Capítulo 19 - Três segundos
Liberty deixara-se ficar sentada na poltrona a olhar para Elroy enquanto este dormia. Tentava decifrar o homem à sua frente sem grande sucesso. A verdade é que os últimos acontecimentos fizeram estremecer todas as certezas da jovem e ela já não sabia o que devia pensar. Sem dúvida alguma que continuava a não querer casar com ele, mas isso não significava que ela tinha de o tratar com sete pedras na mão. Iria manter apenas uma no bolso, só para o caso, mas deixaria as mãos livres para apalpar terreno que já não aparentava ser, de forma alguma, perigoso.
Não demorou muito para que madame Potts aparecesse no quarto e a substituísse na guarda do príncipe. A criada advogou que só não aparecera no dia anterior no quarto, porque Lumière insistira que os dois precisavam de um tempo a sós. A selecionada não podia negar o impacto positivo que esse tempo havia tido na relação dela com o príncipe. Pelo menos agora não se odiavam. E ainda teve a chance de conhecer um novo livro, que a fascinou por completo.
De volta ao quarto, Nicolette, alertada por madame Potts, aguardava-a com uma banheira coberta de água quente e espuma até ao topo. A criada respeitou o espaço da jovem e pouco perguntou ao ver o seu estado exausto. Depois de uma massagem relaxante, Liberty deixou-se adormecer dentro de água e madame Armoire tratou de a vestir e colocar confortavelmente dentro da cama.
O cansaço era tal que Libby dormiu durante toda a manhã e só acordou quando a criada de quarto lhe veio trazer o almoço. A primeira preocupação da garota foi saber como se encontrava o príncipe, mas Nicolette não sabia grande coisa sobre isso. Só lhe pôde garantir que estava a ser muito bem cuidado por Lumière, naquele momento, e que madame Potts parecia confiante na rápida recuperação do futuro regente de Villeneuve.
Uma hora se passou sem que a jovem recebesse uma única notícia sequer sobre o estado de Elroy. Isso, aliado ao fato de estar presa num quarto sem nada que fazer, estava a ponto de a enlouquecer. A jovem decidiu então arriscar um pouco e saiu da proteção daquele quarto que já era um pouco seu.
Apesar do tamanho enorme da mansão, Liberty lembrava-se com precisão do caminho que a levava até aos aposentos do príncipe. O piso superior da casa era um labirinto de corredores com inúmeras portas para espaços onde a selecionada nunca havia entrado. Enquanto passava por elas, a jovem sentia a sua curiosidade a espicaçá-la. Era mais forte do que ela. No entanto, os seus movimentos decididos tinham apenas um propósito, ela não iria se desviar do seu caminho até ter a certeza de que Elroy estava melhor.
De frente para a porta, Libby hesitou. E se não fosse bem-recebida? E se o príncipe voltasse a ser aquele homem mal-humorado?, as dúvidas paralisavam-na. Porém, ela não se deixou vencer por elas e bateu firmemente na madeira.
− Parece que chegou a minha substituta – falou Lumière ao abrir a porta do quarto, poucos segundos depois.
Os olhos do criado demoraram-se nas calças e blusa que a recém-chegada trazia vestidas. A vestimenta lembrou-o da sua amada, que usava aquelas mesmas roupas no dia em que chegara, pela primeira vez, à mansão. No corpo mais preenchido da criada, o tecido colava-se ao corpo de forma provocadora. Em Liberty transparecia uma simplicidade que não deixava de ser ousada.
− Não é justo – acrescentou o criado logo de seguida. – Como é que é suposto eu competir com esta beldade?
O homem na cama precipitou-se a levantar o tronco, continuando deitado, mas podendo ver mais do que apenas o teto parado sobre a sua cabeça. O seu coração batia freneticamente dentro do peito antes mesmo de vislumbrar a bela moça na soleira da porta.
− Oh, Lumière, – as faces da jovem coravam visivelmente, − assim fico sem graça. Eu só vim ver como ele estava – apressou-se a justificar.
− Lamento, mademoiselle, mas vou aproveitar que chegou para esticar um pouco as pernas. – O criado encolheu e esticou uma perna alternadamente para realçar o seu argumento. − Já me estava a sentir enferrujar – gracejou.
Lumière agarrou gentilmente nas mãos já totalmente curadas da selecionada, graças à pomada milagrosa que Nicolette lhe havia recomendado, e encaminhou-a para dentro do quarto. Os olhos castanhos de Libby encontraram os do príncipe sobre si e ambos sorriram. Um ato reflexo que nenhum dos dois sabia muito bem explicar.
− Aproveitem bem este tempo – aconselhou o criado antes de sair disparado pela porta. A jovem nem teve tempo de abrir a boca para protestar.
− Está com muito melhor aspeto – comentou a moça sem saber muito bem o que fazer às mãos. Primeiro entrelaçou-as uma na outra à frente do corpo, depois optou por envolver a parte de detrás do pescoço excecionalmente exposto. E, por fim, resolveu esconde-las dentro dos bolsos das calças.
− Nunca pensei ouvir isso de alguém – confessou o príncipe num sussurro fraco. Liberty ouvira-o, ainda assim, e sabia que Elroy se referia à sua pele deformada. O clima ficou instantaneamente mais pesado e a jovem repreendeu-se mentalmente por isso. – Mas também nunca pensei te ver de livre vontade à minha procura – acrescentou com um sorriso matreiro. – Acaso você está preocupada comigo?
− Estou, mas faria o mesmo se fosse qualquer outra pessoa. Bom, talvez não o rei. – O desagrado transpareceu-lhe no rosto com a última hipótese. O nariz enrugado e o lábio inferior descaído da jovem fizeram Elroy rir a plenos pulmões.
− Fico feliz por não estar ao nível do meu pai, pelo menos – disse o príncipe ao recuperar o controlo do seu próprio corpo. – Já é um princípio.
− Hum... − Liberty contorcia as mãos dentro dos bolsos apertados. − Se calhar é melhor eu... é melhor eu ir – concluiu.
− Não! – Elroy gritou num tom de voz autoritário, a mão direita estendida no ar como se pudesse alcançar a jovem que lhe virava as costas. – Não vá embora – pediu num fio de voz suplicante. A selecionada estacou. – Fique. Eu ainda não recuperei totalmente. – Liberty sentiu-se estremecer com aquele pedido de ajuda. Aquilo é o que ela tentava fazer todos os dias ao cuidar das crianças na creche ou da sua própria irmã. Ela cuidava de pessoas, ajudava-as, sem nunca esperar nada em troca. – E eu... Eu quero que seja você a fazer-me companhia.
Liberty girou 180º sobre o seu próprio corpo e encarou o homem que a começava a intrigar como nunca antes alguém o tinha feito. Ela estava habituada a que as pessoas recebessem a ajuda dela, porque era sempre ela que se disponha a isso, não é que tivessem outras opções. Mas naquela mansão opções não faltavam, e, ainda assim, Elroy escolhia-a a ela.
− Talvez possa ficar até o Lumière regressar – disse a jovem.
Elroy esticou-se até à mesa de cabeceira por detrás da poltrona e agarrou um livro de capa dura. Liberty não conseguiu não reparar nos músculos contraídos do braço forte do príncipe. E aquilo que sentiu pareceu-lhe muito diferente da repulsa que a pele deformada lhe havia causado ao início. Sem se aperceber disso, a jovem começava a abrir-se para a possibilidade de enxergar o homem por debaixo daquela capa horrenda.
− Ótimo, porque eu tenho aqui um outro livro que gostava que você lesse para mim. Pedi ao Lumière para o trazer a pensar na possibilidade remota de você vir me visitar hoje.
A jovem sorriu. Ali estava um interesse que parecia unir duas pessoas aparentemente tão diferentes uma da outra.
Liberty correu até à poltrona entusiasmada com o novo mundo que a esperava e quando Elroy esticou o livro para ela, a jovem não hesitou e agarrou-o. Por três segundos, as mãos dos dois ficaram suspensas no ar e ligadas através daquele objeto que em silêncio prometia tanto. Foram três míseros segundos que, sem nenhum dos dois saber, se haveriam de propagar e multiplicar de forma infinita no tempo.
− "O amor pode dar forma e dignidade." – Elroy seguia atentamente os movimentos dos lábios de Liberty ao pronunciar cada palavra do livro. Ele já as conhecia a todas, mas, de alguma forma, a voz doce da jovem dava um sentido totalmente novo àquilo que o príncipe já tinha como garantido. A esperança começava a agigantar-se dentro do seu coração apertado. − "O amor não vê com os olhos, e sim com a mente."
− "E por isso, o alado cupido é representado cego" – as duas vozes ecoaram juntas numa sincronia perfeita.
Liberty levantou os olhos do livro e fitou a intensidade enigmática do azul enublado no rosto do príncipe. A pele dos seus braços arrepiara-se com a sonância da sua voz envolta da de Elroy. Aquilo trouxe-lhe à memória as juras que os apaixonados trocam diante do altar. Abalada com a situação, Libby apressou-se a fechar o livro.
− Não vai continuar? – interrogou Elroy surpreso com a reação súbita da selecionada. A forma como ela lhe evitava olhar nos olhos magoava-o profundamente.
− É um romance – constatou simplesmente como se aquilo explicasse alguma coisa. A sua atenção decaía na lombada grossa do livro que afagava com o polegar. – Não sabia que gostava de romances?
Elroy olhou em frente, cruzou os braços sobre o peito parcialmente descoberto e sacudiu os ombros.
− É William Shakespeare – justificou. A selecionada permaneceu calada. O príncipe voltou novamente o rosto na direção dela e percebeu que aquilo nada significava para a jovem. – É um clássico. Se gosta de ler, tem mesmo de conhecer o trabalho de Shakespeare.
− Ele é sempre assim tão... − Liberty fez uma pausa à procura da melhor palavra para o descrever. Um castanho determinado apanhou Elroy desprevenido quando a moça ergueu a face. − Intenso?
O futuro monarca sorriu de boca fechada, expirando bruscamente o ar pelo nariz.
− Você nem faz ideia o quanto – respondeu ao recordar-se da história de Romeu e Julieta.
Madame Potts entrou no quarto exatamente nesse momento, trazendo sobre as mãos um tabuleiro com um prato fundo de sopa.
− Espero que agora esteja com mais fome, menino – a criada recriminou ao aproximar-se da cama. – Não pode passar o dia inteiro sem nada no estomago.
Liberty viu Elroy contorcer o rosto em desagrado.
− Não se preocupe, agora estou cá eu e vou garantir que ele come tudo – assegurou a moça ao sentar-se sobre a cama. O príncipe arregalou os olhos com a proximidade inesperada.
Um sorriso genuíno desenhou-se no rosto redondo de madame Potts ao ver os dois na cama tão pertos um do outro. A criada conseguia ver os contornos de uma linha fina a envolver os dois, que o tempo se encarregaria de reforçar e fortalecer. Ao entregar o tabuleiro a Liberty, ela soube que estava a passar a responsabilidade de cuidar do seu menino para a jovem. A mulher não conseguiu segurar a emoção daquele momento e algumas lágrimas desceram-lhe pelas bochechas rosadas.
Os futuros monarcas fitaram-na alarmados.
− O que se passa, Dali? – interrogou o príncipe pousando a sua mão sobre a da empregada, que se encontrava apertada contra a cama. Libby achou aquele momento muito ternurento e era a primeira vez que via alguém se dirigir à criada com tanta informalidade.
− Não é nada – apressou-se a responder ao limpar as lágrimas com a mão livre. Não era suposto ser o seu menino a conforta-la, mas sim o contrário. E claro que ela não queria assustar os dois ao lançar no ar aquilo que ainda lhes era invisível aos olhos. O tempo, mais uma vez o tempo, faria esse trabalho por ela de uma forma muito mais subtil. – Não é nada – repetiu já sem humidade no rosto e com um sorriso pendurado no seu lugar. Os dois jovens estranharam a alteração repentina.
Adaliz Brouillet Potts, a mulher de cinquenta e dois anos já de cabelo grisalho, retirou-se do quarto sem mais nada dizer, deixando para trás Liberty e Elroy de queixos caídos.
O peso do tabuleiro sobre o colo de Libby trouxe-a de novo à realidade.
− Abra a boca – ordenou Libby ao mergulhar a colher no prato.
− Por muito que eu tivesse desejado ouvir uma mulher fazer-me tal pedido nesta mesma cama, nunca imaginei que fosse nestas circunstâncias – admitiu constrangido ao ver o cotovelo da jovem espetado para trás de colher em riste.
− E a sua sorte é que esta é a minha especialidade.
− Dar comida à boca de homens adultos? – questionou espantado, sem perceber aonde ela queria chegar.
− Não, engraçadinho. Eu trabalho numa creche.
− Acaso está a chamar-me de criança? – Os olhos do príncipe estreitaram-se para a moça de queixo empertigado, a pequena cova dessa zona salientada desafiando-o.
− A ideia já me ocorreu algumas vezes – confessou com um brilho nos olhos que incendiou Elroy. O príncipe contorceu os dedos dos pés por debaixo da coberta para tentar recuperar o autocontrolo. – Agora, abra a boca – repetiu, encostando a colher aos lábios firmemente selados do adoentado.
Com aquela ameaça tão próxima, Elroy nem se atreveu a abrir a boca sequer para falar. Não quero comer e ninguém me pode obrigar a fazê-lo, pensou convicto, a sua testa já completamente franzida. No entanto, a rapariga tinha as suas próprias convicções e não iria ceder tão facilmente por muitas caras feias que o príncipe colocasse.
A mão livre de Liberty beliscou com força a mão de Elroy estendida sobre o colchão. A boca do futuro monarca escancarou-se, não de dor, mas de estupefação, e o conteúdo da colher foi empurrado para dentro. A jovem sorriu ao ver o movimento do pomo do pescoço do homem, indicando que a comida tinha sido tragada pelo seu organismo ainda débil.
− Posso saber o que foi isto? – perguntou furioso. O seu tom de voz desagradavelmente elevado. Mas para Liberty aquilo não passava de uma birra e com isso ela também estava habituada. – Esse truque não vai voltar a resultar. E se o teu intuito era enfureceres-me, parabéns, você conseguiu!
− Tudo bem – disse a jovem, transparecendo um excesso de calma que o surpreendeu. Ela pousou a colher na borda do prato. – Se não quer a minha ajuda, acho que não estou aqui a fazer nada.
Liberty agarrou firmemente no tabuleiro e levantou-se da cama.
− Espere – O príncipe bramou num lampejo de consciência. Ele não poderia deixar a sua teimosia interferir com a possível futura relação que ele ainda tinha esperança de vir a conseguir desenvolver com a selecionada. Talvez se ela tivesse reagido em espelho aos seus modos brutos, ele a tivesse deixado ir. Mas a cordialidade da garota, em contraste com a sua grosseria, chamou-o à razão. – Peço desculpa – murmurou sentindo-se estranho por ter de fazer algo que pensara que um futuro rei nunca teria de vir a fazer. O seu orgulho martelava dentro de si, completamente ávido para sair cá para fora.
− Disse alguma coisa? – questionou Liberty ao virar-se para trás, o tabuleiro nem tremeu com o movimento. No seu rosto era notório o quanto aquela situação a divertia.
− Peço desculpa – repetiu num tom de voz firme. – Eu quero que você fique.
− Vai comer tudo?
− Não tudo, metade – afirmou o príncipe perentoriamente.
Libby não disse nada e voltou a virar-lhe as costas encaminhando-se para fora do quarto. Elroy suspirou exasperado e a jovem soube que havia vencido precisamente nesse momento. Um sorriso de vitória colou-se-lhe nos lábios.
− Está bem – o futuro monarca acabou por dizer a custo. – Eu como tudo, mas não preciso que você me dê à boca.
E essa foi apenas a primeira vez que a fera cedera à bela.
Este capítulo foi muito "A Bela e a Fera" e até teve frase final com referência!
Espero que estejam a gostar desta aproximação dos dois.
No próximo temos uma certa visita à biblioteca, mas não só!!!
Até ao próximo.
Bjs
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