Capítulo 11 - Contornando as regras


Os primeiros raios da manhã entravam pela janela aberta e tocavam os pés descobertos de Liberty. O seu corpo cansado esmagava-se contra os lençóis bagunçados da cama, o ventre liso voltado para baixo.

A criada de quarto entrou, pé ante pé, ao deparar-se com a figura adormecida da bela moça. Os cabelos castanhos revoltos sobre o travesseiro e as cobertas a cair cada uma para um lado diferente da cama fizeram-na constatar que a noite tinha sido agitada. Lembrava-se de pensar o mesmo, naquela manhã, ao ver o príncipe praguejar para a colher que se havia dobrado com a sua força desmedida. Ele era irritadiço por natureza, mas Nicollete Armoire nunca o vira danificar a colher do desjejum. Por norma, o seu humor tendia a piorar com a passagem do dia e, de manhã, ele até poderia passar por um cordeirinho manso.

A mulher robusta começou então a preparar tudo para quando Libby acordasse. Dirigira-se, primeiro, ao armário, o seu canto preferido do quarto que preparara com tanta dedicação, e retirara de lá um vestido verde azulado com brilhantes a envolver o decote pronunciado. A maciez do material comprovava a qualidade da seda e o saiote, que caía em cascata, terminava numas belas pregas onduladas que lembravam a ondulação do mar. Colocou-o sobre os pés da cama, a flutuar sobre uns estonteantes sapatos negros de salto alto que repousavam no chão. De seguida, foi preparar o banho quente de sais naturais que devolveria o brilho de qualquer pele maltratada por uma noite mal dormida.

Ainda ensonada, Liberty levantou o rosto do travesseiro e esticou os braços à sua frente. A cabeça latejava-lhe por causa das poucas horas de sono.

− Que bom que já acordou, mademoiselle – disse madame Armoeire ao sair do banheiro privativo da futura princesa. A moça sentou-se num sobressalto, fazendo o colchão protestar com o seu repentino movimento. – Estou aqui para a ajudar, não para a atacar – proferiu numa voz relaxante que fez os ombros de Liberty voltarem ao seu lugar normal. – Isso é que foi uma noite agitada, ein? – comentou ao apanhar uma das cobertas do chão.

− Não foi propriamente das mais agradáveis – confessou com a memória demasiado vívida do corpo de Elroy. A imagem não lhe saíra da cabeça durante horas, impedindo-a de voltar a cair no sono que o príncipe havia interrompido.

− Seja lá o que for que a tenha perturbado, isso é coisa do passado – tentou reconfortar a mulher ao estender os seus anafados braços para Libby. A garota aceitou de bom grado a ajuda para se erguer da cama. – Olhe para esses olhos inchados! Não sei se vou conseguir disfarçar isso, mas vou dar o meu melhor.

Liberty seguiu a criada em silêncio, sem perceber o que a mulher quis dizer com aquilo. Sentiu a sua pele renovar-se debaixo da água quente ensaboada. Os seus músculos tensos relaxaram sob as mãos mágicas de madame Armoire. E a canção alegre que a empregada entoava tratou do músculo a que as suas mãos não chegavam, mas que estava tão ou mais contraído que os restantes: o seu coração.

A jovem nunca havia tomado banho sem ser num chuveiro, e, depois da morte da mãe, nunca ninguém lhe esfregara a sujidade do corpo. Ela achava estranho alguém a banhar, afinal de contas, já era uma adulta, mas não disse nada, porque aquela era a experiência mais relaxante que já tivera em toda a sua vida.

Ao entrar de novo no quarto, com uma toalha em volta do corpo, Liberty viu o vestido azul sobre a cama. Era impressionantemente esplendoroso, mas ela não se sentiria ela própria se tivesse de usar tecidos tão coloridos e refinados quanto aquele.

− Não o vou vestir – declarou sentando-se pesadamente sobre a cama.

− Mas, mademoiselle... − A criada olhava alternadamente para a jovem teimosa e o vestido que tanto trabalho lhe dera a coser.

− Não leve a mal, madame Armoire. Só que irei sentir-me melhor usando roupas pretas. Já estou acostumada.

− Essa já não é a sua cor – informou-a como se ela não soubesse disso. – Eu visto trajes negros, – suas mãos fizeram esvoaçar o pequeno avental que trazia à volta da cintura, − todos os criados se vestem de negro. O povo veste-se de negro, não a família real.

− E eu acaso já me casei com o príncipe? – A empregada olhou-a sem conseguir não lhe dar razão. – Então, ainda pertenço ao povo e a minha cor é o negro.

− Mas que lhe custa seguir esta pequena regra da casa? – Nicollete suspirou exasperada. Algo lhe dizia que aquela garota lhe traria muitos futuros problemas. − Todas as selecionadas, antes de si, passaram a usar tecidos de cores vivas depois de chegarem à mansão.

− Eu não sou elas. E, definitivamente, não me sinto uma selecionada. Então é bom que haja alguma roupa negra no armário, se não vou passar a andar nua pela casa!

− Oh! Deus! – A mulher fez o gesto de uma cruz em sua própria testa. Depois juntou as mãos e olhou para o teto. Liberty ergueu também seu rosto, mas não viu nada no branco imaculado que parecera despertar a atenção da criada. Ambas desceram seus olhos de novo para o hemisfério terrestre. – Mas hoje tem o almoço com o rei e a rainha. Eles deram-lhe o dia de ontem para descansar e se recompor para estar pronta hoje para os ver.

Liberty sentiu-se tentada a dizer que não queria ir, mas ela sabia que essa não seria uma opção. Confrontar a vontade dos monarcas, seria como colocar uma corda em volta de seu próprio pescoço. E ela não queria morrer. Quanto mais enforcada! Contudo, não recuaria quanto à cor que levaria vestida para esse almoço enfadonho.

− Oh! Por favor! – A jovem lançara-se aos pés da criada, ajoelhada numa suplica. Só lhe faltava beijar-lhe os pés sapudos, que se encontravam enclausurados dentro de umas sandálias, claramente demasiado apertadas. Madame Armoire tentava afastar-se desajeitadamente sem saber o que fazer perante aquele estranho comportamento. – Eu visto qualquer coisa, desde que seja negro. Até visto uma roupa sua, se for preciso.

− Não diga disparates, mademoiselle – pronunciou entre risos ao imaginar a rapariga a boiar num dos seus enormes vestidos. – Levante-se, vá, − as suas mãos puxaram ternamente a futura princesa para cima, − eu talvez tenha uma solução.

Keandre Morfrant pisava o chão de seu escritório, incessantemente, de um lado para o outro. Já havia calcado, seguramente, cada pequeno milímetro que não estivesse ocupado por algum objeto. Não gostava quando lhe interrompiam durante o desjejum, muito menos com a antevisão de uma possível má notícia. Isso deixara-lhe imediatamente maldisposto.

O seu criado pessoal avisara-lhe que alguém da equipa da seleção estava desesperadamente a precisar de falar com o monarca regente de Villeneuve. Não tinham passado nem 48 horas desde a proclamação real, o que raio poderia ser tão urgente assim?, pensou ao sentir o stress a acumular-se entre as têmporas.

Alguém bateu à porta e o rei apressou-se a ocupar o seu lugar na poltrona do lado de dentro da secretária. Assim que se recompôs, autorizou a entrada do visitante que esperava.

Os homens cumprimentaram-se brevemente, o intruso com uma meia vénia apressada e o rei com um simples acenar da cabeça.

− Há algo que me tem inquietado durante estes dias, sua majestade – começou o plebeu depois de se sentar na cadeira de frente para o rei. O monarca não gostou da precipitação do homem, que nem esperou pela indicação do seu superior para se sentar ou sequer começar a falar. Sem reparar na desaprovação no olhar do rei, o homem continuou a despejar as palavras que lhe afligiam dentro do peito, − Fui eu o examinador responsável pelas jovens da fração etária da selecionada e eu posso-lhe garantir que Liberty Beaumont não tem o perfil necessário para ser a futura rainha de Villeneuve.

− Como ousa? – bradou Keandre ao embater as mãos sobre a mesa. Com o susto, o plebeu inclinou-se para trás e quase caía com a cadeira. – Como pode colocar em causa o processo infalível da seleção?

O homem engoliu em seco e sentiu uma pequena humidade recente nas suas roupas interiores.

− Eu... Eu... Eu...

− Desembuche! – gritou impaciente para o homem que não parava de gaguejar.

− Eu não sei o que aconteceu, mas só estou a dizer que erros acontecem.

− Não no meu reinado! – pronunciou Keandre imperativamente. Aquela era das poucas certezas que tinha. Ele tinha-se esforçado desalmadamente para cumprir o papel da sua vida. O papel que o pai lhe entregara. Ele não poderia admitir erros sob o seu comando, isso mostraria que ele havia falhado.

− Bom, então como explica o facto de a primogénita dos Beaumont não ter realizado nem uma única prova e ainda assim ter sido selecionada?

− Isso não é possível – constatou o rei, sabendo muito bem que todas as jovens eram obrigadas a fazer parte do processo da seleção. – Você mesmo começou por admitir que ela não tinha o perfil indicado. Isso significa que ela realizou as provas.

− Ela compareceu a todas, sim, mas nunca realizou nenhuma.

Keandre mal podia acreditar no que acabara de ouvir. Estava tão atordoado que nem conseguiu falar. Ele tinha a certeza que se o filho o visse naquele momento, riria na sua cara. Ainda ontem tinha apontado duramente uma falha de Elroy e agora era ele que se mostrava incapaz de controlar suas próprias emoções.

− Liberty mostrou-se incapaz de tomar as decisões que lhe eram exigidas − continuou o homem incentivado pelo silêncio do monarca. – Ela até parece ser inteligente, a professora chegou a comprovar-me quando eu comecei a tentar decifrar o que se passava com a moça. E a sua atividade cerebral, analisada em duas provas distintas, mostraram que ela até tem capacidades e recursos cognitivos significativos, mas eu cheguei à conclusão que ela não consegue tomar decisões, pelo menos, não em momentos em que está a ser avaliada. Nem sequer existem dados no seu registo, eu confirmei ontem. E não podiam, não é? Ela nunca deu nem uma única resposta.

O rei entrelaçou os dedos das mãos sobre a mesa. A sua expressão facial voltou a estar controlada. A respiração e o batimento cardíaco voltaram a cair para o ritmo exigido a um líder de toda uma nação. O plebeu deu conta da mudança súbita e voltou a sentir-se inferiorizado, rebaixado ao seu lugar de ralé.

− Colocarei uma pequena equipa da minha confiança a investigar a situação, − anunciou Keandre, − antes que isto se espalhe. Provavelmente, não passou de um erro informático, mas se tiver algum erro humano envolvido pelo meio, serei impiedoso – cuspiu a última palavra ao passar o polegar, num movimento rápido, pela própria garganta.

O examinador voltou a engolir em seco, sentindo a sua garganta apertar-se.

− E o que acontecerá à garota? – questionou o homem a medo.

− Para todos os efeitos, Liberty é a futura princesa de Villeneuve. Vou tê-la debaixo de olho, mas se ela se mostrar minimamente capaz, para mim será o suficiente. Admitir a existência de um erro na seleção, para todo o reino, seria catastrófico. Tudo continuará como se nada tivesse acontecido.

O examinador não tinha como refutar as palavras do soberano. E sabia que a sua própria vida ficaria em risco se contasse o que sabia a alguém. Ele temia ver uma mulher incapaz de tomar uma decisão em situações de crise no poder, mas temia ainda mais por sua vida. O homem saiu com a promessa silenciosa de que confiava no discernimento de seu rei. E parecia que, afinal de contas, Liberty Beaumont, a única que ele jurara nunca vir a ser selecionada, ascenderia ao lugar de futura regente de Villeneuve, ao lado de Elroy Morfrant. Mais uma vez, a jovem conseguiu fazê-lo sentir-se incompetente.

Agora temos o rei de olho na nossa Liberty. Medo 😱

E como será que vai correr o almoço com a família real?

Espero que tenham gostado deste capítulo.


Até à próxima terça.

Bjs


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