Parte V - Maldições e vingança
Sofia tentou se distrair jornal, manipulando a xícara de café sobre a mesa da cozinha. Ela sonhou com aquela noite de novo. Por muitos anos, tanto ela quanto Luís tinham os pesadelos alternados. Às vezes eram as visões dos fantasmas congoleses, com os horrores cometidos a mando de Leopoldo II na África. Às vezes era a noite de 1902 em si, com as sombras perseguindo a carroça. O final já estava decorado na sua cabeça mesmo quatro anos depois: a dupla andando em direção aos portões do museu para se desculpar com o superintendente e descobrindo que o homem que os esperava no museu era, na verdade, o tradutor de Morton Stanley visto no porto. Desesperado, o homem fugiu na direção da mata e deixou para trás uma mala com dinheiro e um caderno, ambos em chamas. Luís e Sofia conseguiram salvar algumas notas de réis e apenas uma página do caderno contendo alguns nomes. Entre eles, o de Gennaro Rubino. Sofia nunca mais ouviu falar dele. O real superintendente nunca admitiu conexão com as caixas e o cavalo que puxava a carroça morreu inexplicavelmente dois dias depois sem sinais de violência.
A italiana abriu a página da principal manchete, o assunto que não saía das rodas de conversa. Sete de setembro de 1906, o brasileiro Santos Dumont alçou voo no 14-bis, sua máquina voadora, sobre o Campo de Bagatelle em Paris. A humanidade aprendendo a voar como os pássaros. Sofia ficou presa nas linhas do noticiário até lembrar-se que estava deixando sua bebida esfriar. Não conseguia deixar de pensar no encanto que Luís teria com essa notícia. Ao longo desses dois anos, ela conseguiu superar a tristeza da partida, mas alguns lapsos de saudade ainda voltavam eventualmente. Depois da noite dos fantasmas, Luís e Sofia estreitaram os laços como colegas de trabalho e amigos, tentando ajudar um ao outro com as dificuldades financeiras, ficando mais e mais próximos. Em alguns meses, a amizade tornou-se um romance. Os dois pensaram em se casar mais de uma vez, mas a família de Sofia nunca aceitou bem que ela se relacionasse com um homem negro.
O romance acabou em novembro de 1904, quando Luís foi preso pela polícia do sob a acusação de participar da Revolta da Vacina. No meio do motim, eles fugiram e se abrigaram num cortiço em Niterói. Sofia lembrou de ter visto o Rio de Janeiro tomado pelo caos, com postes arrancados, bondes vandalizados, tiros, gritos e facadas vindos de todos os lados, tanto da polícia quanto dos revoltosos. Boatos chegaram a seus ouvidos dizendo que a marinha bombardeou a cidade. Seja como for, três dias depois de terem se refugiado, Sofia acordou e não encontrou mais Luís no Cortiço. Quando ela voltou ao Rio no final do mês, um policial a disse que ele tinha sido capturado junto a outros revoltosos e, como punição, foi enviado para o trabalho forçado dos seringais da Amazônia. A imigrante sabia que seu companheiro era amigo de Horácio José da Silva, o capoeirista apelidado de Prata Preta que foi um dos principais líderes da revolta, mas nunca teve certeza de que as acusações sobre Luís eram reais.
Ela passou dias com dificuldade de sair da cama, letárgica e depressiva nas ruínas da capital brasileira em reconstrução. Demoraram alguns meses até que Sofia aceitasse o mais provável: ela nunca mais veria seu companheiro novamente. A selva amazônica era brutal com aqueles que não haviam crescido e se acostumado com ela. As doenças transmitidas pelos mosquitos eram ainda mais frequentes e mortais que no Rio. A mata escondia serpentes enormes que esmagavam suas presas, onças furiosas e lagos repletos de piranhas. Era questão de tempo para que a morte abraçasse os visitantes como cipós. Sofia mal conseguia imaginar como era para Luís ser escravizado novamente.
A breve interrupção da luz solar que incidia no sofá vinda da janela a tirou do fluxo da leitura do jornal. Alguém passou por sua janela. Logo em seguida, três batidas na porta.
- Quem é?
- Eu...
Um silêncio constrangedor se seguiu, como se a pessoa do outro lado estivesse envergonhada. Era uma voz masculina, familiar até demais. A italiana levantou-se para abrir a porta. Um homem negro, magro e alto estava do outro lado, quase inteiramente coberto, algo estranho no calor do Rio. Um pano cobria a maior parte do rosto, com exceção dos olhos. Por mais que ele quisesse se esconder, Sofia já o identificou nos primeiros segundos. Ele tirou o pano e revelou seu rosto por inteiro.
- Você não sabe o quanto estou feliz em ver você de novo. Precisamos conversar, mas você tem que me prometer que ninguém vai saber que estive aqui - disse Luís.
*****
Os olhos dos dois ainda estavam vermelhos depois do choro quando terminaram de pôr a mesa. Café, leite, pães e manteiga estavam sobre a toalha branca. A dupla não conseguiu conversar imediatamente ao se encontrarem, com as palavras de Sofia não conseguindo sair no turbilhão de emoções conflitantes. Felicidade por vê-lo de volta, raiva por ter partido daquela forma, tristeza por vê-lo tão magro, abatido e perturbado.
- Como você conseguiu voltar?
- Eu fugi - disse passando manteiga numa fatia de pão - Eu consegui escapar para Belém do Pará e então para a Inglaterra num navio que levava borracha da Amazônia. Fiquei refugiado lá por alguns meses, mas precisei voltar.
- Por que?
Luís ficou em silêncio por alguns segundos, como se pensasse na melhor forma de dizer algo absurdo.
- Lembra daquilo que aconteceu em 1902? Aquela noite...
- Eu sonhei com ela de novo. O Congo e os fantasmas.
- Então... Eu sei que aconteceram tantas coisas melhores e mais importantes entre nós desde então. Nem tive tempo para me desculpar sobre o motim. Acontece que eu descobri a origem de tudo aquilo.
Luís tirou uma folha de papel do bolso do sobretudo pendurado no mancebo, entregando-o para Sofia que desenrolou o objeto. Nele, havia o desenho de um edifício palaciano de enormes colunas, portas e janelas. Ofuscando o centro da estrutura, um sarcófago egípcio com um obelisco de cada lado. Abaixo, mais de uma dezena de linhas estavam escritas em idiomas diferentes, com o que parecia inglês, francês, russo e as duas línguas de Sofia, português e italiano. A frase era a mesma dos dois idiomas e provavelmente em todos os outros:
"Maldições vingarão o sono dos mortos".
- O que é isso?
- É o motivo pelo qual o nome do Gennaro estava naquele caderno. Você precisa prometer que não vai contar nada a ninguém.
Os dois tocaram as mãos um do outro e entrelaçaram seus dedos.
- Prometo.
- Bom... Isso é o folheto de uma organização secreta. É um grupo que atuava nas sombras infiltrado em instituições de vários países, principalmente museus. Eles se chamavam Caçadores de Maldições. O principal objetivo deles era transportar artefatos amaldiçoados para museus ao redor do mundo. Eles começaram a se organizar em 1902 e usaram o Museu Nacional aqui no Rio de Janeiro como um tipo de experimento. O tradutor do Stanley o enganou e fazia parte do Caçadores de Maldições. Um dos membros fundadores foi um diplomata congolês que falava várias línguas, mas foi morto a mando do Leopoldo. Provavelmente é o fantasma que falou conosco naquela noite. E outro é Gennaro Rubino.
- Mas como você sabe de tudo isso?
Apesar da pergunta, Sofia já imaginava qual seria a resposta.
- Eu fiz parte dos Caçadores de Maldições pouco tempo antes do grupo ser caçado esse ano. Eu fiz parte de uma operação mal sucedida no British Museum.
- Mas... por que?
- A frase, Sofia. "Maldições vingarão o sono dos mortos". Você lembra do que vimos nas visões do Congo, não lembra? Todos os lugares de onde vieram as relíquias foram invadidos e destruídos pelos reinos da Europa. Egito, Austrália, Camboja. Eu lembro até hoje do pescoço quebrado do aborígene. Os Caçadores queriam chamar a atenção do mundo através das maldições para as coisas horríveis que os europeus fizeram nas suas colônias.
Conforme Luís falava, todas as imagens voltavam à cabeça de Sofia. Ela imaginou como foi o fim do jovem asiático assassinado perto da estatueta.
- O rei Leopoldo II está até agora no trono da Bélgica e não foi punido por nada do que ele fez. Inclusive, ele é um dos suspeitos de ter ordenado o assassinato dos Caçadores e acabado com o grupo. Sobrou apenas eu, o Gennaro e um egípcio. Inclusive, esse último insiste até hoje que existiria a tumba amaldiçoada de um faraó chamado Tutankhamon em algum lugar no deserto. Seja como for, eu não estou mais seguro em lugar nenhum. Na Europa, posso ser morto. Aqui no Brasil, a polícia pode me encontrar. O que me resta é continuar fugindo e me escondendo. Eu só queria...
A imigrante percebeu as lágrimas começando a se formar nos olhos de Luís e não conseguiu conter as suas próprias.
- Eu só achei que você merecia saber sobre tudo isso e... queria passar alguns dias de volta com você.
Instintivamente, ambos levantaram para se abraçarem.
- Eu senti sua falta, Sofia.
- Eu também, Luís.
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1500 palavras
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