Capítulo 2 - A proclamação real


24 horas antes

Liberty fitava a janela aberta de sua casa, enquanto as irmãs devoravam o televisor com os olhos. Tentava ver se alguém passava à frente da sua habitação naquele dia tão incomum em Villeneuve. Porém, o único estímulo sensorial que recebia era a casa do outro lado da estrada que a desafiava a provar que não era para a sua própria residência que olhava. Fazia muitas vezes esse jogo, o de olhar para as inúmeras casas da vizinhança e tentar encontrar alguma disparidade. Perdia sempre. De qualquer forma, nunca fora muito boa em jogos.

− Você se importa de não babar para cima de mim, Anastasie – reclamou Éliane, ao afastar o rosto da irmã cassula que havia caído uns milímetros para o lado. Um fio de saliva ainda pendia na boca entreaberta da criança.

− Não ligue – disse Liberty ao ver a sua atenção puxada involuntariamente para o sofá onde se encontrava sentada. Com o pano que Anastasie detinha sobre o colo, Libby afastou-lhe a humidade recente do rosto redondo. – Ela acha que vai ser selecionada.

As duas irmãs riram cumplicemente, enquanto que a terceira ignorou o comentário sardónico e manteve os seus olhos vidrados no ecrã onde, finalmente, aparecera o príncipe.

− É ele – gritou entusiasmada, fazendo as suas irmãs se silenciarem eficazmente.

Anastasie calara-se pelo susto do som estridente da voz da irmã. Já Liberty estava curiosa para ver o príncipe pela primeira vez na vida. Éliane, mesmo sem nunca o ter visto antes, sonhava se casar com ele. Não pelo homem que era, mas pela vida que lhe poderia oferecer. Libby não a julgava, mas ela não era como a irmã. Nem que o príncipe fosse o mais belo de todos os homens de Villeneuve, ela se interessaria por ele.

Um rosto, de um formato praticamente retangular, abriu-se num sorriso contido consciente da câmara que o analisava. O lábio superior uma leve ondulação sobre uma meia lua bem preenchida. Curtos pelos negros coloriam a parte inferior da sua face da cor do mármore branco que pavimentava os passeios das ruas de Villeneuve. A ausência do sangue a aflorar a pele fez com que Libby se questionasse, por breves momentos, se o homem era sequer humano. Já para não falar do nariz perfeitamente esculpido que se desenhava nas proporções exatas. Os olhos refletiam o tom do céu levemente enublado daquele dia e as sobrancelhas, espessas e do mesmo tom da sua barba rasa, curvavam-se de forma imponente, talvez para os proteger na eventualidade de chuva. Os cabelos negros sedosos pareciam cortinas ao abrirem-se para uma testa larga e imaculada, e eram longos o suficiente para lhe cobrir parte das orelhas. Os fios do tom mais negro que Liberty já havia avistado, desciam de forma revolta apenas até à nuca.

− Príncipe Elroy, é para mim um imenso prazer entrevistá-lo pela primeira vez – ecoou uma voz feminina aveludada através do ecrã. A câmara voltou-se de forma relutante para um outro rosto, dessa vez de uma mulher de curtos cabelos louros, que dificilmente competiria com a beleza do primeiro. – Suponho que esteja tão entusiasmado quanto eu – a voz desabou num falsete nervoso no final da frase.

A câmara precipitou-se na direção do homem que parecia ainda cogitar a resposta.

− Duvido – a palavra curta entoada numa voz de barítono irrompeu do silêncio. Os olhos azuis mesclados num cinzento profundo ofuscaram brevemente.

A imagem do ecrã alargou-se pela primeira vez, permitindo o vislumbre dos dois sentados frente-a-frente com um painel branco como fundo. As diferenças entre eles se tornaram ainda mais salientes com a alteração do enquadramento. A mulher, com um vestido negro de mangas, justo até aos joelhos, afundou-se na pequena poltrona amarela que parecia perfeita para o seu tamanho, mas que apagara a vivacidade dos seus cabelos curtos. As pernas estavam entrecruzadas e as mãos morenas descansavam sobre o seu colo ligeiramente inquieto. Por seu turno, o homem, com um smoking do mesmo tom dos seus olhos, se mostrava ereto na poltrona encarnada e o seu tronco avolumado acompanhava, sem dificuldade, a altura exagerada das costas do assento. Fincado no chão, o sapato negro polido a refletir o quase ausente sol, e sobre a mesma perna o outro sapato descansava na sombra que cobria o seu corpo, quase por completo. Ambos os joelhos se dobravam num ângulo seguro de 90º, certamente premeditado. A perna do lado esquerdo perpendicular ao solo branco e a do lado direito paralela a este. Já os braços se esticavam ao longo do veludo vermelho que lhes servia de apoio, terminando num par de mãos fortes que fincavam a extremidade dos braços da poltrona.

A entrevistadora soltou um riso nervoso e trocou a posição das pernas cruzadas uma sobre a outra.

− Então, vossa majestade... − começou a medo, perscrutando a reação do homem que não tirava os olhos dela. A cena fez com que Libby se lembrasse de um predador que avalia a presa antes de dar o golpe mortal. Esse era um dos momentos mais tensos dos poucos livros que a moça havia guardado sob o compartimento secreto do quarto que partilhava com as duas irmãs. "Ironicamente, naquela situação, era o entrevistado quem parecia ávido por atacar", concluiu com um meio sorriso no rosto. – Como foi passar todo este tempo fechado na mansão a se preparar para esta nova etapa da sua vida? – proferiu a longa pergunta num fôlego só, algo que pareceu doloroso para as três irmãs que assistiam.

− Normal.

− Claro que sim – se apressou a dizer. A sua face admitia a culpa do despropósito da interrogação. – Mas ainda assim todo o reino está curioso de saber em que atividade despendia mais tempo? – Uma súbita coragem preencheu-lhe a voz.

− Não é óbvio, Diane? – o príncipe questionou ao passar as mãos pelo seu próprio tronco. A entrevistadora assentiu com a cabeça em sinal de entendimento, mas os seus olhos de um azul límpido transpareciam uma certa inquietação. O nome pareceu ter sido usado só para humilhar ainda mais a pobre mulher. – A exercitar o corpo – acrescentou entre gargalhadas sonoras que detinham uma cadência demasiado perfeita.

A gargalhada histérica de Diane juntou-se com a do príncipe, com alguns segundos de atraso.

Liberty revirou os olhos e suspirou incrédula com o que acabara de ouvir.

− Deixa ouvir, Libby – recriminou Éliane, apesar das gargalhadas serem o único ruído que dispersava através do televisor.

A irmã do meio falhava a entender aquilo que já era claro como água para Liberty: O príncipe era um ser humano intragável.

− E tenho a dizer-lhe que executou esse trabalho na perfeição – confessou a entrevistadora com as faces rosadas a dar vida ao seu rosto delgado. – Foi tudo para agradar a futura princesa?

− Acho que ela é que tem de se preocupar em me agradar. – Elroy passou a mão pelos cabelos negros, desgrenhando-os mais um pouco. Fechou e voltou a abrir o olho esquerdo e os seus lábios fechados tornaram-se mais carnudos.

− Tem toda a razão. – A entrevistadora abriu as pernas só para voltar a cruzá-las depois. Na sua face corada, colou-se um sorriso estranho, daqueles que pretendem agradar os outros e não a pessoa que sorri. – Todos estão ansiosos para finalmente descobrir quem será a sortuda. O príncipe também, certamente.

Diane fez uma pausa, mas a voz do seu entrevistado não se ouviu. A câmara voltou a se focar na face do homem, atenta a qualquer mínima reação, porém os olhos continuavam tão enublados quanto o céu e as sobrancelhas arqueadas em defesa do rosto fechado. Nem a câmara aguentou fixar-se mais do que alguns segundos naquela imagem parada e indecifrável. A perspetiva voltou a ser a do cenário total, justo no momento em que se via Diane se afundando mais um pouco na seda amarela que a envolvia.

− Como é que a idealiza? A futura princesa, digo – apressou-se a explicitar, caso Elroy se esquecesse do motivo porque ali estava.

− Mulher – afirmou a resposta óbvia que lhe assomou à mente. Liberty não conseguiu evitar sorrir com a cara de espanto da entrevistadora.

− Pois, está claro. – Diane soltou um riso esganiçado. O homem limitou-se a olhar para ela o que fez com que a entrevistadora se recompusesse de imediato. – E que características quereria que ela tivesse?

− Não sei o que quer que lhe diga. Uma mulher loura de olhos azuis? Ou uma mulher de peito avantajado e de fina silhueta?

− Certamente, a combinação dos dois cenários, não? – interrogou Diane com o seu tom de pele já quase totalmente oculto pelo sangue que lhe corria pela face. Os seus olhos azuis acabavam de ganhar uma luz intensa e os seus cabelos louros balançavam no ar, apesar da ausência de vento.

− Porque não? Isso seria o sonho de qualquer homem – rematou numa voz rouca que fez a entrevistadora derreter-se um pouco mais no assento. Liberty pensou se aquela conversa fútil seria tão vazia, quanto aquela poltrona amarela que parecia não ter fim. Se Villeneuve fosse o espelho do seu futuro monarca, a província seria esmagada pela sua presunção, disso ela tinha a certeza.

− Que pena eu ser demasiado velha para ser candidata – comentou Diane entre risos.

A câmara, a entrevistadora e as três irmãs esperaram por uma resposta de Elroy que nunca chegou a ser pronunciada. Nessa altura, foi a vez de Éliane admitir para si mesma que aquilo não tinha sido muito cavalheiresco da parte do príncipe. "Mas se a mulher tinha quase o dobro da idade dele, do que estava ela à espera?", contra-argumentou num pensamento não verbalizado, em defesa de sua majestade.

– Brincadeira – acrescentou a loura como forma de salvar a face. – Talvez seja a altura ideal para a proclamação por que todo o reino aguarda. Afinal de contas, toda a província parou para assistir a este momento. Está preparado, sua alteza real?

− Passei vinte anos a preparar-me, suponho que essa questão nem se ponha.

A entrevistadora engoliu em seco e o seu olhar fugiu para o fundo branco que se estendia do seu lado esquerdo, o lado contrário ao da câmara.

− Vamos a isso, então – declarou Diane numa voz arrastada.

Uma imagem da forma oval da província de Villeneuve foi projetada a duas dimensões no fundo branco. Todas as sete aldeias representadas numa única cor: o negro das vestes do povo. As fronteiras eram marcadas num tom cinzento tão subtil, que era preciso olhar duas vezes para ter a certeza de que elas, de fato, existiam. Uma coroa real ornamentada de prata, o símbolo da monarquia, saltava de ponto em ponto sobre o mapa estático projetado. O seu movimento dava a impressão de que a seleção era um procedimento aleatório, quando as três irmãs recostadas no sofá sabiam que não era. Quando todo o reino o sabia.

Ao fim de uns agonizantes segundos para Liberty, que sentia o seu estômago roncar de fome, e para Éliane, que sentia o seu coração contorcer de ansiedade, a coroa estacou na aldeia onde vivia a família Beaumont. A irmã do meio pulou até à ponta do sofá, se aproximando do televisor como se assim pudesse ver melhor. Talvez as suas preces fossem ouvidas e ela fosse a escolhida para casar com o príncipe. Pelo menos, foi nisso que ela acreditou, quando juntou as mãos numa última prece silenciosa. Claro que ela não sabia que não era o seu maior sonho que estava prestes a se concretizar, mas antes o seu pior pesadelo.

− Liberty Beaumont – gritou eufórica a entrevistadora ao ler o nome que piscava por baixo da imagem de uma bela moça com rosto de anjo.

As três irmãs prolongaram o silêncio que se instalara entre elas. Nenhuma conseguiu dar forma às dúvidas e inquietações que se acenderam no seu interior. No ecrã da sala, a foto de Libby foi substituída pela imagem do rosto do príncipe. Por mais que tentasse, nem ela, nem, muito provavelmente, ninguém daquele reino, conseguiram decifrar os pensamentos de Elroy naquele momento. A sua expressão parecia uma mancha negra sem qualquer contorno, sem qualquer relevo. Um aglomerado sem forma.

− Gosta do que vê, sua majestade? – ouviu-se Diane questionar, apesar de ser o mesmo rosto a habitar o televisor.

A câmara afastou-se.

− Não é loura – constatou de olhos colados na imagem de Liberty. Depois de alguns segundos em silêncio, se voltou na direção da câmara que obedeceu ao seu pedido mudo de se aproximar dele. – Veremos se isso é bom ou mau sinal – acrescentou de forma enigmática sem qualquer vestígio de luminosidade no seu olhar.

Liberty se habituara a considerar a si mesma como bela, depois de tantas pessoas afirmarem-lhe convictamente de que era. As próprias irmãs proferiam-no inúmeras vezes, Éliane com inveja e Anastasie por fascínio. As duas irmãs de Libby tinham herdado o cabelo castanho espesso e rebelde do pai, com os fios todos do mesmo tom, tornando-o baço e sem vida. O nariz da irmã do meio era longo e os belos olhos, que lembravam os da irmã mais velha, perdiam-se na imensidão do seu rosto. Já a irmã mais nova tinha um adorável rosto redondo com sardas a pintalgar-lhe a pele por baixo dos olhos, que eram comuns às três irmãs. Mas os seus traços ainda eram de criança, e ninguém poderia prever se a proporcionalidade do rosto se manteria nos anos vindouros.

Contudo, ninguém nunca parecera indiferente ao se deparar com a figura esbelta da irmã mais velha da família Beaumont. O facto do príncipe Elroy ter demonstrado tamanha indiferença face à sua pessoa, inquietou Liberty.

− Quais as palavras que lhe gostaria de transmitir agora? – a voz curiosa de Diane preencheu mais uma vez o silêncio perturbador da sala dos Beaumont.

− Você é minha agora. – A intensidade na voz e no azul acinzentado dos olhos de Elroy fez a futura princesa estremecer. Havia algo de extremamente aterrador naquelas simples palavras.

Para Elroy, a proclamação real da seleção era inquestionável e ele estava agora unido para toda a eternidade àquela estranha de rosto angelical. Para Liberty, aquilo não passava tudo de um grande equívoco que facilmente se dissolveria.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top