Parte IV - Música e sangue
O gato egípcio pulou da carroça em movimento e desapareceu na noite, mesmo com seus acessórios dourados. Os perseguidores agora não eram mais coisas incorpóreas, mas pessoas, ou suas almas atormentadas pelo mais profundo sofrimento e desejo de vingança. Luís contou mais de dez deles, todos cobertos de feridas, com restos de correntes ao redor de seus corpos e olhares de mentes perturbadas pela dor. Tudo o lembrava da escravidão. Ao mesmo tempo que sentia medo, também era tomado por uma profunda tristeza e algo que teria dificuldade de descrever, uma espécie de compaixão. Havia apenas uma diferença entre eles e os escravizados brasileiros: os fantasmas não tinham mãos.
No final da estrada, luzes agrupadas ao redor de uma construção monumental marcavam o fim da jornada. O museu estava próximo. Em alguns minutos, eles adentrariam o jardim. Precisavam despistar as almas, mas era quase impossível. Estavam cercados e sendo observados de todos os lados. Nas árvores, arbustos e postes, silhuetas passavam com velocidade e vociferavam com ódio. Repentinamente, os gritos em línguas não identificadas começaram a se confundir com um som profundo, rítmico, espiritual, algo que crescia à medida que se aproximavam do museu.
- Isso é uma música? - disse Sofia.
- É diferente de tudo o que eu já ouvi.
Os mortos ficavam cada vez menos aparentes e mais sorrateiros em seus esconderijos. Finalmente, as rodas da carroça e os cascos do cavalo adentraram o jardim. O gramado circundado pelas árvores da mata atlântica era cortado por estreitas estradas com postes de luz. Lá na frente, além das fileiras paralelas de palmeiras, estava ele, gigantesco, imponente, como um titã que tentava em vão se esconder em meio à natureza: o Museu Nacional.
Mesmo àquela hora da noite, ele permanecia poderoso à luz dos postes. Com três andares enigmáticos, guardava atrás das paredes brancas e grandes janelas retangulares um labirinto de segredos sobre a natureza e a espécie humana. Luís lembrou-se de ler que ele foi fundado em 1818, antes mesmo do Brasil ser um país independente e bem antes dele nascer, e sabia que a construção estaria lá até muitos anos após sua morte. A música continuava a tocar.
A carroça avançou na direção do museu e uma figura foi identificada nos portões. Era difícil ver seu rosto, mas percebia-se suas vestimentas formais e um chapéu. Ele proximou a face e o pulso, talvez conferindo um relógio. Luís conseguiu parar o cavalo entre as palmeiras.
- Talvez seja o superintendente - sussurrou Sofia - Ou não. Luís, você ainda vê aquelas pessoas?
- Eles pararam de aparecer. Alguém vai ter que descer e conferir o lugar enquanto o outro vigia as caixas. E o que descer precisa descobrir de onde vêm essa música.
Os dois se entreolharam por alguns segundos, num cabo de guerra silencioso para ver quem se voluntariava para qualquer uma das duas missões. Talvez com o objetivo de se desviar do assunto, Sofia expressou em palavras algo que Luís acabou de perceber.
- A música parou.
No instante em que a frase acabou de ser dita, a madeira da carroça rangeu e o lampião foi erguido do chão. O fator inesperado da aparição fez a dupla pular assustada para a direita, com os corações disparando. Aquelas assombrações pareciam realmente tomar forma aos poucos. Do lado deles, um homem com a pele coberta de pinturas corporais brancas e vermelhas segurava o lampião em pé na carroça. Gravemente ferido como quase todos os fantasmas, era difícil distinguir o que era tinta vermelha ou sangue. Sua cabeça pendia para a direita e, com um pouco mais de observação, era possível ver que seu pescoço fora quebrado.
O peso de uma pessoa em pé deveria desequilibrar a carroça, mas ela permaneceu estática. O homem apontou para a maior das caixas da carroça. Sob a luz do lampião, destacavam-se as palavras "Austrália" e "Didjeridu aborígene". Luís identificou imediatamente: aquela trombeta era o que produzia a música. Todos os objetos pertenciam a alguém muito antes de estarem naquelas caixas. Ou melhor, que o homem de pescoço quebrado usava para fazer música quando estava vivo. Os relinchos do cavalo romperam o silêncio, e depois dele, os gritos.
"Devolva!"
A multidão com as mãos cortadas cercou a carroça novamente. O cavalo recuava amedrontado, mas aquelas pessoas não pareciam interessadas nele. Eram principalmente homens adultos, mas também havia mulheres e crianças. O fato de uma morte tão brutal ter ocorrido com um ser inocente como uma criança era muito mais assustador que os próprios fantasmas.
- Vocês foram longe demais - disse aquele único que sabia falar português, subindo na carroça.
Luís tentou responder, mas nenhuma frase se formava em sua mente. Sofia rezava em italiano atrás dele, também paralisada. O fantasma se agachou e olhou nos olhos de Luís. As íris e pupilas deles pareciam desaparecer.
- Vocês não sabem o que nós sofremos.
O ar começou a faltar, a traquéia se fechando sem que nenhuma mão a pressionasse. O que Luís testemunhou em seguida foi algo difícil de apreender. Como se seus sentidos fossem capturados pelo homem morto, ele viu o jardim noturno se sobrepor a uma floresta tropical densa, mas não era a Amazônia nem a Mata Atlântica. Barulhos distantes de rugidos se misturaram com a visão de um enorme animal morto. Luís pensou já ter visto algo parecido em alguma reportagem, um tal de "elefante". Troncos cortados sangravam branco como as seringueiras do Brasil.
Rapidamente, as visões borradas ficavam cada vez mais brutais, lembrando Luís da escravidão. Homens, mulheres e crianças trabalhavam exaustivamente até cair, muitos coletando a seiva das árvores. Eram quase todos negros, mas alguns brancos no meio coordenavam a múltidão com gritos, xingamentos e agressões. As cenas mais brutais vieram logo em seguida: dezenas de negros tinham suas mãos decepadas por capatazes brancos em meio à floresta. Gritos, lágrimas e sangue. Mas além da crueldade da escravidão, algo mais era familiar a Luís. Um explorador europeu com um bigode volumoso escrevia algo em seu caderno numa canoa guiada por africanos. Era o inglês do porto. Os africanos se referiam a ele como "Stanley". A última cena distinguível foi um rosto num quadro, um homem com postura altiva, trajes de nobreza e uma grande barba abaixo de seu nariz pontudo. Luís sabia que já tinha visto ele em algum lugar. Ele conseguia entender o ódio daquelas pessoas de mãos decepadas. Lutando para respirar, perdido no ódio e nas memórias sangrentas daquele espírito violentado, Luís finalmente sabia o que dizer.
- Nós vamos devolver todos os artefatos. Se vocês nos deixarem viver.
A visão de Luís voltou brevemente para a realidade. De um lado, Sofia se contorcia, controlada pelos espíritos, e do outro, o falante de português indagava com os olhos. O aperto fantasmagórico no pescoço diminuiu.
- Por que deveríamos confiar em vocês? - ele olhou para Sofia - Ainda mais em uma membra da raça que destruiu a nossa terra, os brancos!
- Porque eu sei o que vocês passaram. Quer dizer, ainda tenho minhas mãos... Mas eu também sofri na mão dos carrascos, eu também trabalhei até cair de exaustão e vi minha família ser castigada.
- Por que vocês estavam no porto com Henry Morton Stanley? Aquele maldito e todo seu exército branco invadiram nossa terra, destruíram nossos reinos e o nosso povo, tudo a mando daquele verme do Leopoldo II para extrair borracha e marfim. Ele chamou o lugar que dominaram de Congo Belga como se algum dia tivesse pertencido a eles.
A mente de Luís foi transportada de novo para as selvas africanas. Com aqueles últimos nomes, os baús da memória se abriram. Leopoldo II. Era esse o rei da Bélgica que cometeu crimes hediondos no Congo e que Gennaro tentou assassinar. Mais do que isso, Luís conheceu um escravo traficado do Congo antes da abolição que conseguiu aprender português. Era dali que identificava aquele sotaque de alguma das línguas faladas no Congo.
- Não sabíamos quem ele era. Não sabemos o porque ele enviou esse tipo de objeto para o museu. Nós vamos devolver suas mãos, mas só se deixarem ela viver.
Os congoleses fantasmas olharam para Sofia e depois para as caixas. Luís conseguiu se levantar e abrir a que continha as mãos mumificadas e Sofia parou de se contorcer, puxando o ar e despertando do estado de transe. O homem coberto de pinturas encarou Luís enquanto a multidão de fantasmas permanecia estática. O garoto de cabeça raspada também apareceu para circundar a carroça e o gato egípcio apareceu para ronronar aos pés de Luís. Ele sabia que as mãos não eram as únicas coisas roubadas por ingleses, franceses ou belgas que precisavam ser devolvidas.
Luís abriu todas as caixas, oferecendo-as aos espíritos, e se afastou. Lágrimas pareceram se projetar dos olhos daquelas almas em sofrimento. Os segundos seguintes foram de tão difícil descrição quanto as visões do Congo Belga: os corpos de todas aquelas pessoas se dissolveram em uma névoa violenta que rumou na direção das relíquias. Sofia desviou dos ventos enquanto as caixas eram totalmente cobertas pela névoa, antes dela se dissipar. Todos os objetos desapareceram sem deixar rastros.
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