Inspirações na história
Olá, leitores. Este capítulo não faz parte da história de "1902". Como vocês talvez tenham visto, o conto não foi classificado entre os ganhadores e nem entre as menções honrosas, o que não é um problema (inclusive, parabéns a todos que participaram da Copa das Décadas, desejo muita sorte a vocês como escritores). Não tenho certeza se vou manter o conto publicado, mas enquanto ele ainda está aqui, decidi escrever um capítulo extra com as referências e fatos históricos que me baseei para escrever a história de 1902. É claro que o conto não está 100% de acordo com a realidade da época, até porque, se estivesse, os português dos personagens não seria tão parecido com o de hoje e Luís e Sofia provavelmente seriam analfabetos assim como a maioria da população da época dentro e fora do Brasil, mas como eu gosto muito de história, queria aproveitar o tema do concurso para colocar fatos interessantes da época na escrita.
ESCRAVIDÃO E ABOLIÇÃO
O Brasil foi o último país a abolir a escravidão nas Américas e o que mais recebeu pessoas escravizadas da África na história. A escravidão no nosso território começou em 1530 e só foi abolida em 1888, sendo mais de três séculos de sofrimento e morte para os africanos e seus descendentes. Mesmo quando a Lei Áurea proibiu essa prática hedionda no nosso território, os problemas dos afro-brasileiros não acabaram, pois o governo do então Império e depois da República não se preocuparam em oferecer educação ou infra-estrutura para as milhões de pessoas que foram libertas, deixando os alforriados como Luís e seus descendentes na pobreza.
IMIGRAÇÃO ITALIANA NO BRASIL
Sofia não foi a única italiana a vir para o Brasil nessa época. Entre 1870 e 1920, 1,4 milhões de italianos vieram para o nosso país. Apesar do conto se passar no Rio de Janeiro, o maior foco da imigração foi São Paulo. Apesar de a imigração ter tido várias contribuições culturais, o motivo dela foi bem sombrio. Acontece que o governo brasileiro estava sendo influenciado pelos ideais eugenistas e pelo racismo científico, que foram pseudociências muito influentes entre o final do Século XIX e começo do XX e defendiam que determinados grupos humanos eram inferiores e que deveriam ser eliminados pela "melhoria da espécie", principalmente pessoas com deficiência e raças não brancas. Hoje sabemos que a Eugenia não tem nenhuma comprovação científica e é puramente preconceito, mas o Brasil tentou branquear sua população através da miscigenação dos negros e indígenas com os imigrantes europeus, não só da Itália, mas de Portugal, Alemanha e outros países.
GUERRA DE CANUDOS
A guerra que Luís fala no primeiro capítulo foi uma campanha militar do governo brasileiro de 1896 a 1897 contra uma comunidade religiosa apelidada de Canudos, no sertão da Bahia. A cidade era liderada por Antônio Vicente Mendes Maciel, ou Antônio Conselheiro, um líder religioso que se revoltou contra a então República e que atraiu muitos camponeses e cidadãos pobres do Nordeste por seus atos de caridade e por ser considerado um messias. O vilarejo de Canudos derrotou quatro ataques do exército brasileiro, até ser completamente destruído no quinto, em um dos maiores massacres já cometidos na nossa história.
CORTIÇOS
Os cortiços foram muito comuns nos centros urbanos brasileiros como o Rio de Janeiro no final do Século XIX e começo do XX. Eram habitações de baixa qualidade que reuniam dezenas de pessoas, principalmente imigrantes do campo e ex-escravizados e tinham condições de vida precárias e aluguéis abusivos. Ainda existem alguns cortiços, mas a maioria foi esvaziada ou demolida pelas políticas higienistas que forçaram os moradores pobres dos centros urbanos a se mudarem para as favelas.
EGIPTOMANIA
Depois que Napoleão invadiu o Egito e começou uma série de escavações arqueológicas, uma área de estudo chamada egiptologia começou a se desenvolver, e se concretizou quando o linguista Jean-François Champollion conseguiu decifrar os hieróglifos usando um artefato chamado Pedra de Roseta. A partir da metade do Século XIX, quando a Inglaterra começou a influenciar cada vez mais a política egípcia até colonizar completamente o país em 1882 e só ser expulsa em 1952 (antes disso, o Egito estava sob o domínio do Império Otomano), um fenômeno chamado egiptomania ficou cada vez mais forte na Europa. Era uma obsessão que os europeus, principalmente britânicos, tinham com o Egito Antigo, levando-os a negociar e até roubar diversos artefatos do país, de múmias a estátuas e até obeliscos gigantescos.
Sabe aquela piada de que as pirâmides só continuam no Egito porque elas são grandes demais para levar para o Museu Britânico? Pois é, isso não é nem um pouco exagerado. A Agulha de Cleópatra, um obelisco que hoje está em Londres (e que não foi feito durante a época de Cleópatra) era tão grande e pesada que um navio teve que ser construído ao redor dela para ser puxado por outro navio até a Inglaterra. A elite européia também era obcecada com múmias e tinha o costume de fazer festas para abrir sarcófagos roubados do Egito. E não era só na Inglaterra e na França que a egiptomania ganhou força. Centenas de artefatos foram levados para a Rússia, Alemanha, Estados Unidos e até aqui no Brasil. Sim, a lenda da "múmia particular" de Dom Pedro II citada no terceiro capítulo é real, embora ninguém saiba se é só uma lenda ou se o imperador realmente tinha esses hábitos estranhos.
Felizmente, hoje em dia os arqueólogos que estudam o Egito tem muito mais respeito pela cultura e pelo país que os dessa época, mas o debate sobre se os artefatos do Egito Antigo que estão em museus da Europa deveriam voltar ou não para o seu país de origem ainda é muito forte.
INDOCHINA FRANCESA
Para quem se perguntou o que era o Camboja que foi citado no conto, ele é um país localizado no Sudeste Asiático numa região chamada Indochina e que tem o Budismo como principal religião. Ele fazia parte da Indochina Francesa, uma região do Império Colonial Francês que hoje corresponde também aos países Camboja, Laos e Vietnã. Ela foi a colônia mais rica e populosa da França, mas também foi uma das que mais sofreu com a brutalidade da colonização francesa. Reinos riquíssimos que haviam na região foram dominados e empobrecidos, e a resistência local foi duramente massacrada.
Um detalhe que provavelmente não ficou muito claro no conto é que a estátua dourada do Camboja que aparece no conto é uma estátua de Buda e que o fantasma com um buraco de tiro na cabeça era um jovem budista em posição de meditação.
MUSEU NACIONAL
O Museu Nacional no Rio de Janeiro foi fundada ainda em 1818, quatro anos antes da Independência. Ele é vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ao longo da história, abrigou um acervo de 20 milhões de itens das mais diversas áreas do conhecimento humano, incluindo biologia, geologia, arqueologia, paleontologia e muitas outras. É um dos maiores museus de história natural das américas. Infelizmente, em 20 de setembro de 2018, o museu sofreu um incêndio terrível que destruiu a maior parte de seu acervo, sendo uma das maiores tragédias recentes do Brasil.
ABORÍGENES AUSTRALIANOS
"Aborígene" é o nome genérico dos povos indígenas da Austrália. Os arqueólogos teorizam que eles chegaram na enorme ilha há 45 mil anos atrás e que, quando os europeus chegaram, haviam 750 mil indivíduos divididos em 500 grupos étnicos com 300 dialetos diferentes. A cultura aborígene é riquíssima e tem como elementos mais famosos são as pinturas corporais, a característica arte aborígene e o didjeridu, um enorme instrumento musical de sopro usado para as músicas ritualísticas. Uma outra criação que muitos não sabem que é aborígene é o bumerangue. Infelizmente, com a colonização inglesa no Século XIX, os povos indígenas da austrália sofreram um genocídio brutal, tanto por causa das doenças européias que seus sistemas imunológicos não estavam acostumados quanto pelos próprios britânicos que assassinaram milhares de nativos. Hoje, os aborígenes formam 1% da população australiana e são fortemente discriminados no país.
CONGO BELGA E LEOPOLDO II
Leopoldo II foi rei da Bélgica de 1865 até sua morte em 1909 e é considerado por muitos como o maior genocida de todos os tempos. Porém, seus atos monstruosos não ocorreram no seu país, a Bélgica, e sim na África, mais precisamente na região que hoje é a República Democrática do Congo.
Diferente da América que já estava sendo invadida e colonizada ainda no Século XVI, a África, Ásia e Oceania tiveram sua ocupação mais relevante no Século XIX (apesar de já haverem lugares que foram colonizados por europeus antes como as Filipinas e a atual África do Sul). Os impérios donos de colônias como Inglaterra, França e Holanda tinham mais poder econômico e político na Europa, já que roubavam os recursos dos países dominados. Então, Leopoldo tinha o plano de conseguir uma colônia para a Bélgica e torná-la uma potência na Europa, não importando quantas pessoas precisassem morrer para isso.
Leopoldo II era amigo de um explorador britânico chamado Henry Morton Stanley, e pediu a ele que o ajudasse na ocupação de um território no centro da África coberto por florestas tropicais e até então "inexplorado" (pelo menos para os europeus, já que a região era lar para centenas povos e reinos africanos nativos muito antes da chegada dos colonizadores). Inicialmente, o Estado Livre do Congo, como era chamado na época, não era tecnicamente uma colônia belga, e sim um território privado de Leopoldo II aberto para a exploração de empresas. Era como se o rei tivesse uma fazenda com 70 vezes o tamanho do seu próprio país.
Os principais produtos explorados no Congo eram o marfim e a borracha, tudo com mão de obra escrava dos congoleses que viviam lá. Para trabalharem no enriquecimento da Bélgica, os nativos eram submetidos aos piores tipos de punições e torturas, além de 10 milhões de mortos na colonização do Congo. Uma das punições mais famosas e brutais para os nativos que não alcançassem as cotas abusivas de extração de borracha ou marfim era decepar as mãos e pés dos trabalhadores que eram dadas como troféus a seus carrascos. Às vezes, ao invés de cortarem as mãos dos escravizados, cortavam a de suas crianças.
Em 15 de novembro de 1902, Leopoldo II sofreu uma tentativa de assassinato enquanto andava de carruagem pelas ruas de Bruxelas. O anarquista italiano Gennaro Rubino (sim, ele realmente existiu, mas obviamente não fazia parte da tal organização secreta do quinto capítulo que é totalmente ficcional) desferiu três tiros contra o rei, mas não acertou nenhum, e Leopoldo II infelizmente sobreviveu. Em 1908, o Congo se tornou oficialmente colônia da Bélgica, além de Ruanda e Burundi. Só em 1960, 51 anos após a morte do rei Leopoldo II, a República Democrática do Congo se tornou independente, graças ao militante político e presidente Patrice Lumumba, que foi assassinado um ano depois.
REVOLTA DA VACINA
A revolta onde Luís desapareceu ocorreu no Rio de Janeiro entre 10 e 16 de novembro de 1904. Hoje em dia, com o crescimento do movimento anti-vacina e outras pseudociências que colocaram vidas em risco durante a pandemia de Covid-19, é difícil não julgar a Revolta da Vacina como parte do mesmo fenômeno, mas não devemos olhar para o passado com os olhos de hoje. Primeiramente, a vacina naquela época era bem menos difundida e conhecida do que hoje em dia e a população tinha medo que a inoculação dessa substância pudesse causar efeitos colaterais mortais, algo totalmente diferente dos dias atuais em que a vacina é muito mais segura e as campanhas, muito mais eficientes. Quando o Rio de Janeiro estabeleceu a vacinação obrigatória e forçada, a população tomada pelo medo e desinformação se revoltou. Porém, a vacina não era o único motivo da revolta. Foi mais como uma "gota d'água". Isso porque a população pobre não só no Rio de Janeiro, mas quase no país todo, estava sendo vítima das políticas higienistas que destruíam os cortiços, forçavam os moradores a irem para as favelas, prendiam as pessoas por crime de "vadiagem" (que era literalmente estar parado sem fazer nada) e por manifestações da cultura negra brasileira como a capoeira e o samba, entre outras políticas preconceituosas e anti-povo. A vacinação obrigatória, que era provavelmente a mais branda dessas políticas, foi só o estopim de um barril de pólvora que já estava pronto para explodir.
Sobre o Prata Preta, ele realmente existiu e foi um dos principais líderes da Revolta da Vacina, além de lutador de capoeira. Alguns bairros do Rio de Janeiro realmente foram bombardeados e boa parte dos revoltosos foram punidos com trabalho forçado nos seringais da Amazônia como Luís. Dito isso, não seja como os cariocas do começo do Século XX e tome vacina.
Enfim, acho que é isso. Obrigado a todos que leram a história.
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