Capítulo 16 - A infusão

Ao subir o terceiro degrau das enormes escadas, Liberty foi empurrada para o lado por um peso morto. Felizmente, o corrimão amparou a sua queda, quase certa, e os seus braços em torno do corpo do príncipe trouxeram-no com ela. A compressão contra os seus órgãos internos dificultava a respiração da moça, e as suas costelas pareciam esmigalhar-se contra a dureza da madeira do corrimão.

− Não me faça uma coisa destas – sussurrou a selecionada, entre fôlegos pesados. – Não me deixe viúva antes mesmo de casarmos – a piada de mau gosto saiu-lhe ao sentir a fraca respiração do príncipe contra os seus cabelos. Só havia proferido semelhante barbaridade por achar ambos os cenários altamente improváveis. Elroy parecia-lhe demasiado jovem e saudável para morrer e ela era demasiado teimosa para vir um dia a assentir um casamento por pura conveniência.

O corpo inerte do príncipe começou a escorregar-lhe. Os braços trémulos de Libby estavam a perder a força. Ela não iria conseguir aguentar muito mais tempo naquela posição, com o homem de quase 20 kg a mais que ela a apertá-la contra o corrimão.

− Mas o que vem a ser isto? – questionou Big Ben estupefacto com o que os seus olhos avistavam.

Liberty reconheceu a voz do mordomo e percebeu o mal-entendido que aquela situação poderia facilmente despoletar. Afinal de contas, o príncipe estava literalmente sobre a jovem.

− Ele. Não. Está. Consciente – pronunciou as palavras uma-a-uma, investindo as poucas forças que ainda detinha.

Big Ben arregalou ainda mais os olhos com as palavras da selecionada. Julgara que o atacante era o seu patrão, nunca a bela donzela que se parecia debater debaixo do seu corpo pesado.

− Mon Dieu! – afligiu-se Lumière ao entrar no corredor. O criado correu imediatamente na direção das escadas. – Big Ben, do que você está esperando? Venha ajudar! – gritou para trás. O seu fiel companheiro, que parecia paralisado, demorou alguns segundos a reagir ao comando.

Os dois criados pegaram em força nos braços de Elroy, um de cada lado, e colocaram-nos sobre os seus pescoços. Liberty sentiu todos os músculos relaxarem com a ausência da pressão sobre o seu corpo.

− No que é que eu posso ajudar? – a rapariga apressou-se a questionar ao ver os dois homens a começarem a subir as escadas com Elroy entalado entre os dois. Os pés do príncipe arrastavam-se contra os degraus, por Big Ben ser mais baixo que os outros dois.

− Ele está bem entregue agora, mademoiselle – disse Lumière por cima do ombro. – Vá ter com madame Potts à cozinha e diga-lhe para preparar a infusão.

− A infusão? Que infusão? – interrogou confusa. Ela nem sabia onde ficava a cozinha, quanto mais do que se tratava essa tal de infusão.

− Madame Potts sabe o que é – respondeu simplesmente. A sua voz notoriamente em esforço pelo peso excessivo que o homem se via obrigado a carregar. Mentalmente, recriminou-se por ter recusado fazer todos os exercícios fatigantes em que o seu mestre o convidara a participar, juntamente com ele.

Liberty abriu a boca para falar algo, mas logo se arrependeu. Os dois criados pareciam demasiado assoberbados pela tarefa árdua que tinham literalmente entre as mãos. Também não deveria ser assim tão difícil de encontrar a cozinha, pensou ela ao endireitar as costelas, que ainda latejavam.

À terceira porta em que Liberty entrou, a cozinha desenhou-se defronte dela. As paredes estavam todas forradas de bancadas e armários suspensos no ar, que só eram interrompidos por um frigorífico de porta dupla e um largo fogão de placa retangular. Ao centro, uma enorme mesa negra com inúmeras cadeiras do mesmo tom repousava intocada.

A jovem mal podia acreditar na quantidade de criados que se escondia naquela parte recôndita da mansão. Perfaziam uma meia-dúzia redonda que circulava de forma ordenada pelas diferentes bancadas repletas de engenhos e alimentos que a jovem nunca antes vislumbrara.

O cheiro que lhe aqueceu as narinas fê-la salivar de forma inconsciente.

Ao recuperar o autocontrolo, correu para o fogão, onde madame Potts mexia com afinco o conteúdo de uma grande panela.

− Lumière pediu para a senhora fazer a infusão para o príncipe – informou de forma precipitada, com cada nova palavra a atropelar a anterior. A pobre mulher saltou de susto, de tal forma que estava concentrada na sua arte.

− O meu Elroy! – a voz de madame Potts transbordava de preocupação. Liberty conseguiu ver nos olhos da gentil criada o brilho de futuras lágrimas. – O que se passou?

− Eu não sei muito bem – admitiu constrangida. Ela queria poder descansar o coração palpitante da criada, mas tudo aquilo não passava de uma incógnita para a jovem. Decidiu então partilhar apenas aquilo que testemunhara – O príncipe já chegou à entrevista estranho, agarrou-se a mim o tempo todo e parecia nem ter forças para falar. No fim, pediu-me para o levar para fora da sala e quando eu tentava subir as escadas com ele, desfaleceu nos meus braços – a memória aterrorizante do desespero que sentira atingiu-a novamente.

− Venha aqui, menina – disse gentilmente a criada ao colocar o braço em volta das costas de Liberty. Madame Potts encaminhou-a para uma das cadeiras da mesa e ajudou-a a sentar-se. – Você vai beber um chá de camomila enquanto espera. A bebida vai ajudá-la a relaxar um pouco.

− Mas eu posso ajudar a preparar essa tal de infusão – protestou ao perceber que estava a ser deixada de fora. As mãos ternas da criada pousaram nos ombros da jovem, fazendo-a permanecer sentada, apesar da intenção de Liberty ser a oposta. A garota estava habituada a ajudar, não a ser ajudada.

− Agradeço a oferta generosa, mas tenho mãos mais do que suficientes nesta cozinha para me ajudar.

Libby aquiesceu. Aqueles criados seriam bastante mais úteis que ela com toda a certeza.

Enquanto bebericava o líquido extremamente quente, mas saboroso, Liberty viu como os criados acatavam as ordens de madame Potts e se esforçavam ao máximo fosse qual fosse a tarefa que esta lhes entregava. Na verdade, cada passo ou gesto que davam naquela cozinha parecia ensaiado e controlado ao milésimo de segundo. As facas batiam ritmicamente nas tábuas de madeira onde umas estranhas folhas eram transformadas em mínimas partículas. As laranjas, cortadas em duas metades equivalentes, eram sugadas por uma máquina que as fazia cantar ao espremer-lhes o sumo. A água na panela borbulhava cadenciadamente, cada vez mais desesperada pelo grande encontro que se seguiria entre ela e os restantes ingredientes da infusão.

O líquido dentro da caneca agitou-se quando uma força invisível começou a puxar o vestido de Liberty, bem junto aos seus pés. A moça apressou-se a espreitar para debaixo da mesa, duvidando da sua própria sanidade mental. Dois pequenos olhos de um azul esverdeado abriram-se com os dela e uma boca sem a dentição total elevou-se num sorriso bem rasgado. Antes que Libby dissesse sequer alguma coisa, a criança levou o indicador bem empertigado até ao ponto central dos lábios. A selecionada assentiu sorridente e o rapaz arrastou o pequeno corpo para mais perto dela.

− O meu nome é Jesper, mas você pode tratar-me por Jesp – sussurrou a criança. – Você é a princesa, não é?

− Hum... − hesitou a jovem. O rapaz inclinou um pouco a cabeça para o lado, sem perceber a razão da demora numa resposta que era tão simples de dar. Ou era ou não era, não havia meio termo. – Sou a Liberty, mas pode tratar-me por Libby – murmurou em reposta com um sorriso renovado no rosto.

− Então é você mesmo – declarou orgulhoso por ter acertado.

Há três dias atrás, enquanto Jesper brincava nas traseiras do jardim, pareceu-lhe ouvir o barulho do portão exterior da mansão a abrir-se. Como a mãe havia-lhe dito que a futura princesa chegaria nesse dia, a criança não aguentou de curiosidade e espreitou pela lateral da casa. Estava demasiado longe para lhe decorar as feições, mas ao vê-la avançar de braço dado com Lumière, o rapaz presumiu que seria bonita e simpática. Quis falar com ela nesse mesmo dia, ou, pelo menos, vê-la mais de perto, mas a mãe argumentara que a moça haveria de estar cansada e que seria melhor esperar por um momento mais oportuno. No dia seguinte, o mesmo argumento havia sido utilizado e ele acabou por concluir precipitadamente que esse momento tão aguardado por ele nunca haveria de chegar.

− Porque é que você está aqui em baixo? – Liberty questionou ainda numa voz quase inaudível. Jesp acompanhou com atenção os movimentos exagerados dos lábios da jovem para garantir que a entendia.

− A minha mãe não me deixa estar na cozinha quando estão a ser preparadas as refeições da família real – explicou transparecendo o tom injusto da situação. – Diz que é um lugar perigoso para uma criança.

A recordação das facas afiadas a cortar incessantemente as verduras passou pela cabeça de Liberty, e ela não conseguiu não dar razão à mãe sábia daquele rapaz.

− E tu desobedeceu só para puder ficar debaixo de uma mesa sem nada para fazer?

− Daqui posso ouvir as conversas dos adultos, sem que estes saibam que eu os estou a ouvir. – Os pequenos ombros da criança moveram-se para cima e depois voltaram à sua posição inicial. − Isso para mim é mais interessante do que ficar sozinho no quarto a olhar para as paredes.

− O que vem a ser isto? – questionou madame Potts ao colocar a cabeça ao mesmo nível de Liberty. Jesper gargalhou de forma traquina e rastejou para o lado contrário. – Seu espertalhão! – exclamou a mulher de mãos nas ancas, sem deixar de transparecer o carinho que sentia pela criança.

Jesper correu para a porta por onde Libby tinha entrado, estacando para acenar em jeito de despedida à sua nova amiga. A selecionada retribuiu o gesto, feliz por aquele pequeno ser ter conseguido o efeito que o chá não conseguiu provocar-lhe.

− Este meu filho dá-me cá um trabalho – madame Potts falou depois de um longo suspiro. – Mas é um amor de menino.

Liberty anuiu. A garganta apertou-se-lhe com a emoção de testemunhar aquele amor materno insubstituível, de valor incalculável.

− Vocês sabem o que aconteceu com o príncipe? – questionou Babette afogueada ao entrar pela porta por onde Jesper havia saído há poucos segundos atrás. Os olhos de azeitona da empregada caíram sobre Liberty, que tinha a expressão marcada pela culpa de se ter permitido esquecer do estado frágil de Elroy por uns longos minutos. – Estão lá todos enfiados no quarto, até o rei! Deve ser grave – opinou, por fim, decidindo que a moça era uma deles, afinal até se vestia de negro e tudo.

− A rainha também? – interrogou madame Potts com o cenho franzido de uma preocupação crescente.

− Não, ela não – respondeu Babette como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

Madame Potts assentiu com tristeza. Nem nestas alturas a rainha se compadecia do filho. A criada mergulhou a concha na panela e encheu apressadamente uma chávena com a infusão que acabara de preparar.

− Vamos, Liberty – falou madame Potts ao agarrar-lhe pelo braço com a mão que tinha livre. A jovem não resistiu àquela força que a fazia mover numa altura em que se sentia de rastos. – Na minha ausência, Babette, já sabe que é você quem manda. – A jovem criada fez a continência e começou a disparar ordens aos criados que haviam parado atentos à mínima novidade sobre o príncipe. – O meu menino precisa de nós – sussurrou a cozinheira chefe para Libby antes das duas atravessarem a porta.

A selecionada começava a duvidar da sua utilidade naquela situação. Provavelmente, Elroy, estando consciente, nem a iria querer ver, pensou desanimada. 

Ultrapassámos a marca dos 2k! Estou muito feliz por cada um de vocês que continua desse lado a querer viver esta história tanto quanto eu.

Muito obrigada a todos! E já sabem, se gostaram deste capítulo, carreguem na estrelinha. Prometo que não levará o celular, computador ou tablet ao colapso kkkkkk


Até ao próximo capítulo.

Bjs 😘

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