Capítulo 18 - Julgamento implacável

Quando a porta do quarto de Elroy se voltou a abrir, Liberty escondeu o livro que estava a ler atrás das costas. Sabia que era algo proibido em toda a redoma, mas o livro desafiara-a a pegar nele. Estava ali, pousado na mesa por detrás da poltrona em que se sentara, como se fosse apenas mais um objeto do quarto. Tão inocente, quanto tentador. E do pouco que tinha lido, já se sentia completamente fascinada pela obra.

Um homem de meia idade entrou no espaço com uma maleta na mão. A simpatia que emanava não escapou à jovem atenta que o analisava do outro lado do quarto. O senhor apresentou-se como sendo o médico responsável pela saúde da família real e a forma como se movimentava com naturalidade entre aquelas quatro paredes levou Liberty a concluir que não tinham sido poucas as visitas que este homem havia feito a Elroy.

O médico abriu a maleta aos pés da cama e tirou de lá um dispositivo pequeno que cabia na sua mão fechada. Aproximou-se, posteriormente, do rosto adormecido do príncipe e forçou as pálpebras a abrirem-se, uma de cada vez, para estudar os seus sinais vitais. Concluída essa análise, foi pegar na coberta, mas hesitou e olhou para Liberty.

− Não é nada que eu já não tenha visto – confessou a jovem com a voz embargada. Ainda tinha a imagem da pele deformada do príncipe demasiado vívida na sua cabeça. Não lhe agradava a ideia de a ter de avivar ainda mais, mas, de certo, não seria tão impactante como da primeira vez.

Assentindo, o médico puxou para trás a coberta com um só gesto. O príncipe encontrava-se despido apenas da cintura para cima e todas as cicatrizes e pregas ainda envolviam o seu tronco musculado. Liberty desviou o olhar apenas uma vez, o cenário era demasiado aterrador, por muito forte que ela quisesse mostrar-se, mas depois de inspirar profundamente voltou a fixar-se no homem adormecido sobre a cama. Enquanto via o seu peito subir e descer cadenciadamente, Libby começou a dar-se conta de que não sentia repulsa, mas antes dó por aquele ser tão gravemente ferido. Ninguém nascia com a pele naquele estado, pelo menos, era nisso que ela acreditava. E se assim fosse, como é que ele chegara àquele ponto de extrema deformação?

O braço de Elroy foi levantado no ar pelo médico, que encostou o pequeno dispositivo sobre uma grossa pulseira negra que envolvia o pulso do príncipe. Liberty não havia reparado antes, mas já naquela noite em que o homem lhe entrara no quarto adentro a pulseira repousava no seu pulso direito.

Uma breve luz verde foi projetada no ar pelo dispositivo e o médico pareceu satisfeito com isso.

− Ele vai recuperar – anunciou o médico, permitindo que Liberty voltasse a respirar normalmente. O corpo de Elroy voltou a ser encoberto. – Já há bastante tempo que ele não tinha uma crise tão forte. Da última vez, ele era ainda uma criança.

− O que é que acha que a despoletou desta vez? – indagou a rapariga curiosa com o rumo da conversa.

− Certamente que o facto de ter desobedecido ao código de vestuário da realeza.

Liberty segurou a vontade de rir ao ver o rosto sério do médico enquanto voltava a colocar o dispositivo na mala. Aquilo não havia sido uma piada, constatou a moça ainda mais intrigada com toda aquela situação.

− E o que ele disse durante a entrevista não ajudou – acrescentou a jovem compactuando com uma história que ainda não decifrara. Porém, ela era inteligente o suficiente para perceber que a culpa poderia ser aquilo que movia a doença do príncipe. Se se limitasse a ficar calada, nunca ficaria a saber a verdade. Ela tinha que entrar na conversa para fazer o médico dizer aquilo que ela queria desesperadamente ouvir.

− Sim, ele arriscou muito desta vez. A ver se fica de olho no seu homem, que ele é demasiado precioso para toda uma nação − aconselhou o médico ao pegar na maleta pela alça. Liberty assentiu sorridente, torcendo para que ele dissesse mais alguma coisa antes de sair. – A bracelete não perdoa e, enquanto ele não for coroado, terá que viver com o julgamento implacável dos seus recetores. Ele já está farto de saber que os neurotransmissores são ativados sempre que ele se sente culpado.

O médico despediu-se de Libby e saiu porta fora sem se aperceber do estado apoquentado da jovem, que não sabia o que haveria de pensar. Ela escondera as mãos atrás das costas para que o seu estado de ansiedade não fosse detetado, e o médico, apressado com as consultas que havia adiado para estar ali na mansão, não desconfiara de nada nem por um mísero segundo.

Elroy acordara com frio, a febre ainda não havia cedido por completo. Ele sentia o seu corpo a lutar contra a invasão de tantos neurotransmissores num tão curto espaço de tempo. Nunca se havia sentido tão doente, isso era um fato inquestionável. Já nem se lembrava de como era terrível a sensação de dor incontrolável que invadia todo o seu corpo quando desobedecia às normas rigorosamente estipuladas para a sua conduta como futuro regente de Villeneuve. Começara a sentir o efeito subtil no quarto de Liberty, ao decidir que iria vestido com os mesmos tons negros com que a selecionada envolvera o seu corpo. E ao chegar à sala para a entrevista, com o melhor smoking do seu fiel criado de quarto, já mal se aguentava em pé tal era o choque de dor que lhe inebriava a consciência.

No entanto, Liberty havia-lhe provado que valera a pena todo o sofrimento por que passara. E ao olhar para o corpo adormecido da bela jovem aninhada no conforto da sua poltrona, Elroy teve a certeza de que aquela era a única mulher que o poderia salvar de si mesmo.

O livro aberto sobre o colo da jovem desceu uns centímetros, quando esta se espreguiçou na poltrona. Os braços esticados fizeram com que o seu peito se avolumasse dentro do decote pronunciado do vestido. Elroy perscrutava deliciado a forma descontraída com que a rapariga movia, sem qualquer pudor, o seu corpo à frente dele. E mesmo sabendo que nunca a poderia ter como uma verdadeira esposa, não conseguia evitar não a desejar.

Liberty entreabriu os olhos para a ténue luz da madrugada e sobressaltou-se ao ver o príncipe na cama com um sorriso de orelha a orelha. O livro tombou no chão com o movimento repentino.

− Estou a ver que já se sente bem melhor – disse a rapariga ao cruzar os braços sobre o peito.

− Gostou do livro? – questionou Elroy ao subir um pouco o corpo, saindo da posição totalmente horizontal que já começava a incomodá-lo.

A coberta desceu um pouco com a nova posição do príncipe, deixando à mostra a pele marcada dos ombros e da parte superior do peito. Só depois o futuro monarca se deu conta de que o gesto o deixava demasiado exposto, mas a reação de Liberty surpreendeu-o. Ela olhava-o sem qualquer sinal de desagrado ou repulsa.

− Não era minha intenção vasculhar, mas vi o livro sobre a mesa de cabeceira e não consegui resistir – justificou-se encabulada. As suas faces rosadas fizeram o príncipe rir. E a moça indignada com o descaramento do homem, interpelou-o, − Posso saber do que se ri? Acaso sou motivo de piada?

− É que é só um livro – apressou-se a explicar ao ver o estado alterado da jovem. − Você fala como se tivesse espreitado a gaveta da minha roupa interior – gracejou Elroy sem conseguir manter uma expressão séria por muito tempo. A comparação traçada pelo futuro monarca fez o sangue de Libby aflorar-lhe ainda mais ao rosto.

− Para mim, não é só um livro. É que nas aldeias é proibido ler por lazer como você bem sabe. Só podemos ler os livros que nos são dados na escola.

− Estou a ver – comentou Elroy num tom de voz arrastado.

Era uma regra que havia sido implantada juntamente com a redoma. O povo não poderia ter acesso a livros que fizessem instigar ódios, sonhos vazios e revoltas. Nos livros espalhavam-se ideias e fantasias perigosas que poderiam inflar os peitos dos Homens e incitá-los a iniciar lutas que o passado havia provado não serem benéficas para ninguém e, muito menos, para o planeta Terra.

Liberty debruçou-se na poltrona para apanhar o livro que caíra ao chão. Alguns dos cacos da caneca haviam evitado a colisão total com o piso duro e frio do quarto.

− Le petit prince* – a rapariga leu o título do livro em voz alta. – Parece-me apropriado – gracejou ao virar a capa para Elroy. A imagem de um rapaz rodeado de três astros e três flores decorava uma simples capa de um único tom acastanhado.

− É uma tolice, um livro infantil – disparou ao sentir a sua masculinidade posta em causa. – Eu nem sei...

− Eu gostei – confessou a jovem interrompendo-o. – Tem mensagens bonitas e bem profundas. "É somente com o coração que podemos ver corretamente..."

− "O essencial é invisível aos olhos" – Elroy completou a frase que já havia lido vezes sem conta. Mas o príncipe sabia que aqueles olhos castanhos sobre si eram demasiado vivos para se desligarem simplesmente. Era uma mensagem bonita, mas não passava disso. Na vida real, ninguém conseguiria olhar para ele apenas com o coração.

O futuro monarca virou o seu rosto para o teto, incapaz de encarar Liberty.

− A pulseira que tem em volta do pulso... − Libby falou passado um longo minuto de silêncio. O príncipe arregalou os olhos para ela. − Tem-la desde sempre?

− Então você já sabe disso – constatou Elroy, de certa forma tranquilo pela ausência do peso daquele segredo entre os dois. Ele puxou o braço para fora da coberta e pousou-o sobre o peito tapado. A pulseira agora uma realidade palpável para os olhos de ambos. – Foi fixada ao meu pulso quando fiz um ano de idade e desde aí ela tem sido o juiz da minha conduta, durante 24 horas por dia. Fui treinado para obedecer às regras cegamente, de outra forma sou punido com uma dor incessantemente incontrolável – explicou num tom de voz estável que não transmitia qualquer tipo de emoção.

− O rei também teve uma?

− Sim e ainda a tem. – Aquela informação surpreendeu a jovem que se lembrava de o médico ter dito que a pulseira ficaria no pulso de Elroy até à sua coroação. – Ele decidiu mante-la para mostrar que não a temia, que iria ser um regente tão competente que a pulseira nunca mais seria ativada. Uma forma de mostrar a sua força e valentia – acrescentou com amargura.

− Pois a mim parece-me que você é que mostrou essas duas qualidades ontem – a voz sincera e doce da selecionada apanhou Elroy desprevenido. Ela estaria a elogiá-lo?, tentou decifrar na profundidade enigmática daquelas íris que lhe lembravam a terra molhada. – Se sabia que ia sofrer com isso, porque é que foi vestido de negro para a entrevista?

− Porque sabia que se te deixasse ir sozinha vestida daquela forma, a destoar de toda a família real, as repercussões seriam devastadoras – admitiu com o fantasma dessa possibilidade a escurecer-lhe os olhos. − Assim, a mensagem que passámos pode não ter agradado muito ao rei, mas não pareceu um sinal de revolta ou desobediência. Para todos os efeitos, foi um passo que demos em conjunto com o aval dos meus progenitores.

Liberty começou a folhear as páginas do livro que tinha entre as mãos. A ansiedade a corroer-lhe as entranhas. A jovem percebeu que o gesto do príncipe fora de proteção para com ela, ela só não compreendia como é que alguém que mal a conhecia poderia ser capaz de tamanha generosidade. Colocar a sua saúde em causa para proteger uma desconhecida, pareceu-lhe a definição exata daquilo que um herói, e não um monstro, faria.

− Você pode ler para mim? – interrogou Elroy com vontade de ouvir a doce voz da garota que se havia silenciado com o peso da confissão do príncipe. – Isso iria ajudar-me a adormecer – justificou-se ao constatar a hesitação no rosto angelical que o fitava.

Ao lembrar-se da sua pequena irmã enferma, Liberty não conseguiu recusar aquele simples pedido. Anastasie também lhe pedia muitas vezes que lesse para ela antes de adormecer, e a irmã mais velha ficava satisfeita por poder partilhar aquele seu amor pelos livros com a pequena criança. Cuidar de pessoas era a sua verdadeira vocação e mesmo não sendo minimamente íntima daquele homem debilitado, ela sentia-se útil por o poder ajudar da única forma que sabia.

A cadência melodiosa que chegava aos ouvidos de Elroy, invadiam-no com uma paz que este julgava inalcançável para um ser tão ferido como ele. As pálpebras pendiam-lhe pesadamente sobre os olhos e o príncipe despendia todo o resquício de força que ainda detinha para se manter acordado. Com a voz de Liberty a colorir a sua frase predileta, Elroy finalmente cedeu. "O essencial é invisível aos olhos", a promessa enunciada através da voz da bela moça permitiu-lhe sonhar, pela primeira vez, com um futuro risonho.


*O pequeno Príncipe (versão BR) ou O Principezinho (versão PT) de Antoine de Saint-Exupéry

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