09 - Janela Secreta
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Por precaução, o piso dos corredores sombrios do Instituto Robert Ryan tinha que ser áspero. Cada pequeno fragmento do moderno e usual ladrilho branco padrão foi trocado quando uma enfermeira escorregou e perfurou o pescoço com uma seringa de sete centímetros enquanto tentava conter um paciente. Seu sangue manchou o canto direito daquele corredor por anos, até o dia em que o lugar pegou fogo.
Quando escrevera Os Sete Psicopatas, Raymond queria adicionar um toque dramático à reputação do hospital. A história da enfermeira morta, claro, funcionou, mas agora ele se sentia mal. Havia percebido que, quando estivera no Instituto, pisara sobre a mancha de sangue sem perceber.
— Raymond? — chamou Sara, desviando a atenção da estrada por alguns segundos. — Você está bem?
O escritor balançou a cabeça, acordando do transe. Pela janela a estrada das montanhas era escura e cada vez mais fria. Seu corpo estranhava toda aquela locomoção, sentindo falta dos dias em que ficava preso dentro de sua cabana o dia inteiro, apenas tentando escrever. Cansado, o homem murmurou de uma forma triste e sem muito alarde:
— É tudo exatamente igual ao livro.
Sara riu.
— Bem-Vindo ao sonho de adaptação fiel que todo escritor tem! Só que isso não é um filme no qual trocaram a sua protagonista loira por uma morena, essa é a realidade. Então não é bom.
— Eu sei! Mas no livro elas nunca chegaram a escapar. Elas morreram. Por que, aqui, estão vivas? Essas sete psicopatas nunca me deram tanto trabalho — resmungou, escondendo o rosto entre as mãos.
— Ah, sim, verdade — Sara pulou, parecendo lembrar de algo — Eu queria conversar com você sobre o livro. Me diga por qual motivo se chama Os 7 Psicopatas se são todas mulheres?
Raymond não respondeu de imediato, mas ficou pensando. Olhou para Sara com o rosto confuso e deu de ombros.
— Eu não sei, apenas é.
— Raymond, você precisa ser sincero comigo.
— Eu estou sendo! Já existia um livro chamada 7 Psicopatas, então tive que ser criativo. Qual o problema?
Sara apertou as mãos ao redor do volante, estalando a língua de forma impaciente.
— Droga — pestanejou — Eu achei que finalmente tinha encontrado a resposta.
— Resposta? — o escritor repetiu, confuso — Que resposta? Do que você está falando?
— Nada que importe — e o carro parou. Crawford retirou o cinto e abriu a porta — Conversamos lá dentro.
Quando Raymond desceu do veículo, teve que parar e se segurar na porta ainda aberta. Ao olhar para o cenário ao seu redor, quase não acreditou na beleza da paisagem que a casa de vidro no alto da colina proporcionava. Nem mesmo a tempestade iminente ao fundo do quadro atrapalhava, trazendo até mesmo um toque dramático com suas nuvens carregadas e raios nada discretos.
— Sua casa é de vidro? — perguntou o escritor.
Sara concordou com a cabeça.
— Paredes produzem muitas sombras — e com isso Raymond olhou para a casa, tendo a sensação de que, apesar daquilo, ela poderia não ser realmente segura.
O escritor seguiu a mulher até a escada de pedras em meio a um gramado extremamente bem cuidado. A noite já caia por completo àquela hora e, olhando para trás, para o lago Rordeth e o reflexo da lua sobre ele, Raymond pensou ter visto algo se mover entre os lençóis da água calma. Ele só poderia estar muito paranoico.
Quando entraram, toda a casa se iluminou. As lâmpadas eram tão claras que machucaram os olhos de Ernest, fazendo-o recuar. Sara riu e explicou:
— É como um farol. Você sempre vai estar seguro aqui — então andou até o sofá cinza em frente a uma lareira aparentemente elétrica e continuou: — Há geradores reserva e velas espalhadas por todos os cantos. Se faltar luz, sempre teremos uma maneira de nos proteger.
Ernest concordou com a cabeça, observando as paredes e móveis que não saíam da paleta de cor branca e cinza. Parecia uma casa do futuro, daquelas que via na TV, e o homem se sentiu incomodado com a quantidade de espaço extra que o cercava. Mesmo sem ver toda a casa, sabia que todos os cômodos eram enormes.
— O que há com a escuridão? — perguntou o escritor. Desde o faxineiro da estação de rádio que ele vinha tendo curiosidade a respeito do poder das sombras nas psicopatas e em tudo o que elas traziam.
Sara pareceu sentir um calafrio.
— É quando elas se sentem mais poderosas e nós mais imponentes. Todos somos vulneráveis no escuro.
Fazia sentido, ele pensou. Raymond sempre teve medo do escuro, desde criança. Não poder ver significava ao menos saber quando uma ameaça estava se aproximando. A ideia de não conseguir se defender ou enxergar quem estaria o amedrontando o fazia se sentir fraco. A luz era uma ótima amiga.
— Venha, vou mostrar seu quarto.
Ernest seguiu Sara até o andar de cima, ficando um pouco tonto com os degraus transparentes da escada. O chão era fosco, mas iluminado com o reflexo de várias fitas led. Sara não parecia entender a loucura de tudo aquilo e continuava andando normalmente enquanto Raymond se espantava com cada novo aspecto do lugar. Só parou quando a porta de um quarto foi aberta e ele viu que tanto o dele quanto o de Sara, do outro lado do corredor, eram feitos de paredes brancas, porém normais.
— Se sentir fome, há comida na geladeira, lá embaixo. Só garanta que todas as luzes estejam acesas antes de descer.
— Por que diz isso?
— Algumas coisas ficaram claras hoje, no Instituto.
Aquilo deixou Raymond ainda mais curioso. O que Sara havia feito fora de sua presença durante o tempo que ficaram no manicômio? Claramente havia obtido algumas respostas e não queria compartilhar com o escritor, algo que estava começando a incomodá-lo.
— Sara, você precisa me contar o que aconteceu no hospital.
Crawford parou no corredor. Raymond tentou não desviar a atenção dela, mas era difícil. A mulher tinha o poder de intimidá-lo quando confrontada.
— O que quer saber? — perguntou ela.
— Tudo. Por que me deixou para trás? Tenho certeza de que foi de propósito.
— Acho que devemos dormir agora. Conversamos amanhã.
— Por que não me conta as coisas?
— São coisas complicadas demais para às três da madrugada.
— Eu já estou cheio de ser tratado como uma criança!
O grito não foi planejado, e Raymond não se arrependeu dele. Era verdade. Desde que aquilo começara, estava sendo subestimado. Todos pareciam saber de alguma coisa que o escritor desconhecia, e ninguém lhe contava nada.
— Alguém dentro do hospital as ajudou a fugir — disse Sara, depois de um tempo — Alguém que, ao passar para a nossa realidade, mudou de comportamento. No seu livro, ninguém a ajudava, certo? Pois aqui elas tiveram auxílio e, por isso, o lugar não pegou fogo.
Aquilo não era uma total surpresa, porque não haveria outro motivo para que elas conseguissem fugir. Agora, porém, Raymond entendia que Sara havia visitado o hospital para investigar quem era o aliado das sete psicopatas. Fazia bastante sentido, só não justificava tê-lo deixado para trás em certo momento.
— Quem você acha que é? — perguntou o escritor.
— Não faço ideia. Não consegui encontrar nada.
— Por que alguém as ajudaria?
— Eu não sei, me diga você. São seus personagens.
Mas Ernest não tinha uma resposta para aquela pergunta. Por piores que os funcionários do Instituto Robert Ryan pudessem parecer, ninguém ajudaria aquelas sete garotas. Todos tinham medo delas, sabiam do que eram capazes. Nunca arriscariam deixá-las escapar.
— Preciso dormir um pouco, estou cansado demais para pensar nisso — confessou, e Sara concordou.
— Ali é o banheiro. Toalhas e roupas no armário, cobertores extras e lanternas também. Boa noite.
Quando ela saiu, não dando a chance de ele perguntar mais nada, Raymond se jogou contra a cama e afundou embaixo das cobertas. Caiu no sono quase imediatamente, sendo nocauteado pelo cansaço acumulado dos últimos dias, e sonhou que, longe daquilo tudo, conseguia terminar a sequência de seu livro em paz, livre de mortes e problemas.
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Quando Raymond Ernest acordou, levou um susto quase mortal.
Ele sabia que muitos homens sonhavam em acordar com uma mulher como Carmen Holland do outro lado da cama, mas naquele contexto foi extremamente aterrorizante. A canibal quase não conseguia se segurar quanto à reação do escritor, rindo discretamente.
— Bom dia! — saudou, sorrindo. Era irritantemente angelical.
— O que você está fazendo aqui?!
— Café da manhã — respondeu.
Raymond congelou, se afastando dela.
— Não o meu, amor, o seu — e apontou para a bandeja no pé da cama. — Eu mesma fiz.
Ernest olhou para o prato que parecia conter bacon e panquecas, mas não se sentiu tentado. Sabia muito bem qual era o tipo favorito de carne daquela mulher e não queria provar para testar se ela tinha razão quanto ao gosto.
— Vai com calma, Hannibal Lecter.
A voz entrou pelo quarto e, no mesmo segundo, Carmen revirou os olhos, pulando da cama. Estava claro que ela não gostava muito de Sara.
— Eu só estava acordando a bela adormecida — se defendeu — Ou iria deixar que dormisse até que as outras psicopatas acabassem com a população de Nothern Lake?
— Você é uma grande hipócrita — rebateu Sara, tirado a bandeja da cama e colocando sobre o armário. Também não queria aquilo por perto. — Como entrou aqui?
Crawford foi até Raymond e o puxou da cama, nem um pouco delicada.
— A sua janela secreta — respondeu Carmen, olhando através do vidro que a parede do quarto era. — Casas em colinas costumam ter essas coisas.
— Podia ter batido — censurou Sara — Convidados geralmente não precisam invadir.
— Você convidou ela?! — interviu Raymond.
— Sim.
— Por quê?
— Tenho certeza de que é um homem esperto, Raymond. Pense. — e deu um tempo para ele. O escritor olhou para a canibal em busca de respostas, mas nada veio. — Estamos procurando quem ajudou as psicopatas a fugir do hospital. Ela é uma psicopata — então virou para Carmen — Quem te ajudou a fugir?
Carmen desviou a atenção da janela para encarar Crawford e o escritor. Então deu de ombros, franzindo o queixo.
— Eu não sei. Quem armou tudo foi Kiara. Ela era um gênio e tinha muita prática em invadir bancos, como devem saber, então não foi difícil fazer o inverso.
Sara balançou a cabeça.
— Kiara tinha amigos dentro do hospital?
— Não. Nenhuma de nós tinha.
— Pensei que eram amigas.
Carmen riu.
— Comeria o coração de cada uma delas se não tivessem desaparecido depois da fuga.
Raymond sentiu um calafrio.
— Por que alguém de dentro ajudaria vocês a escapar? É isso o que não entendo. Ninguém ali seria capaz disso.
O sol entrava pelas paredes de vidro do quarto, e a luz do dia permitiu que Raymond visse quão isolada era a casa. Só havia floresta nas margens do rio, nada de vizinhos.
— Dinheiro, amor... Não sei — Holland respondeu — Não me importei em descobrir. Estou livre.
— Amor? — repetiu Raymond, pensativo. Alguém teria se apaixonado por uma das sete e pensado que, se a ajudasse a fugir, poderiam ficar juntos? Não o surpreendia. — Houve um caso desses há alguns anos, em Londres. Uma doutora que tentou ajudar um psicopata a fugir.
— Um péssimo exemplo, porque ele morreu — Carmen debochou.
— Só estou dizendo que é possível. Nenhuma delas tinha dinheiro para suborno.
Sara discordou:
— Kiara tinha. Ela era uma ladra de bancos muito inteligente, com certeza escondeu dinheiro por vários lugares e tinha reservas para quando saísse da prisão... Ou do hospício.
— Então temos duas opções — Raymond ponderou, de repente elétrico. Estavam andando para algum lugar.
— Há alguém naquele hospital que estava passando por problemas financeiros? Alguém corrupto? — instigou Sara.
Ernest pensou em todos eles, mas nada veio à cabeça.
— Vocês estão esquecendo uma coisa muito importante — disse Carmen, chamando a atenção dos dois. — Apesar de inacreditável, nem todos os seres humanos são movidos por causas maldosas.
— O que está sugerindo?
— Talvez quem nos tenha ajudado não estivesse interessado em dinheiro, muito menos em amor. Talvez fosse alguém inconformado com os tratamentos daquele lugar porque, convenhamos, nós sete éramos as que mais sofríamos nas mãos daqueles enfermeiros.
— Não — Raymond negou. Já sabia onde ela queria chegar. — Ela nunca faria isso.
— De quem vocês estão falando? — perguntou Sara.
— Diana Roberts — Carmen praticamente desenhou o nome no ar — A pura e angelical Diana Roberts, que sempre foi contra tudo o que o Instituto prega, mas continua trabalhando lá. Não é suspeito? Além do mais, a vi conversar com Kiara mais de uma vez.
Aquilo parecia o suficiente para Sara, que concordou com a cabeça. Holland sorriu. Raymond negou com suspiros desacreditados e quis protestar, mas estava tão desesperado por respostas que não conseguiu.
— Precisamos voltar ao hospital e interrogar o anjo no meio do inferno — disse Sara, decidida.
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CONTINUA
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