Parte 2
Tudo bem.
Sem pânico.
Está uns -2°C agora? No máximo -5°C?
O que pior pode acontecer? Talvez ninguém me encontre, meu corpo entre em choque por causa da temperatura baixa e eu congele de fora para dentro. O que, vendo por esse lado, não me parece uma ideia tão ruim assim.
Consigo me arrastar até uma árvore próxima e sento com as costas voltadas para o tronco gelado. Quanto tempo mais isso deve durar?
Enquanto os primeiros flocos de neve dessa leva começam a cair, ainda bem lentamente, faço uma pequena retrospectiva dos meus últimos dias até aqui.
Desde que anunciaram a pior nevasca da história de Lagoa Fria, a cidade está em polvorosa para estocar água, comida e gasolina. Hoje mesmo, mais cedo, minha mãe mandou que eu fosse até a casa de Dona Aurora buscar uma fornada de pães que pudessem ser congelados.
Mas eu nunca apareci na casa de Dona Aurora, e tampouco voltei para a minha. Ao invés disso, tracei um rumo até a entrada da cidade e sentei de frente para o pórtico. De lá, só saí para procurar ajuda para o filhote.
O filhote!
Então eu me lembro do motivo que me fez correr para cá. Por mais que, durante a maior parte da vida, eu me sinta um peso morto para os meus pais, eu sou a única chance que aquele cachorrinho tem.
E, contrariando meu estado de torpor permanente, junto o fôlego para gritar o mais alto que posso:
- SOCORRO! Alguém está aí?
Minha voz, pouco usada, sai rouca e trêmula.
- ALGUÉM POR AÍ? – Grito novamente, dessa vez um pouco mais forte.
Mas não obtenho resposta alguma.
Na minha percepção não muito acurada de tempo, muito tempo se passa até que eu resolvo ignorar a dor do meu tornozelo e tento levantar. Meu pé está tão inchado que parece prestes a explodir dentro do tênis.
Eu posso percorrer dois caminhos. O mais curto, de apenas alguns metros, porém, se resume em subir a pequena ribanceira pela qual caí.
Mas é o melhor que posso fazer. A outra alternativa requer que eu caminhe, no mínimo, alguns quilômetros até que a altura de onde estou se nivele à cidade.
Então apoio o pé bom em uma pedra protuberante ao monte de neve e faço força para erguer o corpo. Ok, muito bem. Estou indo bem.
Sinto que estou fazendo um bom trabalho, apesar de praticamente não ter saído meros centímetros do chão.
E, quando tomo coragem para apoiar o pé machucado e avançar, a dor lancinante que percorre toda minha perna me faz cair novamente, dessa vez de costas no chão.
A neve é bem fofa, mas minha cabeça bate com tudo nas raízes da árvore que antes me serviu de apoio e uma tontura me invade.
- Ei, você!
A voz masculina me acorda de súbito.
Preciso de um tempo para lembrar o porquê estou deitada no chão frio. Quando abro os olhos, a imagem das árvores gira em volta de mim e, ao levar a mão até o ponto pulsante na parte de trás da minha cabeça, sinto o líquido viscoso cobrir meus dedos. Por que estou sangrando?
Outra coisa que noto é que a neve se intensificou e, enquanto eu
- Você está bem? – A voz pergunta.
Então sinto meu corpo gelar. Eu conheço essa voz. Está mais grossa do que eu consigo me lembrar, mas é inegavelmente dele.
Movo o olhar na direção de quem grita para mim, e lá está ele, agachado na altura da estrada, uma mão segurando o tronco de uma árvore para evitar de cair.
- Qual o seu nome? – Ele pergunta. – O que está fazendo aqui?
O fato de ele não me reconhecer, me dói mais do que os machucados no pé e na cabeça.
Caio Nogueira foi meu primeiro (e único, diga-se de passagem) namorado. Nós tínhamos 10 anos e andávamos de mãos dadas para cima e para baixo da cidade. Não havia uma só alma em Lagoa Fria que não jurasse que íamos casar e viver felizes para sempre.
Mas, aos 14, ele se mudou para São Paulo para fazer o Ensino Médio em uma escola renomada e acabou ficando por lá para cursar direito em uma das melhores faculdades do país. Na época, foi tudo um grande drama adolescente, mas mal sabia eu que terminar o namorico de criança seria o menor dos meus problemas.
Logo após a mudança de Caio, uma sucessão de mini eventos desencadeou o que minha psicóloga chama de processo depressivo pós-traumático. E, 12 anos depois, enquanto o antigo "amor da minha vida" acaba de passar no concurso para delegado aqui em Lagoa Fria, eu mal e porcamente terminei o ensino médio e ainda vivo sob o teto da minha mãe.
- Qual o seu nome? – Ele pergunta novamente, procurando em volta um jeito fácil de descer até onde estou.
- Sou eu... Luisa. – Por algum motivo, me sinto tímida.
Mas minha voz, ainda que baixa, consegue atingi-lo. Quase posso ouvir o clique em sua cabeça quando percebe qual Luisa eu sou.
- Luisa... Luisa Becker?
Meneio a cabeça em afirmação e percebo uma ligeira nota de pânico em seus olhos, embora não saiba se pelo choque de me reencontrar ou se pelo choque de me reencontrar nesse estado.
Há muito não sou a Luisa que Caio levava para tomar sorvete na praça da cidade. A menina cheia de vida e dona de olhos verdes cintilantes deu lugar a um corpo 8kgs mais magro e uma expressão constantemente apática. Tenho a mais perfeita noção de que o fato de estar estatelada no chão não me faz parecer nem um pouco mais como antes.
- Aguenta aí, vou descer para te pegar.
Quando se levanta, vejo que ele também não é o mesmo Caio de 12 anos atrás. Ele cresceu alguns centímetros de altura e seu corpo, com certeza, ganhou muitos quilos de músculo. Vestido com um casaco com o logotipo da polícia de Lagoa Fria, ele parece um herói de filme.
Mas não sou eu que preciso ser salva. Eu vou ficar bem, e, mesmo que não fique, está tudo bem também. Contudo, Caio é a nova chance daquele filhote, e ele precisa ir salvá-lo.
- Não! – Grito. – Vá salvar o filhote!
- Que filhote? – Ele parece confuso.
- No pórtico da cidade, embrenhado na roseira do prefeito. Por favor, ele está machucado.
- E você também!
Caio não entende. Eu estou machucada, mas esses ferimentos externos não são nada se comparados ao meu interior, que, ao contrário do cachorrinho, dificilmente pode ser curado.
- O cachorro!
Mesmo não estando tão perto, posso ver que ele revira os olhos e bufa baixinho. Se bem conheço Caio, ele não vai dar o braço a torcer.
- Vamos fazer assim, primeiro eu te ajudo e depois busco o cachorro, ok? E quanto mais você tentar argumentar, mais tempo vamos perder aqui e mais vai demorar para eu ir buscá-lo.
E, antes que eu possa falar qualquer outra coisa, Caio traça uma rota até onde estou, pulando em algumas pedras e raízes.
Quando me alcança, seu rosto se contorce em uma expressão que caminha entre a pena e a tristeza, mas ele não hesita nem um minuto em me passar o seu casaco.
- O que estava pensando quando saiu de casa nessas condições? – Ele ralha.
Um sentimento dúbio se apossa de mim. Não tenho um pingo de paciência para ouvir sermão, mas como estava com saudades de ouvir sua voz enérgica. Nós chegamos a manter contato durante um ano depois que ele deixou Lagoa Fria, mas cada vez mais ele tinha outras atividades que lhe iam consumindo todo o tempo disponível.
O tecido quente que ele me envolve me causa um conforto imediato e eu relaxo minimamente.
- Quão ruim é o machucado? – Ele pergunta.
- Não muito.
A verdade é que eu não sinto muita coisa. O gelo deixou a maior parte do meu corpo adormecido.
Caio então se levanta e passa um braço embaixo do meu para me ajudar, mas falho miseravelmente.
- Talvez meu tornozelo esteja meio ruim.
- Ok... – Ele olha em volta. – Não vai ter jeito fácil de sair daqui, mas vamos dar um jeito.
E, quando ele sorri, me sinto de novo como uma garotinha com borboletas no estômago.
Caio agora tem feições bem másculas e duras, com a linha do maxilar formando um ângulo quase bruto em seu rosto. Mas seu sorriso ainda é o mesmo de menino e seus lábios ainda repuxam levemente no centro, assumindo uma forma curiosa e atraente.
Ele não tem muita dificuldade em me tomar nos braços. E, estando tão próximo assim, posso sentir seu perfume amadeirado – gostoso, ainda que levemente enjoativo.
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