I.| O nefomante, a mestiça e o plantário
Néblus suspirou. A culpa consumia-lhe a alma, adentrava as suas carnes e moía-lhe o espírito. Falhara nas suas responsabilidades. Do que seria do mundo se os espíritos da Natureza errassem no seu trabalho? Um caos completo, o colapso da existência. O que sucederia à realidade se os Deuses se ausentassem dos seus afazeres? E se as entidades do Destino decidissem fazer gazeta?
O adolescente ergueu o pescoço para vislumbrar os céus, seu abrigo destinado e ponto de referência. As nuvens, companheiras da jornada obtusa e solitária que empreendia desde que se conhecia por gente, encontravam-se obstruídas por uma densa camada negra de fumo. No plano terreno, o laranja eriçado dominava: as chamas do fogo impiedoso já haviam consumido boa parte do verde que, outrora, cobria o reino, e prometiam sugar o que mais o seu caminho cruzasse. Os relâmpagos prosseguiam a sua dança violenta, tropeçando e caindo aparatosamente no solo, para em seguida anunciar o seu fracasso (ou vitória...) com uma labareda contorcionista.
Sem nuvens interpretáveis à vista, sem profecia. Talvez fosse melhor assim. Enquanto os cirros brancos se uniam para formar nuvens densas, espessas e cruéis, o nefomante nada mais soube expressar à sua amiga mestiça do que a futura nebulosidade do dia. Mas não o tipo de dia cerrado convidativo à tristeza e à sonolência. O dia vindouro era de raiva, medo, furor, perigo e, sobretudo, destruição.
Não havia raça ou tribo que tivesse salvação possível. Os gritos agudos das almas aflitas e os grunhidos graves das criaturas melindradas vindos de todos os lados perfuravam os ouvidos do rapaz como facas da justiça. A sua fraca e débil previsão era a única responsável pelo sofrimento dos povos das Montanhas da Sapiência.
Nefomantes eram seres escassos, mas de propósito nobre. Nas suas veias, corria o Destino que a eles se apresentava através das nuvens. Dizia-se que era uma capacidade inata e que a jornada de um profeta das nuvens tendia a ser reflexiva e solitária. Desta forma, mandava a tradição dos raros feiticeiros das decorações celestes que as suas crianças fossem largadas e entregues à sua própria intuição assim que as suas pernas tivessem a mínima força para se suster. O estômago que lhes dissesse o que comer e o instinto como se defender naquele jogo inocente que se iniciava por volta dos cinco anos e se estendia até ao último suspiro. Assim o era, e para sempre havia de o ser.
Néblus considerava-se um fracasso entre os nefomantes. Olhava para as nuvens e nelas nada mais via do que formas disformes. A sua criança passada tivera os olhos inundados por água salgada dias e noites a fio até se aperceber que gritar pela mãe era trabalho em vão. Era para ser só um jogo na floresta como tantas vezes faziam... só que aquele jogo era eterno.
O rapaz cresceu só, sempre à espera de um sinal de que as nuvens quisessem conversar consigo. Caladas, pronunciavam-se ocasionalmente em metáforas intangíveis. Um nefomante sem talento para as nuvens... Um caso perdido, um zé-ninguém que o futuro não soubera prever para travar a crueldade do Destino.
- O que dizem hoje as nuvens, Néblus? - Perguntara-lhe Aslaia na véspera.
- Vai ser um dia nublado.
- Isso qualquer tolo vê! - Repreendeu a mestiça. - Quero saber o que dizem as nuvens sobre mim.
- Sabes, Aslaia, às vezes o silêncio é o melhor conselheiro. Se o destino nos fosse facultado na sua essência em todos os seus aspetos, as jornadas da vida tornavam-se insignificantes.
- Custa assim tanto dizer que nunca pertencerei a lado nenhum? - A criatura canina-lupina baixou as orelhas felpudas, enquanto o seu rosto antropomórfico revelava um misto de melancolia e raiva. - Custa assim tanto dizer que nunca serei aceite na alcateia da minha mãe e muito menos na matilha do meu pai?
- A mensagem não era essa...
Aslaia encolheu os ombros. De facto, tinha boas razões para acreditar que o amigo lhe ocultava a verdade inexorável. Seres que dominavam as artes proféticas tendiam a usar e abusar da cautela na entrega do destino divino aos mortais.
No entanto, por muito que o nefomante se esforçasse na técnica da sua tribo, as massas brancas flutuantes não sintonizavam a sua sabedoria com a mente do rapaz. Ainda assim, murmuravam-lhe uma canção indecifrável aos tímpanos. Uma melodia mais intensa do que o corriqueiro. Um palavreado decisivo que o adolescente só tivera o talento de perceber quando já era tarde.
- Néblus! Néblus!
Uma voz feminina acudia para que o jovem voltasse à realidade e vencesse a espiral de ressentimento que lhe consumia o âmago.
O rapaz levantou a cara suja de pó do chão e mirou a figura salvadora. Uma rapariga alta, de perfil atlético como uma caçadora lupina, fitava-o com uma expressão grave. Trazia a cauda grossa cinzenta-amarelada em baixo e as orelhas triangulares alertas.
- A culpa da efemeridade das Montanhas da Sapiência recai inteiramente em mim...
- Não digas parvoíces! - Admoestou Aslaia.
- Parvoíces? - Replicou o rapaz, penetrando nos olhos castanhos profundos da adolescente. - Os nefomantes não têm o dom de ler o futuro nas nuvens por acaso. Um nefomante que não é capaz de perceber nas nuvens um destino tão dramático é um malogro!
- Não é culpa tua, Néblus! Ninguém nasce ensinado. Como é que podes interpretar as nuvens se não tiveste nenhum mestre que te transmitisse a arte?
- O único mestre que um nefomante pode ter é o seu próprio "eu". A sua jornada é solitária.
- Néblus...
A mestiça foi interrompida por uma figura a arfar que se acercara de si e a envolvera com os braços carinhosos.
- Aqui estás tu! Procurei-te quase por todo o reino! Estás bem?
Néblus torceu o nariz à lamechice de Sóbur. Um plantário cobarde que pintava a nobre Cerimónia do Segundo Nome, que tão bem caracterizava o povo das plantas, como o maior dos terrores à face das Montanhas da Sapiência.
Traumatizado pela partida precoce da irmã, Sóbur recusava-se a todo o custo realizar o ritual que despoletava o florescimento da sua planta e marcava a fronteira entre a infância e a adultez. Os plantários eram, por tradição, uma tribo muito vasta a nível geográfico, não havendo praticamente nenhum milímetro dos territórios das Montanhas da Sapiência que não fosse abençoado por aquelas figuras alegres que ostentavam folhas na pele e flores e frutos nos longos cabelos. No entanto, quando o vegetal dentro de um plantário acordava da sua semente ou bolbo adormecido, a criatura antropomórfica captava a essência da planta em toda a sua plenitude, isto é, o bem e o mal.
Os progenitores do rapaz, ainda que exibissem espécies vegetais diferentes, tinham ambos recebido plantas de ambientes temperados. Pelo contrário, na pele da irmã de Sóbur, irromperam espinhos resistentes durante a sua Cerimónia do Segundo Nome, enquanto uma flor de pétalas mangenta delicadas e finas desabruchava na sua cabeça.
A rapariga foi para casa naquele dia lavada em lágrimas. Não tardaria, o seu corpo impulsioná-la-ia a procurar as terras áridas onde o calor reina e os catos encontram o seu conforto. Tinha de ser. Era a ordem natural do povo das plantas. Despediu-se da mãe, do pai e do irmão mais novo, que jamais aceitou a sua partida. Sóbur chorou enroscado dias a fio, sentindo que toda a injustiça do mundo se reunira para o atormentar. Jurou para consigo mesmo nunca realizar a Cerimónia do Segundo Nome, ainda que o ritual fosse o momento mais ansiado na vida da larga maioria dos plantários da sua idade. Jurou para sempre ser única e exclusivamente chamado de Sóbur, ignorante se o sobrenome seria Pinheiro, Lírio, Nenúfar, Magnólia, Hortelã, Orquídea, Hibisco, Rosmaninho, Cedro, Macieira ou Abeto. Jurou nunca abandonar a família e a comunidade que viu aquele rebentinho vir à vida. O desconhecido desregulava-lhe o coração, inundava-lhe a mente com pessimismo e temor. Era melhor assim, um plantário que não queria conhecer a planta que florescia na sua alma.
- Estava tão preocupado! - Sussurrava comovido Sóbur à mestiça, para desprezo do nefomante.
- Eu estou bem, Sóbur.
- De certeza? Estás mesmo bem, Aslaia?
- Quem não está está nada bem é o reino das Montanhas da Sapiência. - Cortou Néblus, enjoado com o tanto mel e o tanto açúcar com que o plantário cobria a lupina-canina que quase podia assegurar que lhe ia crescer uma colmeia no cabelo em vez de flores e folhas.
- Por falar nisso... - Começou a rapariga. - A minha mãe, como uma das alfas da alcateia, esteve no Conselho do Reino.
- E? - Perguntaram os rapazes curiosos em uníssono.
- Alguém colheu um fruto da Árvore de Obsidiana.
Aquela informação caiu como uma bomba, mais destruidora do que todos os relâmpagos que já haviam caído. A Árvore de Obsidiana era a mais sagrada de todas as coisas tangíveis. De idade incontável, dizia-se que era tão antiga quanto as Montanhas da Sapiência. Rezava a lenda que grandes males cairiam sobre o mundo se alguém ousasse desrespeitar a majestosidade daquela árvore milenar, arrancando-lhe os frutos místicos do negro mais puro passível de ser sonhado. De tempos a tempos, a Árvore, vista quase como uma Deusa, deixava cair um pomo que, intacto, tocava o chão. Grandes festas e grandes celebrações se construíam ao redor desse evento raro e extraordinário, sinal de bom agouro e tempos prósperos. Depois, o fruto era entregue ao chefe ou aos líderes de um dos povos do reino que prosseguia o festejo de acordo com as tradições da cultura da sua raça.
- Acredita-se que tenha sido alguém das Terras Selvagens. - Prosseguiu Aslaia.
A expressão dos rapazes tornou-se ainda mais grave. As Montanhas da Sapiência mantinham uma inimizade não declarada com as Terras Selvagens por motivos ancestrais que se perderam com o tempo. Conhecidas por serem um território hostil onde a anarquia imperava, as Terras Selvagens eram um tabu entre as criaturas do outro reino.
- Como é que descobriram? - Quis saber Néblus.
- Os elfos falaram com a Árvore. Para que o equilíbrio seja restaurado, o fruto roubado tem de ser recuperado e devolvido à sua geradora. O problema é que ninguém de tribo nenhuma se quer aventurar nas Terras Selvagens. - A adolescente respirou fundo antes de continuar. - Portanto, eu vou.
- Aslaia! Estás doida? - Retorquiu Sóbur, de coração nas mãos.
- Sou a única que o pode fazer. Eu tenho de o fazer.
- Tens ou queres? - Contrapôs o nefomante. - Porque se essa determinação vem do desejo de ser aceite pela alcateia...
- Não tem nada a ver com isso, Néblus! Sou uma mestiça. A metade de mim que herdei do meu pai pertence às Terras Selvagens.
- Então eu também vou. - Voluntariou-se de imediato o rapaz do povo das plantas.
- Tu? - Perguntou o outro adolescente, com desdém. - Desculpas casuais para fugir à Cerimónia do Segundo Nome não vão impedir que mais tarde ou mais cedo, a plantinha dentro de ti se manifeste, seja uma flor, um arbusto, uma árvore ou uma suculenta.
- A Aslaia não vai a lado nenhum sozinha.
- Nesse caso, irei acompanhá-los. No fundo, a culpa disto tudo é minha.
- Já te disse que não é! - Resmungou a jovem, tocando no ombro do nefomante. - Agradeço a companhia, rapazes. Vamos recuperar esse fruto e trazer a harmonia de volta.
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