Capítulo 02 - 1467 Milhas

Summer

Eu caminhei pelo corredor do vagão de primeira classe do trem que me levaria a Budapeste a procura de uma poltrona vaga, suspirando ao encontrar um lugar.

O destino está mesmo brincando comigo!

— Esse é o único assento vago — eu murmurei para Jamie, que ocupava a poltrona do corredor.

Ele ergueu o olhar em minha direção, respirando fundo antes de se levantar para me dar passagem.

Eu me estiquei para guardar minha mala no compartimento acima da poltrona, reservado às bagagens, mas ele foi mais rápido em apanhá-la e guardá-la para mim, apesar de se manter no mais absoluto silêncio.

Eu me acomodei, observando a plataforma movimentada do lado de fora. Logo o trem partiria e deixaríamos aquela cidade para trás. Eu olhei para Jamie de soslaio, e ele parecia entretido com o próprio celular e fones de ouvido, completamente satisfeito em me ignorar. Ótimo, mais de doze horas de viagem ao lado dele e ele vai me ignorar! 

Para a minha felicidade, o trem começou a se mover. Quanto antes partíssemos, antes chegaríamos a Budapeste. Eu encarei bem os primeiros minutos da viagem, mas após quase meia hora no mais absoluto silêncio, aquele clima estava prestes a me enlouquecer.

— Você acha que vamos chegar a tempo? — eu chamei sua atenção.

— O que disse? — ele ergueu o olhar em minha direção, retirando um dos fones.

— Você acha que chegaremos a tempo? — não me importei em repetir.

— Se conseguirmos pegar todos os trens, e não tiver nenhum atraso, chegaremos a Londres no fim da manhã do dia 31 — ele explicou.

Não pude conter um suspiro de alívio diante de seu comentário, então peguei meu celular e mandei uma mensagem para minha mãe.

"Acabei presa por conta do mau tempo, mas estou indo de trem. Chego no dia 31" 

Não demorou muito para a resposta chegar.

" Tem certeza que vai conseguir? Eu posso explicar para ela... De novo."

"Eu já estou à caminho" 

Eu garanti antes de bloquear o aparelho, sentindo o olhar de Jamie sobre mim.

Eu abri uma das barras de chocolate que havia comprado na estação, estendendo outra em direção a ele.

— Quer uma? — eu questionei.

— Não precisa — ele retirou novamente o fone.

Eu permaneci com a barra estendida a ele, até que ele aceitasse de forma relutante.

— Oferta de paz — eu expliquei — vamos ficar um bom tempo juntos, então talvez devêssemos tentar recomeçar. Sabe, sem a história de sequestro e tráfico humano.

Ele respirou fundo, contendo um meio sorriso antes de deixar o fone de lado.

— Talvez seja melhor parar de falar em sequestro e tráfico humano, você vai acabar me fazendo ser preso — ele pediu me fazendo rir.

— Apenas se você for culpado — eu zombei recebendo um olhar curioso em troca.

— Você parece ter mais experiência no assunto que eu — ele devolveu — talvez eu deva me preocupar em acordar sem algum órgão. Um rim talvez? 

— Não beba nada do que eu oferecer — eu pisquei para ele.

Nós voltamos a ficar em silêncio por alguns minutos, me sentindo satisfeita por resolver aquela situação. Eu me concentrei em ler o roteiro da audição que faria após o ano novo para um papel no novo filme de John Davis, um dos grandes diretores de Hollywood. 

Aquela era minha grande chance e eu estava ansiosa. Eu estava cansada de conseguir papéis secundários em filmes de terror trash que não faziam sentido algum. 

Aparentemente os diretores achavam que eu era ótima para morrer de diversas maneiras bizarras diante das câmeras.

— Você está falando sozinha — Jamie chamou minha atenção.

Eu ergui meu olhar em sua direção, encontrando o homem me encarando com uma expressão curiosa.

— Desculpe, estou me preparando para uma audição — eu expliquei.

Ele acenou em entendimento, decidindo me deixar em paz, voltando a atenção para  seu celular. Dei de ombros me concentrando mais uma vez no roteiro, tentando não verbalizar qualquer frase enquanto lia. Mas eu não conseguia mais me prender ao roteiro, eu já estava cansada daquele silêncio, e decidi guardar meu celular e observar o homem ao meu lado. 

Jamie parecia concentrado no que quer que fosse, mas quando ele olhou em minha direção, eu vi minha oportunidade de puxar assunto.

— Por que você não se sentou aqui? — eu comecei, decidindo conhecer um pouco melhor o homem com quem eu passaria o resto daquela viagem.

— Como assim? 

— A maioria das pessoas prefere o assento da janela, mas você escolheu o do corredor — eu expliquei.

— Eu sinto vertigem se fico no assento da janela — ele deu de ombros.

— Sério? Então você nunca se senta aqui? 

— Não quando se trata de trens de alta velocidade — ele me ofereceu um sorriso sem graça.

— eu nunca imaginaria — sorri abertamente para retribuir.

Nós dois voltamos a ficar em silêncio, minha mente buscava uma forma de continuar falando com ele, e não demorou para que pensasse em um assunto.

— Você parece ter experiência em viagens de trem.

— Nunca fiz uma viagem tão longa, mas não é a minha primeira vez — ele garantiu.

— Ótimo, você pode me guiar então. Sou completamente virgem no assunto — eu zombei.

Ele não pôde evitar de sorrir diante de meu comentário.

— Mesmo? Você não costuma usar trem para sair de Londres? 

Eu franzi o cenho antes de compreender o que ele quis dizer, tratando de logo esclarecer a situação.

— Não, eu não vivo em Londres — eu neguei.

— Oh, desculpe, você não parece morar na Turquia, então eu pensei..  — ele me deu um sorriso sem graça.

— Eu também não moro em Istambul. Moro na Califórnia — eu expliquei.

— Escolheu uma época interessante para fazer um tour pela Europa.

Eu me virei em sua direção, me acomodando lateralmente o máximo que o pouco espaço da poltrona permitia, começando a me sentir sonolenta. Se aquela era a primeira classe nem quero ver a econômica.

— Eu estou visitando meus pais — expliquei — meu pai vive na Turquia e minha mãe na Escócia.

— Então na verdade você vai para a Escócia — ele parecia genuinamente interessado, e por um momento senti aquela atração da primeira vez que o vi retornar com força.

— Sim, Londres era minha conexão — eu expliquei — minha mãe está preparando uma festa de ano novo e eu prometi que estaria lá, eu passei o natal com meu pai, então…

Eu dei de ombros sem saber exatamente o que acrescentar.

— Sei como funciona com pais divorciados. Eu passei parte da minha adolescência indo de uma casa para outra com os dois discutindo o tempo todo — ele deu um sorriso sem graça.

— Isso não parece bom — fiz uma pequena careta.

— Fica ainda pior se considerar que os dois eram quase vizinhos… Minha mãe se irritava cada vez que meu pai arrumava uma namorada nova, e meu pai pensava que podia controlar cada passo da minha mãe — ele franziu o cenho, parecendo constrangido por ter revelado algo daquela natureza a uma completa estranha.

— Meus pais se davam bem. Eles conversavam quando era algo relacionado a mim, e depois estavam mais do que satisfeitos em fingir que o outro não existia — eu decidi retribuir sua confiança, o fazendo sorrir diante de minha revelação — Provavelmente ter quase um continente inteiro entre os dois ajudou nessa parte

— Quantos anos você tinha? — ele perguntou.

— Nove. Eu morei com minha mãe na Escócia e o visitava algumas vezes por ano — eu narrei — não foi ruim.

— Nem sempre tem que ser — ele voltou a olhar o celular que vibrou em sua mão.

— Estou atrapalhando você?

— Não, é só... Deixa pra lá.

Ele guardou o aparelho em seguida, respirando fundo. Aquele parecia ser o fim de nossa conversa, eu observei a noite escura do lado de fora, com a neve que continuava a cair. Já eram quase onze da noite, nós passaríamos a madrugada inteira dentro desse trem, e aquela poltrona não era tão confortável para dormir. Como eu queria um avião agora.

— Você disse que estava decorando um roteiro, é atriz? — Jamie quebrou o silêncio, chamando minha atenção.

— Sim, eu me formei em cinema e me mudei para Los Angeles para tentar a sorte — eu narrei minha trajetória para o homem, que voltou a receber alguma notificação no celular, a ignorando.

— E eu já te vi em algum filme? — ele perguntou.

Aquela pergunta me fez rir. Se ele já tivesse assistido algum filme que eu participei, certamente teria um péssimo gosto para filmes.

— Eu duvido muito, eu geralmente só consigo papéis em filmes trash e convites para o cinema adulto — eu zombei.

Jamie me encarou com uma sobrancelha erguida, parecendo se esforçar para disfarçar algum sentimento.

— Por que você está me olhando assim? 

— Assim como? 

— Como se... Ah meu Deus, você pensa... — elevei a voz ao compreender o que se passava em sua mente quando ele desviou o olhar e voltou a mexer no celular — eu não sou uma atriz porno!

Aquela frase fez com que várias pessoas dentro do vagão olhassem em nossa direção, me mortificando. Eu não acredito que ele pensou isso!

— Eu não te julgo se você for — ele me ofereceu um meio sorriso, fazendo meu sangue ferver.

— Se eu for? Eu recusei os convites! — eu esbravejei, me esforçando para manter o tom baixo.

— Tudo bem — ele prosseguiu sem me dar a devida atenção, parecendo achar graça de minha irritação.

— Tudo bem? Eu não acredito que você pensou isso, eu sou uma atriz formada, não me rebaixaria a isso — eu esmurrei seu braço antes de voltar a me sentar reta na poltrona. 

Eu poderia jogá-lo para fora daquele trem naquele exato momento. Como ele pode pensar isso? 

— Uma atriz séria que participou de "A máquina de passar roupas assassina"? — ele continuou me provocando.

Eu o encarei surpresa, e estava prestes a perguntar como ele sabia aquilo quando vi o celular em sua mão.

— Você me pesquisou no Google!? Qual é o problema com você?

— Comigo?  Você pelo menos avalia suas frases mentalmente antes de falar? — ele devolveu.

— Eu não acredito que eu estava te achando um cara legal! — eu murmurei inconformada.

— Diz a pessoa que me acusou de ser um sequestrador logo de cara — ele me encarou.

— Eu já pedi desculpas, tem como você esquecer isso? 

— E por que você está se importando tanto com essa coisa de atriz pornô? Eu já disse que não me importo se você for — ele voltou a mexer no celular, não dedicando mais sua total atenção a mim.

— Eu me importo com a verdade, e a verdade é que não sou uma atriz pornô — eu me esforcei para manter a voz baixa — e quer saber, é melhor a gente não se falar mais. Eu vou dormir e esquecer que estou viajando com um completo ignorante. 

— Espera, você vai mesmo se ofender por causa disso? — ele voltou a erguer o olhar em minha direção.

Eu me limitei a colocar o fone de ouvido e aumentar a música ao máximo, decidindo ignorá-lo de uma vez. Ainda faltava muito tempo até Budapeste, mas com sorte, eu dormiria a maior parte.

Com esse pensamento, fechei meus olhos, tentando permitir que o sono me levasse de uma vez.

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