eu tenho medo de ser amado
no meio da noite, você acordou assustado e sentou-se na ponta da cama. as meias nos pés estavam sujas pela andança do dia, mas naquela lúgebre iluminação, elas pareciam um calçado que lhe protegeria de tudo. seu cabelo estava curto na época, mas você tinha olheiras de alguém que havia encarado a morte de perto. a princípio, a mudez advertiu-me que tinha algo de errado. às vezes você ria do nada só para esgarçar o silêncio com força. mas não daquela vez. disse-me que estava com medo de ser amado.
sacudindo os joelhos, te vi partir de si mesmo e uma sombra tímida incomodar o seu rosto. você tinha mudado e eu vim perceber tarde demais. falava sobre a queda, a ascenção, sobre o oculto e o que estava explícito. falava sobre amigos, inimigos, farsas e traições. e eu sentei-me naquele tapete horroroso só para te escutar. só para te escutar falar, porque tudo que saía de você tinha um brilho quase onipresente.
não queria ser amado, dizia. não queria e não deveria ser. que as pessoas, inúmeras, estão com você na sua ascenção. elas estão felizes e você também. mas você está cego pelo que mais deseja e não percebe que tudo é uma farsa. que no primeiro erro, no primeiro deslize, na primeira mentira que sair com teu nome, todas vão sumir e você terá de lidar sozinho. sozinho. e ter amigos é ter esperança de que quando estiver no ócio, estarão lá para você. mas quantidade, você acrescentou, não significa qualidade. e aquele sorriso túmido bastou. você havia enlouquecido.
e na queda é seu verdadeiro eu à prova, seus verdadeiros aliados ao seu lado, e que tudo dói porque a realidade é careta e mesquinha. que quando você é o momento — e todos nós somos suscetíveis a isso —, todos querem estar contigo. mas não significa que te apoiam, que te amam, que você significa algo além de um ser qualquer que eles julgam ser interessante neste dado momento. é que todos nós somos tolos, você dizia. quando os gatos saem, os ratos fazem a festa. e quando eles voltam, todos correm e deixam o pedaço de queijo para trás. você é apenas um queijo fedido e grosso. eles te largam para trás, porque você só é isso: objeto de um consumo frívolo que serve apenas para preencher o oco instalado em seus peitos. nada nunca preenche. por isso correm. eles te abandonam porque nunca de fato estiveram ali.
então, sim, a queda é dolorosa e nem vou dizer o porquê — afinal, já escrevi sobre isso mais de uma vez. mas ela é crua, agridoce e molhada. ela é o suspiro de liberdade expelido por um bem-te-vi em seu primeiro voo.
e seus olhos assustados é tudo que consigo recordar daquela madrugada. de quando eu levantei do tapete e fui passar um chá. e as folhas das árvores farfalhavam contra as vidraças da janela. você apareceu repentino, turvo, devagar e inquieto na cozinha. vinha dizendo que não queria ser amado. “já entendi”, balbuciei. e você não entendeu.
aquele pijama azul e amarelo nunca coube bem em você, mas nunca ligou com algo grande demais para o seu corpo. tu almejava curvas, mas as detestava ao luar. e seu sorriso não tinha o mesmo brilho de antes, havia perdido o valor intrínseco. não havia mais o que tirar de ti, você tinha medo de ser amado. tinha medo da noite e do que ela poderia causar ao seu corpo caso saísse naquele horário. tinha medo do dia, porque as pessoas te viam claramente e elas sempre te faziam se sentir pequeno, vazio e patético. e você também tinha medo de ser amado.
os humanos mentem, são farsantes e você não queria isso. não queria uma centena de pessoas gritando seu nome e dizendo que te amam. elas não te amariam. você nunca poderia ser amado por quem você é. você disse-me isso, lembra? encostado na geladeira ganhada do seu tio que aparentemente era o único que podia te dar bens materiais.
num sonho, você matou alguém. e odiou-se por isso. odiou-se, porque nada mudou, você não tinha sofrido por quem havia perdido a vida, e sim por ter feito algo terrivelmente errado. o que seria errado? questionei. não houve resposta. você tirou o chá do fogo e serviu em duas xícaras de cerâmica. a minha era um cogumelo; a sua, um sapo. brindamos a exatamente nada. eu tinha medo de te amar.
contou-me que quando caiu, uma vez, caiu só. e que a queda é onde todos iremos parar. não há como todos estarem no topo. não há como todos permanecerem no topo. o ódio é a gravidade criada pelos humanos e ele não tem um valor definido. é instável, varia, vai de acordo com o nosso temor, inveja, desespero ou ócio. e contra a boca da xícara, um sorriso animalesco e grotesco rasgou teu semblante: todos nós merecemos os dois minutos de ódio criados pelo grande irmão, às vezes é faz bem saber da verdade acerca de onde e com quem estamos.
sentado sobre a mesa, balançando as pernas cheias de pelo, porque você nunca se raspou, eu te vi perder seu melhor amigo. os nós dos dedos tamborilavam a cerâmica da xícara e eu não sabia mais com quem falava. que já não encontrava aqueles mesmos ombros que me consolavam quando eu sangrava e não tinha ninguém para segurar. a voz rouca e seca cortou sua garganta ao passar: num minuto a plateia te joga flores e depois tomates podres. não importa quem seja ou o que fez. a queda sempre se ascende.
é que no meio da madrugada, você deitou angustiado na ponta da cama. as meias nos pés estavam sujas pelo chá que derramou sem querer ao chorar na cozinha, mas naquela lúgebre iluminação, elas pareciam um calçado que lhe acompanharia durante toda a vida. seu cabelo estava desgrenhado no momento, mas você tinha olheiras de alguém que havia encarado o pior de si mesmo. a princípio, a grulha advertiu-me que tinha algo a mais que tentava expressar. às vezes você silenciava do nada só para refletir veementemente. mas não daquela vez. disse-me que estava com medo de ser amado. e depois daquela conversa, eu também tive.
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