Capítulo 3 Parte 1 (Rascunho)
"Prefiro a desolação da verdade ao conforto da mentira."
Edna Frigato.
O dia menos desejado pelo casal chegou mais rápido do que o esperado, embora soubessem muito bem quando seria. Pedro até pensou em se evadir, mas imaginou que seria pior. Por isso, aguardou o transporte à frente de casa. Como se tornara maior de idade, não tinha mais direito a acompanhante e o jovem até achava melhor porque a mãe ficou muito deprimida da primeira vez e não desejava vê-la sofrer de novo com lembranças sem esperança de volta. Luana, a eterna namorada e amante, estava ao seu lado, bastante apreensiva. Afinal, nenhum dos dois imaginava como aquilo acabaria. Quando o aparelho desceu, ela beijou-o, abraçou-o e disse:
– Estarei bem aqui, esperando por você, meu amor, e tome muito cuidado.
Com mais um beijo terno, Pedro entrou no transporte flutuante. Estava nervoso e isso ficava refletido no semblante. Sentou-se no fundo, observando os demais jovens. Todos, exceto ele, riam brincavam e cantavam na expectativa de virarem maiores e poderem usar simuladores. Notou que era observado por um dos robôs, mas estava determinado a não compactuar com aquilo, mantendo-se sereno, mas sério. Naquele dia, olhando a paisagem linda da região nobre pensou na coitada da mãe, nascida e criada naquele ambiente para ser arrancada dali por um casamento não escolhido ou desejado. Isso, de alguma forma, estragou a magia do local, mas não teve muito tempo para pensar porque o planador desceu na frente do centro poucos minutos depois. Ainda teve tempo para admirar a beleza simples, porém imponente, do edifício de mármore quando foi interrompido por um dos robôs mandando-os saírem e fazerem fila. Um dos garotos bancou o engraçadinho e levou uma pancada que o fez ver estrelas, pancada essa dada por uma das máquinas. Pedro estranhou tal comportamento porque a programação primária dos robôs era proteger o ser humano e a agressão seria um último recurso, mas logo lembrou-se que lera que os robôs guardiões eram um pouco diferentes e podiam até matar, mas apenas em última instância e quando a vida de outros seres humanos inocentes estivesse em risco. Logo, concluiu que não deveria se preocupar com atitudes mais agressivas do que aquela. Contudo, o efeito foi instantâneo com os jovens, que passaram a obedecer sem piar. Foi então que Pedro se deu conta que a coisa era muito, mas muito mais séria do que foi aos seis anos. Antes eram tratados como crianças; agora, como adultos e com direito a serem espancados, se necessário. Considerando que o juijitsu não seria eficaz contra uma máquina e tão-pouco seria sensato rebelar-se dessa forma, apesar de saber que não correria risco de nada maior que uma pequena escoriação, optou por aparentar submissão. Não demorou muito a ser levado para uma sala, a mesma da primeira vez, e começou a pensar que havia uma relação muito importante. Além disso, eram as mesmas pessoas. A mulher, que continuava muito bonita e não parecia ter envelhecido, deu um sorriso gentil, ao vê-lo.
– Nossa, meu filho, como você cresceu e como está lindo! – exclamou, estendendo os braços. – Já está bem maior que eu!
O jovem, porém, não correspondeu. Estava ressabiado e encarou os dois, muito sério. A mulher baixou os braços, mas o sorriso pareceu aumentar, como se esperasse aquela reação. Olhou os dados do seu palm e disse:
– Olhe, meu jovem, precisamos de fazer o nosso trabalho e, se você cooperar, nós três voltaremos para casa mais rápido.
– Tem razão – disse o garoto com um suspiro e aproximando-se. – O que devo fazer?
– Basta sentar-se na cadeira e relaxar um pouco – pediu o homem, sempre sério. – Como da última vez, lembra-se?
– Jamais me esqueço de algo – resmungou Pedro, desistindo de joguinhos e decidido a enfrentar o par. – Quer que eu diga a cor da sua camisa naquele dia? Era azul com bolinhas brancas, bem mais feia que essa aí...
Desconsertado, o sujeito ajudou a colega a colocar o capacete e os eletrodos. Ligaram o analisador e Pedro sentiu-se bastante relaxado, mas não perdeu a consciência de todo, como antes. Ficou quieto, olhando para ambos com um certo olhar desafiador.
– Aumente a potência – disse a mulher, ao vê-lo naquele estado.
O resultado foi o mesmo.
– Mais...
– Está no máximo...
– Então faça as medidas.
Apesar de consciente, Pedro não podia se mexer. Eles mediam e o jovem ouvia muitos resmungos e várias vezes as palavras "improvável", "não pode ser" ou "ele não pode ser real" e "agora é seiscentos e cinquenta. Isso não existe", palavras essas vindas do homem, porque a mulher permanecia impassível. Com esse comportamento tão diferente dos outros adultos, ele começou a pensar que algo de fato não se encaixava. Com certeza aqueles dois não eram usuários do simulador e a primeira conclusão que tirou foi que, provavelmente, os usuários de simulador eram as pessoas da região dele. Algo que as mantivesse passivas e de fácil controle, vulgo "cordeirinhos", como lera em um livro. Afinal, apesar de terem tudo o que precisavam para subsistir, não tinham nada que fazer. O seu pai, por exemplo, só se tornou dependente do simulador quando perdeu o trabalho. A conclusão era tão óbvia que chegava a ser dolorosa.
– Vejo que reflete intensamente! – exclamou a mulher. – Tente relaxar, por favor.
Mas isso era algo fora de controle. O jovem começou a pensar e a analisar milhares de opções que culminaram na situação atual, além de possíveis mudanças. A máquina começou a apitar pouco depois e a mulher desligou-a. Depois, atacou, sem dó:
– Você deseja nos enganar? – perguntou, autoritária. – Acredita mesmo que conseguirá?
– Acha que desejo? – questionou com um sorriso discreto.
– Não sei, você deseja? – retrucou ela.
– Não, nunca desejei e eu até gosto da senhora desde que a conheci, mas vocês transmitem insegurança demais.
– Sabia ler antes do doutrinador?
– Sim, a minha mãe gostava de ler e eu achava legal as palavras. Perguntava para ela o significado e pronto, aprendi em poucas semanas lá pelos quatro anos, mas estou ciente que já sabia disso.
– Sabe mais coisas?
– Sim, muitas mais – confessou o jovem. – Eu não pretendo ser obsoleto como o meu pai. Não pretendo degenerar em simuladores. Já disse que vou casar com a Luana e ter uma vida bem diferente desta.
– Por que acha que pode se casar com ela?
– Porque a amo e ela a mim.
– Acontece que todos os casamentos devem se aprovados pelo computador genético.
– Não tentem nos impedir – ameaçou o jovem, impassível. – Por que agem assim?
– Essa é a lei – respondeu Helena, encolhendo os ombros. – Por que tem tanta certeza sobre ela e sobre a sua vitória em relação a isso?
– Porque fiz-lhe um juramento.
– Entendo, filho – disse com um suspiro, mudando de assunto. – O que gostaria de fazer no futuro?
– Quero saber tudo, quero saber mais que as máquinas. Não nasci para ser escravo delas!
– Tem ideia do que elas podem fazer, garoto?
– Sim, míseras contas binárias em alta velocidade – respondeu decidido. Estava crente que não adiantava mentir, mas não ia mostrar tudo de uma vez. – São projetos de inteligência primária e nem mesmo possuem pensamento criativo. Elas não podem inventar, mas eu... posso!
– Como sabe disso?
– Basta olhar para os robôs – argumentou. – São muito estúpidos e não são capazes de sair das suas diretivas programadas.
A mulher ficou calada, olhando para o garoto por um bom tempo. O seu olhar parecia pena e triunfo ao mesmo tempo. Nesse momento, Pedro decidiu tomar a iniciativa:
– Bem, para começar, nem quero saber dos simuladores; vejo muito bem que são coisas horríveis e de controle social. Apenas coisas para manterem as pessoas ociosas pacíficas. Depois, meu pai disse que eu receberia conhecimentos adicionais para, aos vinte anos, receber uma profissão. Eu quero explorar, quero saber tudo, não quero uma profissão única, quero toda a ciência acumulada da humanidade...
– Bem, meu filho – começou a mulher, com ar triste –, você não pode receber conhecimentos adicionais e muito menos uma profissão. Você rejeitou completamente o equipamento de análise. Se tentarmos implantar algo em você, poderá morrer. Você tem uma doença mental raríssima e deverá ser levado para um centro especial de tratamento porque é impossível lhe dar conhecimentos adicionais, mas não se preocupe que será muito bem cuidado.
– Eu não estou doente – argumentou Pedro, sem mudar o semblante ou demonstrar comportamento alterado. – Vocês podem arrumar uma desculpa melhor que essa. Pelo menos me deixem entrar em contado com a Luana para tranquilizá-la.
– Sinto muito – disse a mulher. – Será transferido para um centro de desajustados no Rio de Janeiro daqui a pouco. Lá, será ensinado a viver com a sua limitação.
– Pelo menos me deixem avisar os meus pais – quase implorou, aflito.
– Não será permitido – objetou a mulher. – O governo avisará.
Exasperado, ele suspirou e olhou em volta. Não adiantaria fugir porque seria apanhado sem dificuldades.
– Preciso ir ao sanitário – pediu, arriscando. – Posso?
– Claro, entre naquela porta – respondeu o homem, apontando para a esquerda. – Mas nem tente sair pela janela que tem uma grade de alta-tensão em volta.
Pedro entrou e sentou-se no reservado. Pegou o palm e escreveu a sua mensagem criptografada às pressas. Depois, usou o bracelete para transmitir. A seguir, deu descarga e saiu, sabendo que ia passar um bom tempo antes de ver a sua amada Luana outra vez.
― ☼ ―
Ainda à frente da casa do namorado e aguardando impassível, Luana recebeu uma mensagem. Pegou o palm e leu:
"Meu amor, estão me aprisionando e levando para algum lugar no Rio de Janeiro. Não sei onde é nem por quanto tempo me deixarão com o palm, mas espero que deixem. Sem o bracelete até daria para invadir o de alguém, mas sem o computador de mão é mais complicado, senão impossível de me comunicar com você. Lembre-se que a amo e jamais deixarei de a procurar enquanto houver um sopro de vida em mim. Só acredite que eu não voltarei se lhe apresentarem os meus restos mortais. Apague a mensagem ao terminar de ler. Amo você acima de tudo.
PS: avise a minha mãe. Acho que foi pela minha condição que me aprisionaram, logo, prepare-se que o seu nível intelectual é semelhante ao meu. Fuja, se puder, mas evite se arriscar. Pode ter a certeza de que eu a encontrarei ou morrerei tentando."
Luana chorou sem parar durante bastante tempo, mas precisou de se conformar. Aproveitou os dias que sobravam para investigar a trilha do espaçoporto, chegando a ficar oculta de noite, quieta, observando. Um dia, viu alguns homens passando por ela e carregando uma carga, guardando a informação na memória. Ela jamais sairia da Terra sem o seu adorado Pedro. Por isso, pensou em se submeter à avaliação e talvez a levassem para onde ele estaria. Por outro lado, cogitava com força em fugir e ficar oculta até que se encontrassem de novo. A maior questão era onde se esconder bem e, ainda assim, o namorado ser capaz de a encontrar. Para piorar as coisas, não poderia usar o bracelete porque, como procurada, poderia ser rastreada e localizada no primeiro estabelecimento que entrasse, uma vez que os robôs monitoravam tudo.
― ☼ ―
Pedro estava deprimido ao extremo. Senta-se um inútil, um derrotado. Talvez, se lhe dessem um simulador naquele momento e ele pudesse usá-lo, acabaria entregue e alienado. Ele, que era capaz de fazer cálculos que só as máquinas mais avançadas conseguiam, estava ali em um hospital de incapazes de receberem doutrinação pela máquina ou algo similar. Esqueceu-se de que poderia aprender qualquer coisa que desejasse, como foi durante toda a sua vida pregressa. Naquele momento, sentia-se um inútil, acabado e o principal motivo era a ausência da Luana.
O colega de quarto, vendo-o tão deprimido, perguntou:
– Joga xadrez?
– Não, nunca me interessei por jogos.
– Venha, ensino você – pediu ele, cordial, apontando o tabuleiro. – Isso ajuda a passar o tempo e é bem gostoso. Tenho a certeza de que vai gostar deste.
Ele explicou os movimentos das peças e as regras, mas Pedro perdeu feio. Por outro lado, achou o jogo fascinante. Infelizmente, a sua cabeça só pensava em uma coisa: na namorada. Quando acabaram, o colega deu para jovem um livreto de xadrez, um livreto real, feito de papel. Curioso, o rapaz pegou e leu durante a noite, despertando um pouco do seu interesse científico e descobrindo que aquele jogo era uma das coisas mais fascinantes que viu, com combinações matemáticas que chegavam a arrepiar; na prática, impossíveis de calcular em tempo hábil. De manhã, Pedro perguntou:
– Onde arrumou o livro?
– Na biblioteca, ora – respondeu o companheiro de quarto risonho.
– Quero conhecer – pediu, ansioso –, antigamente eu só via livros no meu palm. Acha que mo devolverão?
– Temo que não – respondeu o colega. – Vamos, vamos jogar uma partida que depois levo você para a biblioteca.
O novo amigo nunca mais venceu um jogo. Ao fim de algumas horas, como prometido, levou Pedro à biblioteca. Era enorme e com milhares de livros, todos de papel. Enquanto andavam, o colega que se chamava Richard tentou convencê-lo a enfrentar os computadores de xadrez, no torneio que iniciaria no dia seguinte. Segundo ele, apenas uma pessoa foi capaz de os derrotar.
Após alguma insistência, Pedro aceitou, enquanto via um livro de mecânica quântica, um ramo da física que quase não tinha publicações na biblioteca pública a não ser introduções para leigos. Pegou nele e foi para o quarto. Quando Richard notou o que ele lia, disse, debochado:
– Meu camarada, isso é algo demasiado avançado para quem nem sequer começou a aprender o básico. Nem mesmo eu seria capaz de entender e estou aqui há muito tempo.
Pedro levantou os olhos e sorriu, nada respondendo. Logo depois, aprofundou-se no livro e deu-se conta de que poderia abraçar a questão do controle da gravidade a partir daqueles princípios. Leu bastante, até que, cansado, pensou em dormir, virando os seus pensamentos para a pessoa que mais amava.
― ☼ ―
A competição contra o computador atraia a atenção de muitos residentes de todos os níveis. Havia dez competidores e dez terminais em mesas que formavam uma meia lua. Os terminais consistiam em tabuleiros de xadrez holográficos e o computador respondia aos movimentos das mãos, projetando a peça como se fosse real, até mesmo na mão do competidor quando a movia para outro lugar. Como Pedro foi o último a se inscrever, deram-lhe o terminal mais à direita. Por ser desconhecido, não tinha observadores exceto por Richard que sabia o potencial dele. De acordo com as regras, cada jogador vencido retirava-se da mesa. O sinal de início foi dado e os participantes começaram a jogar. Ao fim de dois minutos, três jogadores saíram e seus observadores espalharam-se pelos sete restantes, a maior parte deles no favorito. Já o novato, jogava sem dificuldade e permanecia sereno. Ao mesmo tempo, ele pensava como foi que nunca se tinha interessado por aquele jogo fantástico. O computador acabara de fazer um movimento que o colocaria em uma armadilha e seria vencido em seis lances. Quase de imediato identificou a saída adequada e deixou que o adversário comesse o seu cavalo, avançando a torre para uma posição estratégica, porém perigosa. Richard, achando que ele errara, abanou a cabeça. Nesse momento, o som de quatro cadeiras sendo afastadas mostrou que só sobravam três jogadores, sendo que o favorito foi um dos derrotados. Quatro movimentos depois, Pedro deu cheque mate na máquina e afastou a cadeira, permanecendo sentado e observando os dois últimos candidatos enquanto Richard soltava uma exclamação abafada.
Foi nesse momento que os demais foram derrotados e todos olharam para o colega de quarto do novato, que estava de braços cruzados, observando o tabuleiro de olhos arregalados e queixo caído.
– Você venceu tão rápido! – exclamou um deles, cumprimentando o novato. – O único ser humano a vencer este computador foi a falecida doutora Helena Randal e ela levou mais de seis horas!
– Mas a doutora Helena está viva! – retrucou um dos jogadores, espantado. – Vi ela ontem!
– Essa é a neta dela – explicou um dos presentes. – As duas têm o mesmo nome. Diga, meu amigo, faz quanto tempo joga xadrez?
– Dois dias – respondeu o jovem, dando de ombros. – Achei o jogo interessante e desejei aprender mais sobre ele.
– Fala sério, meu camarada – arrematou o interlocutor, rindo muito e saindo do recinto. – Se não quer contar, não conte, mas não minta.
– Ele disse a verdade – retrucou Richard. – Eu ensinei-o a jogar. Pedro é muito bom!
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