02. época das trevas 2.0.
Ela só parou de mascar o maldito chiclete quando passaram por Camaquã. Durante sólidos quarenta e cinco minutos, Pietra Salles mascou e estourou bolas de chiclete com um único motivo: irritá-lo. Quando ela cuspiu o chiclete num guardanapo – ele sempre os trazia no carro para situações como aquela e pessoas como ela –, Emílio sorriu exatamente como a boneca Annabelle.
— Cansou, Salles?
— Vou esperar a hora do almoço.
— Não vamos parar — disse ele. Ela revirou os olhos. — Se tu pensa que nós...
— Longe de mim atrapalhar os planos de Vossa Majestade. — Pietra sorriu. Foi a vez dele de fechar a cara. — Relaxa, ok? Eu trouxe comida.
— Comida?
— É. Parei na padaria e comprei uns sacos de salgadinho antes de ir pra rodoviária.
— Salgadinhos? — perguntou ele, franzindo o cenho. — Tu vai almoçar salgadinhos?
— O que é que tem?
Pietra o encarou como se um tronco de árvore nascesse de uma de suas narinas. Emílio apertou os olhos. Como era possível que ela não visse o problema de uma mulher de trinta anos almoçar um saco de salgadinhos?
— Isso não é almoço — resmungou ele. — Salgadinho nem pode ser considerado comida.
Ela riu, enfiando o celular no bolso do casaco.
— O que é isso, Andolini? — Pietra descansou os pés no painel novamente. Emílio trincou a mandíbula para o All Star branco que sujava tudo. — Quer ocupar o lugar da minha mãe?
— Deus me livre. — Ele fez uma careta, baixando o volume do rádio. — Aliás, vou te dar um conselho de amigo...
— Tu não é meu amigo.
— Então aproveita, porque o conselho é de alguém que te detesta e é de graça. Isso é coisa rara. — Ele fez uma pausa, ultrapassando um sedã prateado. — Todo esse salgadinho vai entupir as tuas veias.
— E...?
— Continua assim, porque se tu sofrer um infarto e cair dura no chão, a possibilidade de formarmos uma dupla de novo é inexistente. — Ele sorriu com o canto dos lábios. — Há males que vêm para o bem, né? E tira os pés do meu painel.
Ela franziu o nariz arrebitado e se virou para a janela, atendendo ao pedido dele e admirando os campos que se estendiam à beira da BR-116 como lençóis esverdeados secando ao sol. Tendo a música clássica como um delicioso ruído de fundo, Emílio dirigiu em paz, não mais atormentado pela mastigação incessante de Pietra ou por seus pés sujos no painel do carro.
Porém a mente dele, sempre traiçoeira nos silêncios que a cercavam, alçou voo, desconectando Emílio daquela estrada silenciosa e sem graça que se abria diante dos dois. Sem querer, olhou de esguelha para Pietra, que tinha a atenção perdida nas árvores e casinhas que surgiam à beira da BR-116, e pensou no período em que trabalharam juntos. O famoso período conhecido pelos dois e por todos na agência como "A Época das Trevas".
Emílio não se considerava um homem grosseiro, mas era prático como nenhum outro. Sabia das limitações e fortalezas de seu próprio gênio ruim, mas nunca era grosseiro de propósito; Emílio só não tinha tempo e paciência para piadas e conversa fiada. Não se ganhava prêmios assim, rindo e tomando outro cafezinho para tapear o trabalho. Publicidade era coisa séria.
Quando "A Época das Trevas" se iniciou, ele e Pietra tentaram de tudo para convencer o chefe a não deixar aquela dupla de criação que se abominava acontecer. Os dois ofereceram todo tipo de suborno a Kim – bombons de banana, rodadas de sushi, fones de ouvido de última geração –, mas o chefe fora irredutível. "Só vocês não trabalharam juntos ainda, gente. Vejam o que sai daí...", dissera ele, dando de ombros. Maldito.
Emílio não se considerava um homem grosseiro, mas, ao lado de Pietra, suas características ruins se transformavam num tsunami de ódio que varria para as cucuias qualquer ilhazinha medíocre do Caribe. Sempre havia um comentário engraçadinho, uma respostinha malcriada na ponta da língua ferina da redatora, e nenhum dos dois cedia na criação das campanhas. Queriam propostas e conceitos divergentes, e Emílio frequentemente explodia porque Pietra era o tipo de ser humano e de mulher que ele mais abominava: arrogante, debochada e que agia como a Rainha de Sabá nos corredores da Gamut.
Era comum ele ir ao banheiro masculino da agência para sapatear de raiva e gritar com as torneiras somente para não direcionar sua ira à redatora. Quando chegava em casa, Emílio discutia com Leila, sua namorada na época, por tudo: a tampa da pasta de dente que ela não fechava direito, os farelos de pão em cima da mesa e até a ordem errada das almofadas no sofá. Tudo o deixava possesso.
A culpa? Única e exclusivamente de Pietra Salles. Ela o deixava doido. Não havia outra explicação.
Às vezes Emílio se perguntava como diabos eles conseguiram ganhar prêmios com aqueles trabalhos. Afogado na raiva, ele não se lembrava de ter realizado nenhum dos projetos. Tudo o que Emílio se lembrava era de se sentar diante do computador e ouvir a voz de Pietra dizer: "Tá errado. Faz de novo. Não corta o meu texto. Não foge do conceito. Tu não vai conseguir", como a porra de um disco quebrado.
Então, só para ter o prazer de mostrar que ela estava errada, ele trabalhava como um cavalo, ficando muitas vezes após o horário do expediente para refinar os layouts. Emílio passava noites em claro pensando nela, em como Pietra veria o trabalho feito na manhã seguinte e seria forçada a elogiá-lo.
A glorificação verbal nunca vinha, mas naqueles meses Emílio aprendera a ler os olhares e os lábios franzidos de Pietra como ninguém. Ela podia morrer de amores pelo trabalho dele, mas nunca daria o braço a torcer. Em relação aos textos de Pietra, ele fazia a mesma coisa: nada era bom o suficiente, vírgulas faltavam, toda palavra era ruim.
Em silêncio, ele diminuiu ainda mais o volume do rádio, fazendo a música quase sumir no ronco constante do ar-condicionado. Pietra olhava para fora, o rosto apoiado nas mãos. Nervoso e sem saber ao certo o motivo, Emílio perguntou:
— Tu acha mesmo que... que o Kim vai juntar a gente de novo?
— Querendo ou não, fomos a dupla mais premiada da Gamut — respondeu ela numa voz entediada, dando de ombros. — Do ponto de vista puramente capitalista, faz sentido que a gente fique junto.
A maneira como as palavras saíram da boca de Pietra fizeram Emílio enrijecer no banco. Aquilo, pensou ele, apertando o volante para camuflar o nervosismo.
Emílio sempre acreditou que fatos importantes da humanidade e da vida de todo indivíduo deviam ser grifados em letras maiúsculas: Terceiro Reich, Proclamação da República, Aquela Torta de Limão da Confeitaria na Henrique Dias, Aquilo, Minha Primeira Bicicleta e assim por diante.
Aquilo que aconteceu entre os dois não foi nem de longe importante, mas sempre que Emílio pensava no assunto era a letra maiúscula que insistia em se intrometer na palavra. Era o cheiro da tequila e de tutti-frutti que fazia aquele "a" desimportante se destacar, brilhar na palavra. Só podia ser.
Sem graça por se fixar naquela letrinha imaginária, ele voltou a atenção à estrada.
— Na real, faz bastante sentido que a gente seja uma dupla — continuou Pietra, como se falasse sozinha. — Mas prefiro furar meus olhos com uma lapiseira diferente todos os dias a encarar uma "Época das Trevas 2.0" contigo. Deus me livre.
Ele sorriu sem vontade, os olhos fixos na estrada.
— Vão faltar lapiseiras no mundo se o Kim nos juntar outra vez, Salles.
— Pode apostar que sim, Andolini.
Emsilêncio, seguiram viagem.
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