08 - O Anjo no Meio do Inferno
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Quando Sara e Raymond passaram pela porta de entrada, olhares se voltaram para eles. Toda a imensidão branca encardida, os funcionários em uniformes e os pacientes sendo movidos pararam o que estava fazendo para encarar o escritor e a mulher misteriosa. Os dois esperaram palavras, explicações ou gritos, mas nada veio. Tudo o que restou fora a confusão sobre a recepção.
Sara foi a primeira a balançar a cabeça e voltar a se movimentar. Ela andou até o balcão principal e pediu para que Raymond não a acompanhasse. Quando falou com a recepcionista, o escritor percebeu que ela apontou para ele com a cabeça, e foi só então que a outra cedeu, levantou— se de seu banco, deu a volta e parou ao lado de Sara, mandando-a acompanhá-la. Raymond as seguiu sem ser convidado, curioso.
— Como ficaram sabendo disso?
Estavam no fim de um corredor quando a recepcionista fez aquela pergunta. Na etiqueta presa do lado esquerdo de seu uniforme, Raymond leu "Vivian Earles" e percebeu que ela também era uma das personagens de seu livro. Ao contrário das psicopatas, era inofensiva, sendo apenas uma coadjuvante.
— Só... Sabemos. — respondeu Sara, com um sorriso presunçoso.
Raymond acordou de seu transe e balançou a cabeça. Sara, confiante ao seu lado, era um contraste alarmante em relação à confusão presente na postura e nos trejeitos do escritor — algo que foi quase motivo de risada quando ele perguntou:
— Sabemos do quê?
— De que sete pacientes sumiram deste hospital — respondeu Sara como se contasse com aquela pergunta.
Vivian olhou— os encabulada, como se estivesse sob algum tipo de ameaça.
— Eram sete das piores psicopatas que tínhamos aqui e a polícia quis manter isso em segredo. — Fez o sinal da cruz, pronunciando um "amém" — Ninguém queria pânico.
Só então Raymond deixou cair as fichas que diziam que as coisas estavam indo por um caminho muito diferente dos livros. Ele não se lembrava de deixá-las fugir em algum momento. Preferiu matá-las a permitir que aquilo acontecesse. Mesmo na ficção, tinha medo do estrago que poderiam causar.
Raymond entrou em desespero.
— Vocês deveriam contar! — pestanejou o escritor, agitado — As pessoas poderiam se proteger, evitar sair sozinhas. Esconder não ajuda em nada! O que tinham na cabeça?!
Vivian pareceu se sentir culpada. Devia estar pensando em todas as pessoas que tinham morrido por causa das fugitivas e no que poderia ter feito para evitar que as tragédias acontecessem. Assim como Raymond, no fundo achava que com um alarde, com o aviso de que estavam por aí e eram perigosas, as pessoas poderiam se proteger; já Sara, pesar de concordar em alguns pontos, não queria que aquilo acontecesse. Se a situação com as psicopatas virasse assunto internacional seria muito mais difícil de alcançá-las. Crawford precisava delas acessíveis para mandá-las de volta para o livro de Raymond.
— Sr. Ernest — começou Vivian. Ela tremia embaixo de suas palavras —, se alguma daquelas psicopatas quiser matar alguém, nada, nem prevenção e nem companhia, a impediria.
Aquilo fez Raymond ficar sem respostas. Ele engoliu em seco e não conseguiu se mexer quando Sara e Vivian voltaram a andar pelo corredor. O homem ficou estático, pensando no que aquilo significava para a própria segurança e a da sua família, e as outras passaram por uma porta logo no fim do caminho, qual se dividia em duas partes e tinha uma placa escrita "Ala C" sobre o batente.
Sozinho no corredor, Ernest olhou por sobre os ombros e percebeu a locomoção no salão de entrada. Se fechasse os olhos e se concentrasse, poderia escutar o som dos gemidos e dos gritos dos pacientes nos quartos ao redor. Raymond pesquisara muito sobre manicômios quando começara a escrever o seu livro, portanto tinha uma ideia do tratamento e das perversidades pelas quais os pacientes passavam, mas, aquilo... Aquilo era o Instituto Robert Ryan. O lugar que, nascido da parte mais perversa de sua mente, fora a casa das suas setes psicopatas, o lugar onde tudo era movido a extremidades cruéis.
Se você tivesse que criar um lugar para abrigar alguns dos piores demônios, então ele deveria ser o próprio inferno.
Alguém passou e esbarrou em seu ombro, fazendo Raymond acordar. Ele piscou, respirou fundo e seguiu pela porta em que Vivian e Sara haviam passado, mas não as encontrou nem mesmo depois de uma rápida busca. Aquilo era horrível, porque ele ao menos sabia o que Crawford queria ali. Ernest conhecia aquele lugar melhor do que ninguém, caso precisasse ir sozinho ao destino da ação, mas o problema era que, como sempre, Sara não havia lhe dito o motivo de fazer o que fazia.
Sem rumo, o escritor andou pelos corredores, esperando que a mulher voltasse para buscá-lo. Parecia uma criança perdida da mãe no meio do mercado — o que era humilhante, mas não, de fato, surpreendente —, e aquilo o motivou a apenas continuar andando. Em um minuto, estava tão longe da saída que ele duvidou que, se não tivesse desenhado aquele hospital diversas vezes, teria se perdido.
E, bem, ele se perdeu.
Uma das coisas mais importantes sobre o Instituto Robert Ryan era que ele tinha duas alas exatamente iguais, e, então, altamente fáceis de se confundir. Principalmente quando elas se encontravam e você passava de uma para outra sem nem notar. Raymond pensou que, por ter sido o homem a projetar o prédio, aquilo não aconteceria consigo. Mas aconteceu. E em um minuto ele se via sem saber onde estava, perdido e ainda procurando por indícios da presença de Sara.
— Senhor? — ouviu uma voz fina às suas costas. Ele se virou e encontrou uma funcionária o encarando — Não pode estar aqui. É uma área restrita.
A mulher deveria ter uns vinte anos, e não parecia pertencer àquele lugar. Sem precisar ao menos ler o seu nome na etiqueta, Raymond reconheceu quem ela era: Diana Roberts, mais uma de suas personagens de alma pura. Longe das psicopatas, Diana era, na verdade, o único ser literário pelo qual o homem se apaixonou.
Ela era gentil, bondosa e nascera na história para dar contraste a todo o mal e a perversidade do enredo. A única funcionária do Instituto Robert Ryan que não encostava o dedo em ninguém e que, além de tudo, ajudava quando via algo fora dos limites humanos. No livro, Diana morreu no incêndio. As psicopatas não a pouparam.
— D—desculpe — gaguejou o escritor, ainda atordoado por vê-la.
Diana tinha o semblante preocupado quando se aproximou, tocando o seu ombro para levá-lo de volta ao lugar de onde veio. No caminho, Raymond não conseguiu parar de encará-la, muito menos de notar o quão fiel à sua imaginação a mulher era. Seus cabelos extremamente negros e pele clara se destacariam em qualquer lugar. Diana parecia um anjo.
— Por favor, não diga a ninguém que veio até aqui — pediu a mulher, puxando-o pelas escadas. Raymond ao menos havia percebido que, em algum momento, estivera descendo degraus.
— Não direi — ele concordou. — Mas por qual motivo não posso ir até lá?
O escritor sabia a resposta, mas queria ouvi-la falar. As suas dúvidas sobre o quão fiel ao seu livro as coisas naquele lugar eram praticamente gritaram dentro de sua cabeça. Se estivesse certo, em algum lugar, naquele momento, uma pobre alma sofria torturas.
— Porque há segredos aqui, senhor, e nós temos que mantê-los guardados. Se souberem que foi até lá, eles podem...
— Diana, para onde está levando este homem?
Raymond e Roberts viraram o rosto para a mulher que se aproximou. Ela parecia ter pelo menos cinquenta anos e a incapacidade de passar batom, o que resultava em lábios manchados de vermelho apenas em algumas partes. Tinha a expressão dura e, como com as outras, Raymond a reconheceu. Era a inspetora do hospital — uma das piores e mais cruéis personagens do livro.
— Ele... hm... Não é...
— Oh, céus, Diana — ela reclamou — Você não pode andar com pacientes pelo corredor! São perigosos. Quem é este? Não me recordo. Novo aqui?
Parou à frente de Ernest, o examinando. Ele era bem mais alto que ela e aquilo fez com que a mulher tivesse que ficar na ponta dos pés, seu nariz o farejando como se fosse um cachorro.
— Eu... — começou, mas ela o interrompeu.
— Esses pacientes estão ficando cada vez mais jovens — se afastou — Que desperdício, um homem tão bonito! Leve— o daqui, precisaremos de você no refeitório, para o almoço.
E se afastou, sem dar a eles a chance de responder. Raymond, apesar de ter ficado desesperado, com medo de ser descoberto ou internado por engano, começou a rir. Diana o olhou surpresa, mas, em alguns segundos, riu também.
— Ela é sempre assim? — Na verdade, quando Raymond escrevia sobre ela, a inspetora não parecia tão insuportável.
— O tempo todo — Diana concordou, divertida — Eu acho que esqueceram de colocar um botão de "pare" nela!
— Vou me lembrar disso da próxima vez — comentou o escritor, mas apesar de Diana claramente não entender a referência, ela riu. — Obrigada por não me entregar. Não queria me meter em encrencas.
— Sem problemas. Eu também me perco aqui, de vez em quando. Esse hospital é muito... Assustador.
Começaram a andar, dessa vez mais tranquilos. Estavam perto da saída, e Raymond sabia daquilo porque, a cada segundo, o ar ficava mais fresco, como se uma janela tivesse sido aberta. Ele andou ao lado de Diana e fez perguntas das quais já sabia as respostas — afinal fora o seu criador — apenas para ouvir a sua voz e o modo como ela ria. Quando chegaram ao salão de entrada, pararam em frente ao balcão de Vivian, que estava vazio, e se olharam em silêncio.
— O que veio fazer aqui? — Diana finalmente perguntou — No hospital, digo. O motivo de ter se perdido.
Raymond mordeu o lábio inferior. Toda a descontração antes presente se esvaiu e seus ombros ficaram tensos. Ele não poderia falar das psicopatas e soar ameaçador, como fora com Vivian. Por algum motivo, se importava com o que Diana pensaria dele. Não queria assustá-la.
— Estou acompanhando uma amiga em uma visita — disse — Mas me perdi dela em algum momento.
Diana concordou com a cabeça
— É mais frequente do que pensa. — Confortou.
Naquele momento Sara surgiu no corredor, passando pela mesma porta que fizera Raymond se perder dela. A mulher não estava acompanhada de Vivian, porém, e ignorou completamente o escritor ao passar os olhos pelo salão, seguindo para a porta de saída sem demonstrar qualquer tipo de reação.
Ernest sentiu que algo havia acontecido e, apesar de não querer, despediu— se de Diana.
— Espera! — ela o chamou, fazendo-o parar a apenas dois passos de distância — Você não me disse o seu nome.
Raymond pensou um pouco, ponderando suas respostas. Não achava que era uma boa ideia gritar o seu verdadeiro nome naquele lugar. Era como se o homem fosse um alvo, além de que, caso soubessem quem ele era, Ernest nunca poderia prever a reação de todos aqueles personagens reunidos em um único lugar.
Por outro lado, ele também não queria mentir para Diana.
— Eu volto para te dizer, ok? — sorriu, vendo-a, apesar de confusa, rir também. — Tenha um bom dia!
Então saiu, passando pela porta de vidro do salão de entrada e encontrando o carro que trouxera ele e Sara parado no mesmo lugar que haviam deixado. A mulher, porém, não estava lá dentro, e aquilo o fez questionar a própria sanidade, porque tinha certeza de que a havia visto sair do hospital.
Lembrando— se da última vez que encontrara um carro vazio, Raymond se afastou e começou a vasculhar o estacionamento com os olhos castanhos. Não encontrou Sara, mas várias evidências de que outra parte da tempestade que assombrava Nothern Lake estava se aproximando apareceram. Nuvens escuras de repente tomaram o céu, e o que antes estava claro passou a ser cinza.
— Vejo que conheceu o seu grande amor — a voz de Sara zombou às suas costas.
Raymond não pôde conter o pulo que o susto causou, fazendo Sara rir.
— Droga, Sara, eu achei que estava morta, como Brian! — ele pestanejou.
— Não ainda, Ernest. Só fui checar uma coisa.
— O quê? — perguntou, curioso, dando a volta para sentar no banco do passageiro.
Sara assumiria a direção, porque era a única que sabia os destinos da dupla com antecedência.
— Nada para se preocupar — respondeu, levantando os olhos acinzentados para o céu.
Agora também ventava, e folhas espalhavam— se pelo chão. De repente os dois sentiam calafrios subindo pelas suas costas, tomando o coração de ambos como um mal pressentimento, quase uma premonição. Algo ruim se aproximava.
— Entre no carro — Raymond ordenou, um tanto trêmulo, e os dois se isolaram no veículo.
Assim que entraram um raio estalou, caindo numa floresta próxima. Sara pulou no banco com o barulho extremamente alto, Raymond fechou os olhos por causa do flash de luz. Quando passou, os dois se entreolharam.
— Isso não pode ter relação com qualquer uma delas, pode? — perguntou Raymond.
— É só uma tempestade, Raymond! Nothern Lake sempre teve várias delas. Vamos para o Hotel, onde é seguro.
— Eu não apostaria nisso — foi o que ele disse, cruzando os braços e afundando no banco. — Charlotte é uma psicopata, lembra? Não é nada seguro por lá.
Sara bufou, batendo os dedos no volante. Depois daquela breve discussão, ambos estavam exaltados, desesperados e sem ter a mínima pista do que se era certo fazer. Foi naquilo que Sara pensou quando teve a ideia que se seguiu, vendo como Ernest estava tão encrencado quanto ela; em como os dois tinham entrado naquela situação juntos.
— Então você vai para a minha casa — disse. -Lá é seguro, conversaremos e veremos o que é melhor. Não podemos nos separar com essa tempestade chegando, ela deixa tudo mais escuro que o normal e as sombras são muito perigosas.
Raymond concordou, aliviado internamente. Não queria voltar ao hotel depois do incidente no elevador, depois de descobrir que Charlotte era uma das psicopatas. Além de tudo, daquele jeito conheceria um pouco mais de Sara; saberia onde ela vivia e, talvez, alguns de seus segredos pudessem ser revelados.
Então, decididos, Crawford deu partida com o carro, e os dois seguiram pela estrada dentro das montanhas por alguns minutos antes de alcançar o destino almejado.
Chegaram no exato momento em que a chuva começou a cair.
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