06- O Medo na Floresta
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Raymond Ernest daria tudo para ver o brilho pálido da lua por um só instante. Pelo menos o suficiente para proporcionar algum tipo de iluminação ao seu subconsciente assustado que sempre relacionou a escuridão ao perigo. As palavras do faxineiro da estação de rádio se repetiam dentro de sua cabeça como uma maldição, e a frase não é seguro com toda essa escuridão foi como a voz do próprio diabo atentando a sua sanidade.
Sara, por outro lado, tremia apenas de frio. Parecia uma psicopata diante do caos, demonstrando uma única emoção realmente humana: raiva. Ela estava furiosa pelos pneus do carro — mais pelo preço do que pelo significado do ato.
— O que faremos agora? — Perguntou o escritor.
— Tenho uma lanterna no carro. Ache-a enquanto procuro sinal de telefone por aqui.
Raymond abriu a porta do veículo e começou a procurar pelo porta luvas algo que o ajudasse na iluminação. Seus dedos passaram por diversos objetos frios até que ele encontrou um celular. Congelou antes de analisá-lo. A assustadora constatação de que o conhecia de algum lugar fez seu coração pular.
— Este é o meu celular? — perguntou.
Sara estava com os braços erguidos, deixando o seu próprio aparelho contra a garoa fina. Era óbvio que não encontrava sucesso em suas buscas. Ela parou o que estava fazendo ao ouvir a voz de Raymond e encarou o escritor com uma expressão neutra ao dizer:
— Eu não sei. É?
— Você sabe que sim.
Sara notou o tom de acusação, mas pareceu muito mais irritada do que com medo pela descoberta.
— Por que eu pegaria o seu celular?
— Eu não sei! Me diga você.
A discussão acabou antes mesmo de começar. Um barulho dentro da floresta estabeleceu outras prioridades, e com o raio que estalou ao sul do principal lago de Nothern Lake tanto o escritor quanto a mulher misteriosa souberam que coincidências não existiam em verdadeiras histórias de terror.
Finalmente Sara pareceu entrar em um estado mínimo de desespero, aproximando— se do homem com uma expressão de urgência no rosto. Ela pegou o telefone da mão do escritor e disse, como se estivesse com medo de quem estaria escutando:
— Eu não peguei o seu telefone, Raymond. Mas alguém pegou.
Ele franziu o cenho e então olhou ao redor, para a floresta, de uma maneira tão lenta que Sara pensou que ele não a estivesse escutando. A luz da lanterna dos dois celulares os ajudava apenas a enxergar os rostos aflitos um do outro, as gotas finas da garoa deixando tudo em uma espécie claustrofóbica de desfoque.
Sara acompanhou a breve busca do escritor com os olhos, o frio da floresta tão intenso que parecia machucar os ossos frágeis dentro de seus corpos quentes.
— Não estamos sozinhos — sussurrou ele, mas Sara já sabia daquilo, portanto assentiu com a cabeça. Tremia tanto quanto Raymond. — Por favor, me diga o que está acontecendo.
— Eu não posso.
E quando Sara terminou a frase, um movimento muito mais brusco cortou o balançar suave dos galhos das arvores. O barulho foi surreal demais para ser qualquer unanimidade humana, portanto, no mesmo segundo, exatamente quando mais uma risada fria ecoou pelo ar, o escritor e a mulher misteriosa começaram a correr por entre as grandes e intermináveis árvores.
Eles seguiram às cegas, na escuridão, por longos minutos. Quando se sentiram seguros o suficiente para parar e tomar um ar começaram a pensar no que diabos havia acontecido ali. Era uma perseguição? Por qual motivo?
— Ela quer o corpo — disse Sara, de repente. Estava curvada sobre os joelhos enquanto procurava ar para preencher os seus pulmões — Ela quer a droga do corpo!
— Do que você está falando?!
— Qual das suas psicopatas gosta de guardar corpos? — ela rebateu em um tom óbvio demais.
Raymond congelou.
— Você não está falando da Colecionadora, está?
— A mesma.
— Estamos ferrados, Sara. Ela é maluca. Completamente pirada. Vai nos caçar a noite toda! Não nos deixará partir.
Sara tinha começado a andar de um lado para o outro, passando um dedo pelo queixo. Parecia pensar em uma solução, balançando a cabeça e negando tudo o que Raymond afirmava.
— Ela só quer o corpo — disse — Foi a psicopata que matou a garota. Lembra? Ela é a Número Quatro. Coleciona corpos. Tem todas as vítimas empalhadas em seu porão. Ela não quer nos machucar, só quer a garota para colocar na coleção.
Raymond pareceu em dúvida, mas acabou aceitando a teoria de Sara. Por isso, a acompanhou quando a mulher faz o caminho de volta para o seu carro.
— Se ela não quer nos machucar, por que furou os pneus de seu carro?
— Eu não sei. A personagem é sua.
E era, mas Raymond não fazia ideia de como a cabeça de nenhuma das sete funcionava. Ele as tinha criado como modelos perfeitos da insanidade, pessoas imprevisíveis e sem limites. Não havia meios de ao menos imaginar quais as intenções por detrás de seus atos.
Foram até o barranco em que haviam jogado a menina. Raymond chegou perto de preferir morrer nas mãos da psicopata Número Cinco quando Sara disse que ele teria que entrar na água extremamente fria do rio para puxar o corpo de onde haviam jogado. Tinha certeza de que acabaria com uma hipotermia, e o tempo que demorou imerso na escuridão do lago tendo apenas uma lanterna à prova de água como aliada pareceu uma eternidade. A temperatura era tão baixa que as suas mãos ficaram dormentes; o desespero de não saber se conseguiria voltar à margem era alto, tão assustadoramente irregular que o homem se esqueceu do que fazia por um instante. Levou um susto, claro, quando a luz da lanterna revelou um rosto pálido de olhos azuis escancarados.
Raymond desamarrou a pedra que havia deixado nos tornozelos da menina e puxou o corpo de volta à margem, onde encontrou Sara o esperando na beira do lago. A mulher tremia de frio também, mas estava seca e protegida pela sua jaqueta vermelha. Arrastou o corpo da menina pelas folhas e pela sujeira da margem, vendo Sara se aproximar assim que ele a soltou. Raymond se afastou das duas e se encolheu sob as pequenas pedras da margem, tremendo tanto de frio que de repente era como se o homem não tivesse mais controle sobre o seu corpo. Ele só conseguia tremer. Sara levantou os olhos para Ernest e pareceu se sentir culpada por tê-lo deixado ir. Então pegou a jaqueta seca que o homem havia poupado do rio e disse:
— Tire a blusa.
Raymond estava tão imerso na dor que o frio causava em suas entranhas que demorou um pouco para responder. Quando respondeu, Sara o viu tirar os olhos vidrados do corpo da garota morta para levá-los lentamente ao seu rosto, as pupilas escuras dilatas tomando todo o castanho dos olhos do rapaz. Sua expressão parecia confusa e surpresa, quase cômica.
Sara riu, percebendo como homens seriam sempre homens, e levantou a jaqueta em um gesto explicativo.
— Ah, sim — ele grunhiu, e parecia até mesmo desapontado.
Puxou a camisa branca por sobre a cabeça e pegou a jaqueta, vestindo-a e sentindo o alívio indescritível do tecido quente se chocando contra a sua pele. Fechou o zíper sobre o abdômen e trincou os braços, ficando cada vez mais quente, e Sara se levantou para voltar ao ápice do problema que os dois tinham naquela noite.
— Então, se entregarmos o corpo para ela, a psicopata nos deixa livres? — perguntou Sara, olhando para ele.
Raymond ainda estava sentado sobre as folhas mortas da beira do lago quando respondeu:
— Se eu a entendo do jeito que penso, sim. Ela não vai mais nos incomodar. — e então passou a língua nos lábios, hesitante — É a coisa certa a se fazer?
— Não é como se aquele lago fosse um túmulo digno, de qualquer jeito.
Raymond concordou com a cabeça. Ainda se sentia mal por entregar a menina para a psicopata. Ela era jovem, com certeza tinha pais e uma família que iria querer lhe dar um enterro descente. Sem falar do fato de que, sem um corpo, eles nunca teriam real paz para deixar a filha ir embora.
Infelizmente, Raymond precisava fazer aquilo. Era bem maior que ele. Se morresse naquela noite, deixaria para trás sete das piores pessoas do mundo da ficção para fazer o que quisessem daquela pequena cidade.
Levantou para ajudar Sara a arrastar o corpo ladeira acima, e, quando chegaram perto do carro, quase como em um passe de mágica macabro, viram que os pneus do carro estavam cheios de novo.
— Ela trocou os nossos pneus? — Raymond perguntou, visivelmente confuso.
— Eu acho que nunca estiveram furados — a mulher comentou, largando o corpo sobre o chão. — Você tem uma psicopata com dons psíquicos, não tem? Por acaso sabe tudo o que ela é capaz de causar?
— Fazer um carro voar em direção a uma delegacia é uma coisa, Sara. Controle da mente é outra bem diferente. Ela não pode simplesmente entrar em nossas cabeças e nos fazer ver o que quer que vejamos.
Sara desviou o olhar para os quatro pneus intocados de seu carro.
— Aparentemente — respondeu, andando até o carro e abrindo a porta para se acomodar no interior frio e isolado do veículo — Ela pode, sim — completou baixo quando Raymond sentou ao seu lado, pensativo.
1
Quando Raymond Ernest chegou ao hotel, naquela noite, encontrou Char, a recepcionista, folheando a mesma revista dos últimos três ou dois dias e a cumprimentou, amaldiçoando os céus por ter sido visto com as calças e cabelos molhados. Seria difícil explicar de onde tinha vindo toda aquela água em um frio de — 3° como o que estava fazendo naquele momento. Ele não poderia apenas ter saído para nadar.
— Oh, céus! — ela exclamou, saindo de trás do balcão — Está chovendo! Tenho que fechar as janelas do escritório.
Char desapareceu antes que Raymond pudesse avisá-la de que aquilo era um engano. Por outro lado, agradeceu a falta de perguntas e seguiu para o elevador, sentindo— se claustrofóbico da melhor maneira possível dentro daquele cubículo de ferro. Era até mesmo bom estar em um lugar tão iluminado, vazio e pequeno depois de passar mais de quatro horas em uma floresta escura que não parecia ter fim. O homem se sentia em um de seus livros de terror.
Quando a porta se abriu, dividindo— se em duas, ele percebeu que não era o seu andar. Do lado de fora, o corredor estava vazio. Ele esperou que alguém entrasse, mas aquilo não aconteceu. A porta também não voltou se fechar. As luzes piscaram de maneira calma. O ar ficou mais frio e a chuva que Char tanto temia começou a cair do lado de fora do prédio, sendo acompanhada por um daqueles raios já característico de Nothern Lake.
Raymond fechou os olhos. Não era nada demais. Apenas um erro provocado por alguma falha, provavelmente culpa da chuva que caía há tanto tempo sobre a cidade que as coisas começaram a ficar comprometidas pelo estrago. Ele não podia estar sendo perseguido. Havia entregue o corpo à psicopata do jeito que ela queria. O que mais o homem poderia oferecer?
Decidiu tomar coragem para olhar a extensão do corredor, dando pequenos e calmos passos até a direção da porta do elevador. As luzes tinham parado de piscar, mas não havia sinal de que fosse conseguir sair dali tão cedo, então colocou a cabeça para fora, olhando para o lado direito e vendo que ele estava vazio. Depois, sentindo cada célula do seu corpo tremer, ele olhou para o lado esquerdo; quando parou, decidindo que voltaria para dentro do elevador para esperar, um comichão atravessou a sua espinha.
A sensação que apossou o corpo do escritor fez os pelos da sua nuca se arrepiar. Havia alguém atrás dele, dentro do elevador, parado às suas costas. Ele hesitou em se mover, fechando os olhos, pedindo silenciosamente para que estivesse ficando maluco. Pensou em sair correndo e não olhar para trás, mas, para onde iria? Sabia que seria perseguido. Sabia que não tinha escolha, que as escadas seriam uma opção pior ainda. Então se virou, recusando— se a adiar o inevitável. Quando viu o que estava atrás de si soltou a respiração presa dentro de seus pulmões. As três paredes cobertas por espelhos o encaravam em diversas versões de si mesmo. Ali não tinha nada além do sentimento de loucura que já havia tomado a sua personalidade há um bom tempo.
Raymond tomou a liberdade de rir e zombar de si mesmo. O elevador tremeu. Ele sentiu o movimento abaixo de seus pés. As luzes piscando de novo. Os espelhos fizeram a própria imagem sumir e aparecer, sumir e aparecer, sumir e aparecer até que alguém estivesse junto com ele, atrás de si, rindo e rindo como se aquele fosse o momento mais engraçado do mundo.
— Senhor?
Raymond pulou, batendo a cabeça contra o espelho às suas costas. Respirava com tanta dificuldade que parecia perto de explodir. Suas mãos tateavam o ambiente em busca de reconhecimento, e ele só se concentrou no mundo real quando um par de olhos castanhos entraram em seu campo de visão.
— O senhor está bem?
A voz pertencia a uma garota de porte pequeno, alguns centímetros menor que o escritor. Ela usava um uniforme branco e azul, os cabelos presos com uma fita. Raymond a reconheceu no mesmo instante, lembrando— se do dia em que a camareira apareceu na porta do seu quarto de hotel. Horas depois encontrou um corpo em sua banheira.
Raymond não podia fugir, mas reprimiu— se contra a parede do elevador para se afastar dela. A menina tinha uma expressão preocupada e quase assustada, olhando-o como se esperasse que ele começasse a surtar de novo. Aquilo não aconteceu, pois Raymond percebeu que havia adormecido enquanto o elevador subia todos aqueles andares. Os poucos segundos foram o suficiente para lhe proporcionar um dos piores pesadelos de sua vida, e deveria até mesmo ser grato à garota que o acordou para livrá-lo daquilo.
— Estou ótimo — respondeu — Desculpe por isso, ando tendo alguns problemas de insônia.
Ela pareceu aliviada com a garantia do escritor, afastando— se, e só então Raymond viu que ela carregava um lençol branco entre os braços, cruzando-os em frente ao peito.
— Tudo bem, eu nem deveria estar aqui, de qualquer jeito. O elevador dos funcionários está quebrado — explicou ela, virando— se para a porta e falando sem olhar para o escritor — Mas eu prefiro ser demitida ao usar aquelas escadas. Elas são escuras demais.
Raymond a observou sem dizer uma palavra. A menina não parecia ter medo enquanto descrevia o quanto as escadas poderiam ser ruins. Aquilo o confundiu tanto quanto o faxineiro da rádio, o Sr. Cooper, que também tinha receio da escuridão.
— O que há de errado com o escuro? — perguntou, com medo da resposta.
A menina virou o rosto lentamente para ele, os olhos minimamente estreitos.
— Não se preocupe, Raymond. Não há o que temer. — Sorriu — Nada vai te machucar enquanto for útil para nós.
A porta do elevador se abriu antes que ele pudesse processar a informação, e, em um minuto, a menina já não estava mais com ele.
2
Naquela noite, Raymond Ernest não conseguiu dormir. Ao invés de sonhar, levantou e pegou um notebook emprestado do Hotel para realizar as mais bizarras e estranhas pesquisas na internet enquanto estava sozinho no bar dos hóspedes. Com tudo fechado e os funcionários dormindo, Char disse que, se Raymond quisesse, poderia se servir de qualquer bebida disponível nas prateleiras do loca. O escritor acabou pegando uma garrafa do whisky mais barato e colocando um pouco em um copo com gelo. Precisava daquilo para se acalmar.
Passou horas procurando sobre truques da mente e personagens se tornando reais, mas tudo o que achou foram mágicos de programas de TV e livros da Cornelia Funke. Além disso havia teorias da conspiração sobre o governo norte-americano e documentários de extraterrestres. Nada que explicasse como as suas personagens haviam saído do seu livro para a vida real, e muito menos nada que explicasse o envolvimento de Sara naquilo tudo.
Virou o copo com o liquido já sem gelo, sentindo a garganta queimar. Passou as mãos pelo cabelo bagunçado e estranhou o cheiro do sabonete do hotel. Queria a sua vida de volta; maldito fora o dia que reclamara do tédio na cabana, do comportamento mandão de Brian. Sentia falta de Rose, de sua filha. Naquele momento, bêbado e assustado, queria poder voltar no tempo e mudar tudo o que havia acontecido entre ele e a ex-mulher — não por ela, mas pela filha. Sentia muitas saudades dela.
Pegou o seu celular, passando os dedos sobre o visor empoeirado. Sara havia dito que não tinha sido a responsável pelo seu sumiço, e ele sabia que muitas das psicopatas eram verdadeiras maníacas que poderiam fazer de tudo para causar a discórdia. Elas seriam capazes de colocar o celular do escritor no carro da mulher. Por outro lado, quando o perdeu a única pessoa por perto era Sara.
Ligou o aparelho quando viu que a bateria tinha sido carregada. Havia muitas notificações de suas redes sociais, o que quase fez o aparelho explodir. Ele tinha fãs e com a notícia do incêndio e do sumiço as pessoas tinham ficado preocupadas. Raymond deixou uma nota em sua página no Facebook para certificar que tudo estava bem e que ele só precisava de um tempo para reorganizar a sua vida. Depois, checou as ligações perdidas e as mensagens ignoradas, vendo que não havia nada prioritário, e partiu para o WhatsApp.
Havia uma mensagem de Rose que, de acordo com o relógio, tinha chego há duas horas. Nela, Raymond leu a frase mais assustadora de sua vida. A única que provocou um medo tão avassalador, tão cruel e profundo que o homem não conseguiu fazer nada além de deixar o telefone cair no chão ao se levantar e correr para fora do Hotel.
Pela manhã, quando Char encontrou o notebook e a garrafa de whisky sobre uma das mesas do bar, quase pisou sobre o celular do escritor. Ele estava jogado no chão com o visor aceso na seguinte mensagem:
"Raymond, eu preciso de sua ajuda! A nossa filha sumiu!"
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N/A: O QUE SERÁ QUE ACONTECEU COM A FILHA DELE GENTE AAAAAH
até a próxima hahahha <3
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