13 - O Labirinto

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- E quanto ao labirinto?

Ao fazer aquela pergunta Lily se inclinou sobre a janela fechada da sala de recreação do Instituto Robert Ryan. Ela queria enxergar a vista do outro lado das grades de ferro; o verde das montanhas e a forma como elas caíam umas sobre as outras a fazia se lembrar do amontoado de lençóis que sua mãe costumava tirar do varal de sua casa quando era criança - um pensamento reconfortante para quem não dormia em algo limpo há muito tempo.

- Ele fecha às sete horas - respondeu Kiara, sentada na poltrona de forma tediosa.

Lily estava empolgada, mas a colega não parecia tão entusiasmada. Kiara era a que menos almejava a fuga planejada com a ajuda das outras companheiras. Os únicos momentos nos quais a mulher parecia animada era quando discutiam todos os passos necessários para que tudo desse certo. Como a ladra de bancos que era, gostava mais do processo do que da ação em si. Kiara não se importava com a liberdade.

- Podemos nos esconder no labirinto - disse Lily. - Eu tenho o mapa.

- Qual a graça de um labirinto com mapa?

- Não estamos indo nos divertir, estamos nos libertando.

- Você acha que temos alguma chance por lá? - Carmem perguntou, se juntando a elas ao se esparramar no sofá vazio beirando o tapete. - Os lobos nos comerão vivas.

- Isso não seria problema para você, não é, Carmem? - provocou Lily.

Kiara revirou os olhos. Sentia- se no meio de duas crianças.

- O que estão fazendo, meninas?

As três levantaram o rosto para Teddy, o segurança diurno que sempre estava de olho em Carmem. Há anos ela não causava problemas e por isso tinha permissão para ficar na sala de recreação durante algumas horas, mas não podiam relaxar. Tudo indicava que a mulher era uma bomba- relógio esperando por um motivo para explodir. Sempre que ela se juntava às outras, então, a atenção redobrava.

Lily, que tinha os cabelos louros mais brilhosos que o homem já vira, piscou os olhos azuis para ele e apoiou o queixo nas mãos. Lily se comportava como uma criança de dez anos e a sua psicopatia acabava afetando o modo como ela se via em relação ao mundo. Não era como se não tivesse crescido, mas sim como se o tudo ao seu redor não mostrasse amadurecimento - não do jeito que acontecia com a maioria das pessoas, pelo menos.

- Estamos planejando a nossa fuga! - respondeu Lily, sorrindo. - Quer saber como faremos isso?

Teddy pareceu achar graça. Ele era um dos únicos que não percebia o quão perigosa a garota poderia ser, sempre se preocupando com as outras pela aparência mais agressiva. Era um erro, e logo ele perceberia aquilo.

- Agora, não - respondeu. - Aquele escritor voltou para vê-las. Parece que vocês têm um admirador!

Carmem, Kiara e Lily se entreolharam. Estavam animadas. Os encontros com o escritor vinham se mostrando divertidíssimos, principalmente porque ele sempre era gentil com elas. As psicopatas adoravam ver o modo cuidadoso como ele as tratava. Era, de alguma forma, diferente do medo e da crueldade que costumavam ver nos olhos dos funcionários do Instituto.

Quando as três se levantaram, Teddy as acompanhou à sala que, geralmente, era usada para reuniões em grupo com psiquiatras curiosos e esperançosos. Quando entraram, porém, não encontraram um médico de jaleco, mas sim um escritor de livros de terror dentro de um casaco marrom. Ele as recebeu com cuidado, mas demonstrava afinidade. Não parecia vê-las como psicopatas, mas como seres fascinantes, dignos de um tipo estranho de admiração.

- Espero que estejam com tempo livre - ele disse após cumprimentá-las. Não podia chegar perto porque era contra as regras, mas inclinava o corpo para que percebessem que ele não tinha medo. - Quero tentar algo diferente hoje.

Só então as psicopatas perceberam que mais quatro mulheres ocupavam cadeiras na roda no centro da sala. Eram o Mar Vermelho, a Suicida, a Incendiária e a Telepata. Carmem, Kiara e Lily as conheciam de vista, mas nunca haviam conversado porque os funcionários as mantinham separadas por questões de segurança.

- Sentem- se, por favor. - O escritor indicou três cadeiras vazias.

Elas sentaram.

- O que quer de nós hoje? - Kiara, que não gostava dele, questionou. - Por que elas estão aqui?

Raymond pareceu preocupado com a reação negativa do Anjo Negro. Queria que todas se sentissem confortáveis, caso contrário não daria certo.

- Há meses que as entrevisto separadamente - explicou. - Uma por uma, as sete. Como sabem, estou escrevendo um livro sobre vocês, sobre suas histórias, mas desde que as conheci conversamos apenas sobre as coisas ruins que fizeram. Hoje quero que, esquecendo dos crimes que vêm relatando aos meus ouvidos, me contem suas histórias reais. Quero saber sobre a rotina no instituto, sobre as pessoas que ficam aqui e sobre as suas vidas antes da internação.

As sete ficaram em silêncio. Não sabiam o que falar porque nunca ninguém havia perguntado. As viam como monstros, não as viam como seres com histórias. Quanto ao instituto... As pessoas não queriam saber a resposta cruel sobre suas vidas ali. Se soubessem, teriam que fingir que não aprovavam as punições.

- Viver aqui é uma merda - Carmem finalmente deu de ombros. - A comida aqui é horrível.

- Se houver um inferno, essa é a sala de espera - foi como o Mar Vermelho descreveu o lugar.

- Vamos começar pelo começo? - pediu Raymond. Havia um gravador velho e precário aos seus pés e uma agenda em seu colo. Ele rabiscava coisas hora ou outra. - Você primeiro - pediu à ladra de bancos, Kiara. - Conte- me a sua história.

O Anjo Negro hesitou, mas acabou falando. Contou sobre os roubos, sobre os reféns, sobre o amor perdido em um plano falho. Raymond anotou tudo, demonstrou interesse, percebeu que ela gostava de ser ouvida quando ninguém perguntava a respeito de seus atos ruins, mas sim de todas as coisas boas ou neutras que fez durante a vida.

- Cresci em uma cidade pequena - ela disse. - Meu pai era o xerife, e então, quando ele morreu, o título passou para mim.

- O que fez isso mudar? - perguntou o escritor.

- Um homem - a Número Um sorriu. - Um ladrão de bancos que ousou pisar na minha cidade. Eu o prendi, mas fui seduzida pela conversa sobre dinheiro e sobre liberdade. Fugi com ele e não me arrependo, mas uma hora fiquei sozinha e a estrada é solitária quando não há como compartilhá-la.

Raymond sabia da história dela, do modo como Kiara matou Jake Winston no inverno de 1987 e deixou o corpo dele na neve sorrateira de uma cidade do interior do Maine. Mas ele não disse nada. Queria deixá-la viver aquela ilusão fria de que havia vivido o mais puro e sincero dos amores. No fundo ele esperava que ela tivesse consciência de que fora tudo uma ilusão, porque ela não amava Jake Winston. Ela amava a liberdade que ele proporcionava e o matou no momento em que percebeu que podia ser livre sozinha.

- E sobre você? - virou para o Mar Vermelho.

Florence cruzou os braços e sorriu.

- Não tenho uma história épica de amor, escritor. Eu só tenho um cabelo vermelho.

Raymond estalou os lábios.

- É a história que quero ouvir. Por que o pintou dessa cor?

A Número Dois pareceu surpresa.

- Porque o vermelho me deixa confortável. É uma cor linda. Uma vez, quando era criança, assisti a um eclipse solar e foi um dos melhores momentos da minha vida. Toda vez que me olho no espelho, escritor, me lembro dele.

Mais uma vez, Raymond sabia da história real por trás daquela mentira e a ignorou, concordando com a cabeça. Entrevistara os pais de Florence e ouvira as histórias sobre como a menina se cortava para ver o próprio sangue. Ela gostava daquilo, da dor; da cor. Não era por uma lembrança feliz, era por uma coisa triste. Sempre seria.

- Eu só gosto de ver coisas queimando - disse Kayla quando a sua vez chegou.

Raymond acreditava na Número Três. Não havia outras explicações. Sabia que sua psicose ia muito além do fogo, porque ela era possessiva e bipolar. Muitas vezes, os médicos disseram, Kayla apagava as coisas que incendiava só para vê-las desmanchar em cinzas. Não era pelo fogo, era pelo poder de ver queimar.

- Eu gosto de coleções - disse Lily. - Sabe o que eu coleciono no Instituto? Fios de cabelo! As pessoas quase não notam o sumiço

A Número Quatro era complicada, a pior de todas. O aspecto infantil lembrava Raymond de sua filha. O escritor muitas vezes chegou a duvidar das histórias sobre ela, mas sabia que não podia ser manipulado. Estava ali para pesquisa e estava ali pelo seu livro; não estava ali para julgamentos ou diagnósticos. O rosto angelical dela não o enganaria.

- Eu acho que eu nem deveria estar aqui - Carmem pareceu certa quando falou. - Eu gosto de pessoas! Amar demais é o meu problema!

Raymond quis rir, mas sabia que não podia incentivar. A história dela era a pior de todas, a mais cruel. O escritor passou meses procurando arquivos e entrevistando antigos vizinhos da Número Cinco até conseguir juntar todos os pedaços e fragmentos de sua conturbada história. Carmem não teve uma vida feliz, era um fato. Mas por que sempre parecia ser a mais legal de todas?

- Meu pai não gostava das nossas peles, então ele as tirava - disse a mulher com naturalidade. - Com o tempo, passei a amar demais para deixar de lado.

O que ela não contou em voz alta, talvez com medo de que sentissem pena dela, era que seu pai, um homem de meia idade que passara a vida trabalhando em minas de cidades do interior, era portador de uma doença de pele que fazia os seus braços ficarem em carne viva. Nenhum diagnóstico o ajudou, e por anos Carmem observou o pai desfalecer aos poucos. Quando ele morreu, já beirando à loucura após fazer a filha raspar os braços com facas para que sentisse o que ele sentia, Carmem ficou sozinha. Tão sozinha que enlouqueceu também.

- Ela não fala - alertou Lily, olhando para a sexta integrante da roda.

Raymond piscou para Alessa Clarke como se compartilhassem um segredo. Ela falava, sim, mas só com ele, quando estavam sozinhos. A Número Seis não gostava de conversar com as outras psicopatas porque se irritava muito fácil, e todo mundo sabia que, quando ela ficava irritada, as coisas não corriam bem.

Em seu livro, Raymond deu poderes a ela. Se Alessa não falava, precisava se expressar de outras maneiras. Sua telecinese no livro também se igualava ao modo como a menina jogava as coisas para o alto durante os surtos que tinha quando frequentava a escola e precisava enfrentar crianças caçoando dela. Clarke não tivera uma infância sangrenta ou uma épica e trágica história de amor, mas sofreu tudo o que uma pessoa tão jovem podia sofrer. Raymond nem ao menos a culpou por saber que, um dia, ela cansou e afogou uma colega de classe na piscina da escola. Uma semana antes a mesma colega havia cortado o seu cabelo com uma navalha.

- Eu sou a única que não deveria estar aqui - disse a Número Sete, Skye Sullivan. - Eu nunca machuquei ninguém além de mim mesma.

Sullivan era a suicida. Realmente, ele pensou, nunca fizera mal a ninguém, mas seus pais tinham o poder necessário para trancá-la onde quisesse, por quanto tempo quisessem. Então ali ela estava, sem psicopatia, mas, mesmo assim, digna de contar a sua história e colocar para fora a opressão que carregava todos os dias sobre os ombros.

Por horas elas continuaram falando. Não porque queriam ser ouvidas, mas porque cada relato de sofrimento e maus tratos dentro do Instituto e fora dele era um motivo para o jovem escritor gostar delas. E ele estava gostando. Mesmo sabendo das verdades por trás das mentiras, ele estava gostando.

- Quando o livro será publicado? - perguntou Kiara quando o tempo deles acabou.

Raymond pensou por um tempo.

- Preciso de um final - respondeu. - E então ele vai para a editora.

- E o que fará conosco no final?

Raymond parou por um segundo. De repente, um branco foi tudo o que passou pela sua cabeça. Ele não sabia o que fazer com elas, nunca soube. Seu único objetivo era contar suas histórias, trazer ao mundo versões diferentes de pessoas vistas apenas através dos olhos de programas e jornais supérfluos.

- Farei o que vocês quiserem que eu faça - respondeu. Talvez, mesmo que na ficção, deixar que elas escolhessem seus destinos fosse uma boa ideia.

Lily pareceu animada, pulando com uma ideia.

- Nós podemos fugir? - perguntou.

Raymond sorriu.

- Precisaríamos de um plano para isso.

Kiara e Carmem se entreolharam. O labirinto. A fuga. O plano.

- Nós temos um - respondeu Lily. - Você só precisa escutar e colocar no seu livro.

Ernest concordou. Poderia fazer aquilo. Parecia importante demais para elas, mesmo que, de repente, sentisse que estava fazendo algo errado.

Quando o escritor saiu, andou com seu gravador e suas anotações para o carro estacionado do lado de fora do Instituto. Pensou por longos segundos silenciosos a respeito daquele final, sempre cogitando a hipótese de que poderia fazer diferente.

Mas não faria.

Era a vontade delas.

E ele faria o que elas quisessem.

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CONTINUA

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