Parte I - Jornais e sombras
Guiando a carroça de um só cavalo, Luís vinha conversando a noite toda com uma imigrante italiana chamada Sofia. Ela disse ter chegado ainda muito jovem com sua família em Santos e se mudado para o Rio de Janeiro alguns meses antes, já em 1902, enquanto Luís contou que trabalhava como jornaleiro antes de transportar objetos ao acervo do Museu Nacional. Ninguém, nem mesmo o superinte, sabia o que havia os baús atrás deles além do fornecedor britânico dos objetos. Apesar do horário exigido por ele, a recompensa salarial era alta e tentadora para um morador dos cortiços e uma imigrante desempregada. Até a refeição foi oferecida.
- Eu gostava de ler as notícias nos jornais. Lembro de como era na época da Guerra de Canudos. Também li alguns contos do Machado de Assis.
- Tenho recebido notícias malucas da Europa - disse Sofia. Luís achava seu sotaque engraçado.
- Pior do que a Canudos? - brincou Luís. O lampião entre os dois iluminava a pele escura dele e a branca de Sofia, ambos de terno preto e chapéu. Havia poucos postes dissolvendo a escuridão e menos coisas vivas ainda. Eventualmente avistavam alguma pessoa, cachorro ou alguma sombra fantasmagórica espreitando na calçada.
-É grande a concorrência - respondeu rindo - Bem, um velho amigo da minha família, o Gennaro, foi preso pela segunda vez. Ele tentou assassinar o rei da Bélgica.
- O que?!
- Acho que o rei cometeu alguns crimes na África. Gennaro disse que mataria qualquer rei, porque todos são tiranos que trazem miséria para o povo.
- Não consigo discordar. Acho que nunca falei muito sobre como era a escravidão, certo? Eu cresci ouvindo o grito dos mais velhos, com medo de desobedecer os senhores. Dormimos no chão, trabalhamos até cair de cansaço. E quando começaram os castigos físicos...
Ele parou de falar por alguns segundos para segurar as lágrimas.
- Só queria dizer que eu não teria problema nenhum, depois de tudo o que eu sofri, em matar o meu algoz. Eu tinha doze anos quando aconteceu a abolição.
- Isso é horrível. Sinto muito.
Alguns minutos se passaram apenas com o barulho dos cascos do cavalo antes que Sofia quebrasse a tensão.
- E se nós... abríssemos as caixas para ver o que tem nelas?
- Não podemos danificar os objetos.
- Vamos só dar uma olhada e devolver.
Luís pensou por alguns segundos, mas acabou concordando, movido pela curiosidade. Continuou guiando o cavalo enquanto a italiana abria as fechaduras.
- A estátua de um gato - listou Sofia - Um homenzinho de ouro, algum tipo de trombeta de barro colorida e...
Sofia gritou algo em italiano, horrorizada.
- O que houve? - perguntou Luís preocupado. Sofia aproximou o baú dele e fez seus intestinos se revirarem. O baú estava cheio de mãos humanas, retorcidas e secas, como se agoniazassem - Como...
Repentinamente, a carroça se sacodiu e o cavalo ficou paralisado. Na calçada a frente, sem nenhum poste para esclarecer a visão, silhuetas humanoides com olhos vazios apareceram nas sombras. Estavam vindo na direção da carroça.
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