-se desconfortável com toda aquela atenção súbita. – Não têm trabalho a fazer?
A voz imponente do futuro monarca recompôs a ordem na cozinha. Depois de uma vénia demorada, todos os criados voltaram aos seus afazeres. Babette passou pelos recém-chegados movida por uma energia repentina, sem tirar os olhos do chão.
− Eu não disse que ele estava bem – sussurrou o Lumière com um sorriso vitorioso plantado no rosto longo.
Madame Potts fungou sem lhe dar importância e avançou na direção da mesa.
− Sentem-se que eu já vos sirvo o almoço – disse a criada ao afastar a cadeira à cabeceira da mesa retangular.
O príncipe avançou para a cadeira exatamente contrária à que a empregada agarrava e afastou-a um pouco da mesa.
− Venha, Liberty – chamou Elroy voltando-se para trás. – Se sente aqui.
A jovem encaminhou-se timidamente para a cadeira que este segurava entre as mãos e sentou-se, com Elroy a ajeitar-lhe o assento por ela. Aquela formalidade toda, que muitas chamariam de cavalheirismo, começava a deixa-la inquieta. Libby olhou para a criada ainda agarrada a cadeira do lado de lá da mesa e lançou-lhe um sorriso constrangido.
Elroy apressou-se a correr para o lado da criada e deu-lhe um beijo sentido na face, sussurrando um agradecimento pelo gesto. Madame Potts afagou a barba já demasiado grande do seu menino e depois de o ajudar a sentar-se, largou os tachos para ajudar Lumière a compor a mesa para os dois.
Enquanto os criados trabalhavam em silêncio dando espaço ao casal, Liberty e Elroy frustravam as expectativas dos empregados, que nem sequer coragem tinham para se olhar, quanto mais falar um com o outro.
A sopa fumegante foi servida na tigela funda do príncipe e depois na de Libby.
− A colher – pediu Elroy ao ver que apenas haviam colocado o utensilio no lado da mesa da selecionada.
− Mas o menino nunca...
− Agora é diferente – o príncipe apressou-se a interromper a criada, tentando ser o menos grosseiro possível. Não gostava de levantar a voz à mulher que o havia criado como mãe. – Tenho uma convidada – murmurou mexendo os lábios o mínimo possível.
Liberty olhava para a situação à sua frente sem perceber do que se tratava aquela discussão sem sentido.
De repente, um pequeno rapaz saltou de debaixo da mesa fazendo com que todos se sobressaltassem.
− Quando ele come na cozinha, quase nunca usa talheres – acusou Jesper de dedo apontado para o futuro monarca.
Irritado com a confrontação, Elroy levantou-se com as mãos firmemente apoiadas sobre o tampo da mesa. No entanto, a criança foi mais rápida que ele e fugiu porta afora. O príncipe inspirava profundamente pela boca e expulsava, segundos depois, o ar pelo nariz, utilizando uma estratégia que Lumière havia lhe ensinado. O criado esboçou um pequeno sorriso ao ver que, pelo menos, o seu mestre estava a tentar controlar-se, mas ele desconfiava que já fosse tarde demais e a garota estivesse terrivelmente mal impressionada.
Libby baixou os olhos sem saber o que pensar. A verdade é que ela não gostava nada daquela versão intempestiva do príncipe. E o pior é que ela falhava em compreender o que despoletava cada novo ataque de fúria. Será que haveria sequer uma explicação ou ele era apenas um mistério sem chave de resolução?, pensou desanimada encarando o reflexo da luz na colher de prata sobre a mesa. Um longo suspiro saiu-lhe das entranhas. Prata, como ela já estava farta da prata! Mas ali tudo parecia feito desse material para reforçar a ideia de poder e riqueza a que apenas a família real tinha direito.
"Quando ele come na cozinha, quase nunca usa talheres", as palavras voltaram a ecoar na mente da jovem. Os talheres são feitos de prata!, constatou ao ligar os pontos de uma história que começava a ganhar sentido. Motivada por uma certeza avassaladora, Liberty agarrou na tigela e levando-a à boca sorveu um pouco do líquido confortavelmente quente.
Elroy encarou-a boquiaberto.
− Está muito saborosa, madame Potts – comentou a selecionada de olhos fixos nos do príncipe. Os lábios da moça subiram num sorriso genuíno que rapidamente contagiou o homem ainda de pé do outro lado da mesa.
Ocupando de novo o seu lugar, Elroy envolveu a tigela com as suas mãos fortes e seguiu o exemplo da selecionada, sem despregar os olhos brilhantes da mulher que o começava a deixar cada vez mais encantado.
Antecipei o capítulo pela premiação da obra em mais dois concursos: Concurso WITB e WLB. Desta vez, em primeiro lugar! Estou muito feliz pelo reconhecimento que esta história está a ter na plataforma. Cada comentário, cada voto, cada premiação, tudo isso significa muito para mim.
Muito obrigada a todos vocês, meus queridos leitores!
Até ao próximo capítulo.
Bjs.
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