Capítulo 17 - Pai zeloso
A lua já se via no céu com a ausência do sol escaldante daquele dia, quando Liberty, acompanhada de madame Potts, entrou no quarto de Elroy. As cores escuras do quarto, iluminadas pela luz artificial que emanava do teto, condiziam com a imagem que a jovem já havia formado sobre o príncipe. A vasta cama de coberta acastanhada amparava o corpo inerte de Elroy, permitindo vislumbrar apenas o rosto de olhos cerrados do futuro monarca. Aos pés da cama, Lumière juntava as mãos numa prece silenciosa pela recuperação do mestre que tanto prezava. E Big Ben, ao lado do amigo, coçava a nuca sem saber muito bem o que fazer ou pensar. Claro que na cabeceira da cama, numa poltrona de pele negra, o rei, de postura completamente ereta, analisava o filho inconsciente, que, mais uma vez, se mostrara uma tremenda desilusão.
− Como é que ele está? – questionou a criada ao encaminhar-se para a cabeceira desocupada da cama. As suas mãos ligeiramente trémulas fizeram o líquido da infusão dançar ao ritmo da sua angústia.
O rei olhou para cima e levantou-se num salto ao cruzar o seu olhar com o de Liberty. A expressão dura do monarca enrugou-se como nunca antes.
− O que é que ela está aqui a fazer? – bradou o rei com o dedo apontado na direção da jovem que ainda não tinha tido coragem de se afastar da porta.
− Eu vim ajudar – respondeu Libby a medo.
− É preciso ter um grande descaramento! – O rei bufou de indignação. Os criados, junto aos pés da cama, olharam para a moça apiedados com a forma como estava a ser tratada pelo futuro sogro. – Foi você que o colocou neste estado! – acusou com a fúria a colorir-lhe o rosto de um tom avermelhado.
− Eu... mas eu não fiz nada – disse a jovem sem perceber a lógica inerente àquele pensamento descabido do rei.
− Saia daqui imediatamente – ordenou Keandre sem mais paciência para lidar com aquela pedra no seu caminho. E às pedras nada mais há a fazer do que chutá-las para longe.
Os três criados imobilizaram-se, feito estátuas, nos respetivos lugares. Lumière e Big Ben ainda aos pés da cama e de rostos colados na jovem coitada que acabava de ser escorraçada do quarto pelo rei da província, e madame Potts com a mão livre sobre a testa quente do príncipe, mas com o seu queixo erguido na direção do homem que de pai zeloso tinha muito pouco.
Liberty deveria sentir-se feliz por ver que o rei não a queria ao lado do filho. Talvez o facto de ter sido a selecionada não seja algo tão definitivo quanto isso, o pensamento passou-lhe pela mente. Mas ela não se sentia feliz. Naquele momento, parecia que carregava o peso do mundo inteiro sobre si, o peso da humilhação era demasiado elevado para que ela conseguisse se sentir verdadeiramente livre. Por isso, voltou costas a tudo, ao rei, ao príncipe, aos criados, e agarrou-se ao puxador da porta desprovida da força necessária para sair daquela situação.
− Ela... − a voz de Elroy saiu a custo.
Libby virou-se com uma lágrima a escorrer-lhe pelo rosto. Todos os presentes fitaram o príncipe, ainda de olhos fechados e inerte sobre a cama, por isso não viram a humidade que passeava pelas faces pálidas da jovem. Os lábios do homem fraco entreabriram-se levemente, o pomo proeminente na sua garganta desceu e voltou a subir. Depois, o silêncio atroz daquele momento em suspenso foi novamente interrompido pela mesma voz rouca.
− Ela fica.
− Ele não sabe o que diz! – protestou o rei, ainda mais encolerizado por o filho se atrever a passar por cima das suas ordens, e à frente da criadagem. Todos os corações se aqueceram com as palavras de Elroy, porque eram sinal de que este ficaria bem. Todos, menos o do rei, que estava mais preocupado em preservar a sua dignidade. – Está a alucinar, só pode! Está praticamente inconsciente, não veem?
As pálpebras de Elroy lutaram arduamente para se manterem completamente esticadas, mas o príncipe mostrou-se à altura da batalha, e, ao fim de algumas investidas, conseguiu aguentar a luz intensa que lhe chegava às retinas.
− Eu estou suficientemente consciente, pai – pronunciou de forma arrastada sem conseguir deslocar o pescoço para conseguir ver algo mais interessante do que o teto vazio do seu quarto.
Madame Potts sorriu orgulhosa do seu menino e aproveitou para lhe levar a caneca à boca. Ele poderia estar ligeiramente melhor, mas continuava a precisar urgentemente da infusão. Elroy reconheceu o cheiro forte e adocicado que lhe chegou às narinas e forçou-se a engolir algumas gotas do líquido quente que lhe molhava os lábios. O rosto sorridente da criada, que era para ele como uma mãe, apareceu no seu campo de visão, motivando-o a bebericar mais um pouco da infusão que esta havia preparado com tanto carinho para ele. O confortável calor do líquido começava a aquecer-lhe as entranhas e a dar-lhe um tom mais rosado às faces.
− Elroy, − chamou o pai assim que viu o filho desistir de beber a infusão, − ela não é a mulher certa para ti. – Liberty sobressaltou-se ao perceber que o rei falava dela. – Eu sou o rei, tenho poder para desfazer esta seleção. De certo, houve alguma espécie de erro – argumentou num tom que denunciava o quanto admitir tal coisa lhe custava. Mas na sua voz ou na sua expressão corporal era impossível de detetar o quanto informado ele estava sobre esse assunto. − Garanto-te que numa nova seleção, comigo a controlar de perto o processo, isto não irá voltar a acontecer.
− Não – respondeu o príncipe já com quase total controlo sobre a sua própria voz. – Não vai haver outra seleção para o meu reinado. – O jovem deitou o rosto na direção do soberano que o encarava friamente de pé. – Liberty Beaumont será a futura princesa de Villeneuve quer o senhor queira, quer não.
O corpo da selecionada tombou para trás com o peso daquela afirmação, fazendo a porta estremecer com o impacto. Roborizada pelo embaraço da situação, tentou apressadamente colocar-se hirta sob o escrutínio atento dos criados e do rei.
− Sua majestade, − falou Big Ben tentando desviar a atenção do monarca para si, − devo chamar o médico para ver o príncipe?
− Faça o que achar melhor! – repreendeu o rei ao contornar a cama. – Se este irresponsável não quer prezar pela sua saúde, − disparou, de olhos vidrados na jovem ainda prostrada à frente da porta, − quem sou eu para o impedir?
Com a proximidade intimidante do rei, Liberty desviou-se da porta apressadamente. As suas costelas embateram na parede atrás de si, impedindo-a de recuar para muito longe. Keandre passou por ela como se estivesse a passar por uma simples parede, e, ao sair do quarto, fechou a porta com força atrás de si.
− Eu vou chamar o médico – Big Ben declarou seguindo o mesmo caminho que o soberano. Mas, ao contrário do primeiro, fez questão de olhar Liberty nos olhos antes de sair. O sorriso condescendente que a jovem recebeu por parte do mordomo fê-la sentir-se um pouco mais amparada na sua dor.
− Senta aqui do meu lado, Liberty – pediu Elroy sem conseguir ainda esticar-se para a ver.
Lumière incentivou a selecionada a avançar, com gestos frenéticos da cabeça, e a jovem acabou por decidir que mal não lhe iria fazer. Madame Potts encontrou-se a meio caminho com Liberty e entregou-lhe a chávena já meia vazia. E, com um simples sorriso enigmático, puxou por Lumière e os dois saíram do quarto, ignorando os protestos abafados da garota.
Deixada para trás naquele amplo espaço que lhe era desconhecido, ela sentiu um aperto no peito. A vontade repentina que teve foi a de seguir o exemplo dos outros todos e abandonar o príncipe. Afinal de contas, ele já estava notoriamente melhor. Contudo, ela não se sentiria bem consigo própria se o deixasse só, naquele estado ainda tão precário e débil. Por isso, avançou até à poltrona onde antes se encontrava o rei.
Elroy conseguiu vislumbrar a moça assim que ela dobrou a borda da cama. Os passos leves da jovem transmitiram-lhe a calma que precisava para respirar a um ritmo mais regular. A poltrona de pele negra, acomodou o novo corpo sem protestar, provavelmente também satisfeita pela leveza que a ocupava.
Os olhos bem abertos do príncipe intimidaram Liberty que apertou a caneca já quase fria entre as mãos.
− Porque é que o fez? – questionou Liberty ao ganhar coragem para confrontar o homem que a fitava sem pestanejar.
− A qual das duas proezas você se refere? – Um meio sorriso iluminou-lhe o rosto gasto pela doença súbita.
− Isto não é uma brincadeira – a voz de Libby soou ríspida. Ela não entendia como ele poderia gracejar numa altura como aquelas. − Não percebo porque é que enfrentou o seu pai. Ele poderia facilmente ter-lhe arranjado outra mais... − hesitou. As mãos estreitaram-se ainda mais à volta da caneca. – Mais facilmente adaptável a esta vida − conseguiu terminar.
− Mas eu não quero alguém que se adapte, que finja ser aquilo que não é. Que...
Uma tosse rouca saiu da garganta do príncipe, que levou quase meio minuto para se recuperar. A jovem inclinou-se sobre o adoentado e aproximou a caneca dos seus lábios gretados. Elroy sorveu o líquido, de bom grado, mantendo contacto visual com Liberty durante todo o tempo. Os olhos castanhos da moça mantinham-se inalterados com a força do azul enublado que faiscava sob a luz do teto.
Libby sorriu satisfeita para o doente que, dessa vez, havia tomado todo o conteúdo da caneca.
− Que finja gostar de mim – continuou Elroy antes da moça se ausentar da sua proximidade.
O desconforto que invadiu Liberty fez o seu joelho fraquejar e ela escorregou para fora da cama, tombando diretamente sobre a poltrona, que felizmente a amparou. A caneca caiu-lhe da mão e fragmentou-se em inúmeros cacos.
− Você está bem? – questionou o príncipe preocupado com a sua bela prometida.
− Só escorreguei. A caneca é que não sobreviveu ao meu desleixo – comentou de olhos arregalados para a confusão de estilhaços que cercava os seus pés. Depois de cruzar as pernas sobre o assento da poltrona, continuou, – mas essa pergunta quem devia de estar a fazê-la era eu.
− Isto já passa, daqui a nada estou como novo.
− Claro − disparou nada convicta com aquilo que ouvia. – E o que é que tem exatamente? Porque pela reação de todos aqui da mansão, não me parece que esta tenha sido a primeira vez que algo do género lhe aconteceu.
− E não foi – respondeu simplesmente. As pálpebras começavam a pesar-lhe novamente.
− Não, não desmaie de novo! – gritou aflita. Ao ver que os olhos de Elroy deixaram de tremelicar, ela continuou, − Se não vou começar a pensar que tenho um efeito tão arrebatador sobre si, que até o deixo inconsciente.
O príncipe sorriu timidamente, já quase sem forças sobre os músculos faciais.
− Fica descansada, é apenas a infusão que me está a dar sono.
− Então talvez seja melhor você dormir.
− Mas você não...
− Eu não vou a lado nenhum – prometeu Liberty ao interromper o príncipe. – Pelo menos, não até eu saber que está tudo bem com você.
E com uma leveza a preencher todo o seu corpo, Elroy deixou-se vencer pelas pálpebras cansadas, sabendo que um anjo velaria por ele enquanto dormia.
Afogueado, correndo por entre a negritude da noite, Gérard Beaumont via em cada esquina por que passava uma ameaça prestes a saltar-lhe para cima. Ele sabia que nada daquilo era um perigo real, travam-se apenas das sombras que a luz da lua cheia provocava ao incidir sobre algum obstáculo terrestre. As garras que se projetavam nas paredes brancas das casas não o queriam apanhar a ele, mas à sua preciosa filha. Por isso, ele corria. Para tentar corrigir uma situação que talvez nunca tivesse chegado a acontecer, se ele não tivesse sido tão irresponsável. Que raio de pai era ele, que deixava a sua primogénita nas mãos de um monstro?, o pensamento atormentou-o mais uma vez.
As vozes animadas do bar ecoavam no frio da noite, quando Gérard chegou ao seu destino. Sem parar para recuperar o fôlego, o homem abriu a porta e entrou.
As luzes demasiadamente intensas do lugar, em contraste com a luz enigmática da lua, fizeram-no pestanejar incessantemente. Com uma mão encostada à testa suada, os seus olhos ajustavam-se à luminosidade enquanto procuravam por algo.
− Gaston – gritou o pai de Liberty ao avistá-lo num dos cantos do bar. As três mulheres que cercavam o jovem olharam furiosas para o homem que acabava de interromper o momento em que todas juravam ser aquele que iria conseguir desarmar a resistência de Gaston Côté. – Você precisa de fazer alguma coisa! – exclamou Gérard ao encaminhar-se na direção da mesa.
− Mas para quê toda essa aflição, Sr. Beaumont? – questionou Gaston ao perceber o estado alterado do homem. Todos sabiam que Gérard perdera a sanidade juntamente com a mulher, e ninguém de Villeneuve lhe dava crédito. No entanto, Gaston respeitava-o, em nome da admiração que outrora nutrira por aquele homem.
− Liberty não está bem naquela casa. Você tem de a tirar de lá imediatamente – suplicou Gérard ao colocar-se de joelhos aos pés do jovem. As mulheres afastaram-se repugnadas. – Você viu a entrevista, não viu? Ela não está segura lá – insistiu ao ver a expressão neutra de Gaston.
− Não sei por que diz isso, para mim pareceu-me que ela está bastante bem enquadrada – comentou o homem ao recordar-se da sintonia que ela e o príncipe haviam demonstrado. O seu estômago revoltou-se com a lembrança dolorosa.
− Eu conheço a minha menina melhor do que ninguém. Ela estava a sofrer.
Gérard havia decidido assistir à inquietante entrevista no conforto da sua casa, sentado no sofá com as suas outras duas filhas. Éliane tinha detestado tudo, desde o interesse repentino do pai na sua irmã mais velha até ao facto do príncipe agarrar com tanta propriedade o corpo invejável de Liberty. E nem cinco minutos de entrevista aguentou, deixando o pai e a irmã mais nova sozinhos no sofá. E enquanto para Anastasie tudo parecia um belo conto de fadas, para o pai, subitamente zeloso, aquilo estava a transformar-se num pesadelo ao qual ele havia perdido o controlo.
− Monsieur − dessa vez quem falou foi Lefou que viu ali uma oportunidade de agitar a sua noite. Antes do pai de Liberty chegar, três mulheres agarraram-se a Gaston feito lapas e consumiram toda a atenção do amigo com galanteios de mau gosto. Claro que o grande Gaston Côté era demasiado cavalheiresco para as dispensar, além de que o seu ego estava a precisar de ser afagado. – A sua filha tem garra, mostrou que está à altura do lugar. Era para estar impressionado, não aterrorizado – reprovou LeFou sem conseguir entender aquela reação exacerbada do homem.
− Gaston, − Gérard agarrou nas mãos fortes do homem à sua frente, ignorando por completo LeFou, − eu sei que você gosta da minha filha. Eu consegui ver isso nos seus olhos quando você a levou a nossa casa na outra noite. Por favor, eu imploro, faça alguma coisa.
As três mulheres, que ainda se encontravam de pé de frente para Gaston, suspiraram exasperadas. Elas nem podiam acreditar que o coração do maior engatatão da província havia sido domado. Emanuelle que se aproximara da mesa do canto quando vira o vizinho avançar nessa direção, começava a achar aquela história toda demasiado boa para ser verdade. Se Gaston gostava de Liberty, isso poderia significar que ele lhe poderia abrir o caminho até ao príncipe.
− Lamento, mas não há nada que possa fazer agora – confessou Gaston ao sentir as mãos trémulas do homem. Gérard deixou de agarrar o jovem, com a desilusão a pesar-lhe sobre os membros superiores. – A única coisa que lhe posso garantir é que... − Gaston aproximou-se do ouvido do pai da selecionada e sussurrou o resto, − o casamento não vai acontecer.
As fartas sobrancelhas do homem levantaram-se intrigadadas com o que acabava de escutar. Não era aquilo que precisava de ouvir, mas já era um começo.
− E entretanto? – questionou Gérard ainda com o coração apertado.
− Posso apenas dizer que ela não está propriamente sozinha. Nós estamos de olho – comentou num murmúrio que deixou uma névoa de mistério no ar.
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