⁶²|Eu desejo...

    Alguém está tocando minha campainha.

     Verifico meu relógio. 20h21. Com certeza é um engano. Não há porque qualquer pessoa vir ao meu apartamento, principalmente depois que me mudei e apenas minha família sabe o meu novo endereço.

     O que significa…

— Sabemos que você está aí, idiota — Anthony grita do outro lado da porta.

— Abra logo a droga da porta, Khalil — Eros completa.

     Fecho os olhos, suspirando. É claro que, logo hoje, eles não me deixariam em paz. Mas eu tinha esperanças do contrário. Eles provavelmente me deixaram na minha durante todo o dia de hoje para me dar essa falsa esperança que eu tinha me livrado… disso.

     Quando abro os olhos, encontro Morgan me encarando. Ela está sentada na poltrona, como uma lady, olhando para mim com seus olhos verdes claros julgadores.

— Você poderia fazer alguma coisa além de ficar aí me encarando — resmungo, largando meu notebook em cima da mesa de centro.

     Morgan não responde.

       Suspiro novamente e me levanto do sofá para ir abrir a porta. Eu deveria deixar os dois lá fora, mas eles não desistiram fácil e isso com certeza geraria reclamação dos vizinhos. Já foi difícil convencer o síndico a me alugar o apartamento, não posso arriscar ser mandado embora. Ainda não.

    Ao abrir a porta, encontro Tom e Jerry.

     Anthony sorri de um jeito irritante e sem esperar um convite, adentra o apartamento, me dando um tapa no ombro ao passar.

— Feliz aniversário, otário — diz.

     Ignoro suas palavras.

    Eros entra em seguida, me olhando de cima abaixo.

— Você vai assim? — pergunta. Enquanto ele está usando um suéter azul escuro e calça jeans, e Anthony calça de alfaiataria e camisa social, eu estou muito confortável na minha calça moletom e camiseta.

     Anthony me interrompe antes que eu possa responder.

— Desde quando você tem uma gata? — Após fechar a porta, encontro meu irmão com Morgan no colo. Ela parece gostar bem mais dele do que de mim, considerando todos os arranhões nos meus antebraços. — De quem ele te roubou, garota? — Anthony pergunta a Morgan. — Pisque duas vezes se você foi sequestrada.

— Você não deveria estar na Alemanha ou algo assim? — pergunto ao meu irmão. Não vejo sentido em fazer uma viagem pelo mundo para “se encontrar” se ele fica voltando de tempos em tempos.

— Fico tocado com o quanto você sentiu minha falta, irmão.

— Anthony veio para o jantar. Aquele que você está atrasado — Eros explica.

— Estou trabalhando essa noite. — Ignorando os dois, sento de volta no sofá e pego meu notebook.

— É seu aniversário de trinta e sete anos — meu irmão mais novo me lembra.

     Grande merda, penso. Mas estou cansado de falar, então apenas dou de ombros. Não é mesmo muito importante.

— A mãe fez lasanha à bolonhesa — Eros está dizendo ao sentar na poltrona, como se a menção a minha comida preferida fosse me fazer mudar de ideia. — E o pai fez aquele bolo horrível de maçã com canela.

      Não é horrível.

      É o meu bolo preferido, apesar dos meus irmãos odiarem. Carlota faz em todos os meus aniversários. Até aqueles que eu não compareci.

     Reprimindo um suspiro enquanto me esforço para ignorar os intrusos no meu apartamento, tento prestar atenção nas palavras na tela do meu notebook. Eu sei o que vou encontrar se olhar para eles. Não suporto mais seus olhares de preocupação, como se eu fosse uma bomba prestes a explodir. Entendo porque pensam assim, já que passei os últimos meses ignorando a todos e focando apenas no meu trabalho, mas é insuportável a falta de confiança deles em mim. Não vou ter uma recaída. Me matarei no dia em que eu deixar o álcool me vencer outra vez. Não é no álcool que estou me afogando, mas na dor, nas lembranças… na saudade. As drogas não são nada perto da devastação dessas três coisas.

— Khalil.

     Ergo o rosto e lá está o que eu temia no olhar de Eros. Então a culpa se junta às outras coisas, apenas mais uma para eu lidar.

— Venha com a gente. Nossos pais estão esperando por você. Dean e Freya também. Não os decepcione. — Eros está jogando baixo e sabe disso. Ele está apelando para a minha culpa, esperando que seja o suficiente para eu ceder. Talvez ele esteja conseguindo.

— Todos nós sentimos falta dela — Anthony diz baixinho.

     Tensiono a mandíbula, mas não falo nada. Eu sei que todos sentem falta de Kathryn, mas ninguém sente mais do que eu. E, sim, eu sei que é egoísta definir isso, mas não me importo. Sinto tanta falta dela que me mudei para esse apartamento, como se morar aqui fosse diminuir a dor em meu peito. Não adiantou muito. Até adotei uma gata porque sabia que se Kathryn tivesse encontrado Morgan nas condições que encontrei (machucada nos fundos do prédio, com marcas de mordida), ela teria cuidado dela. Eu assisto suas séries preferidas  e vou a lugares que me lembram ela. É sádico, mas ainda não estou pronto para dizer adeus. Mesmo que ela já tenha ido embora, eu não consigo, de fato, deixá-la ir. Talvez nunca conseguirei.

     Mas meus irmãos não entendem. Ninguém entende. Eles nem sabem, de fato, o que aconteceu. Apenas que eu fiz merda e foi algo tão grande que Kathryn precisou ir embora da cidade. Não posso contar a eles que agi como um psicopata por anos e ela finalmente descobriu. Acho que nem minha família, que já perdoou muita merda minha, seria capaz de me perdoar dessa vez.

    Kathryn também não contou nada, pelo visto. Meu lado patético vê isso como uma prova de amor, pois ela também sabe que, se ela contasse a eles a verdade por trás do nosso término, minha família provavelmente me odiaria para sempre.

— Trinta minutos — digo a ninguém em especial. — Ficarei por trinta minutos.

      Eros anue.

— Obrigado… E feliz aniversário.




      — Não é meio bizarro ele estar morando no antigo apartamento dela? Quer dizer, ele nem trocou os móveis. Devemos nos preocupar? — Anthony está sussurrando – ou pelo menos acha que está – com Eros quando termino de me aprontar.

— Vamos dar um tempo a ele. Ainda é muito… recente — Eros argumenta.

— Faz cinco meses. Se você está tentando superar sua ex-namorada, você não se muda para o antigo apartamento dela e adota um gato que por acaso tem o nome de uma personagem da série preferida dela.

      Arqueio a sobrancelha mesmo que nenhum dos dois tenha ouvido meus passos ainda. Então Anthony já assistiu C.S.I?

    Para a sorte dos meus irmãos, não me importo com suas críticas sobre minha nova moradia. Me mudei para cá há três meses quando descobri que estava para alugar. O proprietário não foi muito com a minha cara por causa das tatuagens, mas adiantei cinco meses de aluguel, o que o convenceu rapidamente que eu seria um bom inquilino.

      Anthony está certo sobre outra coisa também: não redecorei o lugar. O proprietário, sem saber quem eu era, informou que a antiga inquilina se mudou às pressas e deixou praticamente todos os móveis dela e que eu podia ficar com eles se quisesse. Eu aceitei, é claro, então tudo está praticamente igual como ela deixou. É ainda mais doloroso, pois parece que ela foi fazer uma viagem e logo estará de volta. Talvez – muito provavelmente – seja por isso que eu não mudei nada, porque me recuso a acreditar que ela se foi para sempre. Que eu a perdi para sempre.

     Passo pela sala, deixando bem claro para Tom e Jerry que os estou escutando. Eles ficam em silêncio enquanto ponho um pouco mais de ração para Morgan. Assim que ela ouve o barulho da sua comida, vem correndo.

— Interesseira — murmuro para ela, mas entendo a mão para o seu corpo peludo. Morgan fica toda eriçada por um momento e eu até acho que vai me morder ou me arranhar como das outras vezes, mas ela me surpreende ao relaxar e deixar eu coçar sua orelha.

      Um sorriso quase se forma em meu rosto antes de eu me endireitar e ir encontrar meus irmãos na sala. Ignoro suas expressões de surpresa ao pegar minhas chaves.

— Vamos logo com isso.

☠️

      Por incrível que pareça, foi um jantar tranquilo. Claro, tirando a parte que Freya insistiu em cantar parabéns mesmo quando eu disse que não queria e eu fui obrigado a aceitar todos cantando “Happy Birthday To You” porque não sou tão babaca a ponto de impedir uma garotinha de sete anos de gritar a todos pulmões uma música idiota de aniversário. Ela também fez Carlota colocar uma vela no bolo para podermos apagar. Sim, no plural, porque ela também pediu para apagar a vela comigo. Todos estavam rindo de mim porque estava claro a minha impaciência e vontade de colocar Freya em um orfanato. Ou mandá-la para a Ásia. O que quer que fosse mais rápido.

— Tio Khalil, você precisa fazer um pedido primeiro! — Freya avisa, de pé em cima de uma cadeira porque ela tem a altura de um gnomo.

— Que o meu próximo aniversário eu possa passar no silêncio da minha casa — peço.

— Não vale! Você não pode contar o seu pedido, senão ele não se realiza — Freya demanda.

     Lanço um olhar a Eros. Como ele foi capaz de reproduzir o ser humano mais irritante da face da Terra?

     O desgraçado apenas sorri, achando graça da tortura psicológica que eu estou sofrendo.

— Ok — resmungo a contragosto. Fico calado por alguns segundos, fingindo estar pensando em alguma coisa. — Pronto.

— Você precisa fechar os olhos. — Freya ignora meu olhar e busca apoio na plateia reunida. — Certo, mamãe?

— Isso mesmo, querida. — Genevieve arranja tempo para dizer entre uma gargalhada e outra. — Você está ensinando direitinho.

     Freya sorri orgulhosa e se volta para mim, seus olhos azuis esperançosos. Ela parece tão animada. Eu poderia esbravejar que estou cansado disso e que não me importo com a droga do pedido, mas… Freya está na fase de construir memórias. Não quero ser um vilão da sua infância. Eu sei como é ruim ser uma criança que é ignorada ou maltratada por um adulto.

      Suspiro dramaticamente e fecho os olhos.

— Agora pensa em uma coisa que você quer muito. Mas tipo, muito, muito, muito mesmo — Minha sobrinha instrui ao meu lado. — Mas pensa com carinho, tá? Tem que vir do fundo do seu coração.

     Suspiro novamente, mas dessa vez fico preso nas palavras de Freya. Algo que eu quero muito?

     É claro que o rosto dela surgiria. Não há nada que eu queira mais do que Kathryn. Não há nada que eu queira mais do acordar ao seu lado e saber que os últimos cinco meses não passaram de um pesadelo, e que ela me ama e ainda vamos nos casar.

     Mas eu não posso mudar o passado, assim como não acredito nessa besteira de pedido. Mas… Eu estou desesperado e sem esperanças. Não fará mal algum. O pior que pode acontecer é tudo continuar como está. Não fará diferença.

     Então, visualizando seu lindo rosto, faço o meu pedido, esperando que algum poder divino esteja me ouvindo.

     Eu desejo que Kathryn consiga me perdoar e me aceite de volta… Pode ser daqui há um, dois, dez anos… Eu ainda estarei esperando por ela.

— Pode abrir os olhos agora — Freya sussurra.

     Eu obedeço e nós dois assopramos a vela.

     Enquanto Freya bate palmas, eu rezo silenciosamente para que o meu pedido seja realizado.

☠️

      Já estamos no início da primavera, mas o frio quase faz com que eu me arrependa de não ter pego minhas luvas. Eu estava com pressa para fazer essa noite acabar, então tudo o que fiz foi trocar minhas roupas confortáveis por jeans, uma camisa preta de gola alta e botas. Minha jaqueta de couro é quente o suficiente para não me deixar morrer de frio aqui fora, mas ainda sinto falta das luvas.

     Um barulho chama minha atenção e eu olho para trás para ver Genevieve saindo. Ela fecha a porta dos fundos pela qual saiu e se junta a mim na varanda. Estou tão acostumado a vê-la com algum vestido de cor ou estampa vibrante, que hoje fiquei surpreso ao vê-la usando calça de camurça, botas e um suéter fofo, com certeza tão quente que ela nem deve estar sentindo frio agora.

— Então você nasceu dia dezoito de março — Genevieve diz de repente. Arqueio a sobrancelha e contenho a resposta ácida que está na ponta da minha língua. Ela balança a cabeça, percebendo sua própria estupidez. — Isso foi meio estúpido, desculpe. Estou tentando começar uma conversa.

    Continuo calado. Ela quer conversar, não eu.

     Se encostando no muro de madeira, Genevieve fica de frente para mim, seus braços cruzados. Já estivemos em posições semelhantes em uma outra varanda ano passado, quando eu a acusei de ser uma espiã. Não tenho orgulho de como fui escroto com ela anteriormente, mas não me arrependo de desconfiar. Eu só queria o bem da minha família. Felizmente Genevieve entende isso.

— Você nunca perguntou dela — minha cunhada é a primeira a quebrar o silêncio.

— Você me diria alguma coisa se eu perguntasse? — Encaro-a. Posso não ter perguntado, mas confesso que pensei, algumas vezes, em perguntar a ela ou a Lorelei se tinham notícias de Kathryn.

— Não. Ela é minha melhor amiga — diz como se isso explicasse. E… explica. Admiro a lealdade de Genevieve com Kathryn, apesar do que isso significa para mim nesse momento. — Mas ela está bem. Ela aguenta qualquer coisa, até mesmo um término esquisito que a fez se mudar de estado e se afastar de todos aqueles que ela conhece.

     A faísca de raiva que sinto na sua voz me faz encará-la. E, de fato, há aquela chama de uma mulher furiosa em seu olhar.

— Sinto muito que ela tenha ido embora. Você não sabe o quanto — consigo dizer, minha voz rouca de repente.

— Você está certo, eu não sei. Ninguém sabe. Kate não nos diz nada. Ela se recusa a falar do assunto. Eros disse para eu não me intrometer. Que não era problema nosso, mas… — Genevieve faz uma pausa e posso senti-la lutando consigo mesma. Finalmente, ela pergunta: — Você… Você a traiu?

— Não — uma palavra nunca fora pronunciada com tanta verdade e indignação.

     Verdade? Que verdade? Você sabe que traiu Kathryn. Traiu a confiança dela ao lhe esconder coisas.
   
     Genevieve me analisa, então, semicerra os olhos.

— Mas? — pressiona.

     Tensiono minha mandíbula.

— Não existe “mas”. Eu não a traí. Ponto.

— Não consigo acreditar em você.

— Eu não me importo, porra. — Não deveria estar alterado. Estou apenas ofendido e enjoado com a sua suposição de que traí Kathryn ou apenas puto comigo mesmo porque sei que a traí de outra forma?

     Ambos.

     Foda-se. Não vim aqui para ser questionado. Genevieve pode muito bem ir para a merda.

     Não chego a verbalizar a ideia, mas lhe dou as costas. Vou pegar Bessie e ir embora. Nem mesmo deveria ter vindo.

     Meus planos são frustrados por uma mão no meu braço, me parando. Genevieve surge na minha frente. Ela não parece arrependida, muito pelo contrário, está decidida.

— Eu precisava perguntar — diz simplesmente. — Na verdade, acredito em você, estava apenas te testando… Mas eu sei que você está escondendo algo. O motivo real de vocês terem terminado.

— Não é da sua conta.

— Talvez não. Mas ela é minha melhor amiga e você é o meu cunhado. Amo vocês e me dói saber que ambos estão sofrendo. — Sua expressão séria racha um pouco e vejo a tristeza em seu olhar. — Sinto falta dela.

— Eu sei. — Faço uma pausa, passando minha mão pelo meu cabelo. — Eu também. Mas não há nada que você possa fazer, ruiva. Algumas coisas apenas… não tem conserto.

— Tem certeza?

     Encaro-a, inclinando a cabeça, um sinal para ela continuar.

     Genevieve suspira, então põe as mãos na cintura.

— Vou fazer apenas uma pergunta: você ainda a ama?

— Nunca deixei de amá-la — respondo com todo o meu coração.

      Genevieve tem aquele olhar analítico de novo e eu deixo ela ver a sinceridade das minhas palavras, o que está no meu coração.

     Quando parece acreditar em mim, diz:

— Então lute por ela. — Abro a boca para dizer que não é tão fácil assim, mas Genevieve ergue a mão e continua: — Talvez eu não devesse estar aqui te aconselhando porque não sei o que ocasionou a separação de vocês, mas, mesmo correndo o risco de estar sendo uma péssima amiga, eu preciso dizer: não desista dela. Se você acha, por menor que seja, que existe a mera possibilidade de ela te perdoar, vá atrás dela agora.

— E se ela não me amar mais? — minha voz soa tão baixa que é quase engolida pelo vento.

     Pela primeira vez desde que começamos essa conversa, Genevieve dá um sorriso. É pequeno e quase doloroso, mas está lá junto com a ternura em seus olhos.

— Vi vocês se apaixonando… Esse tipo de amor… Não acaba assim. Não acaba e ponto. Pode estar adormecido, trancado a sete chaves, mas está lá. Acredite em mim.

     Balanço a cabeça. Quero dizer a Genevieve que ela está louca, que, se ela soubesse tudo o que eu fiz, ela não estaria dando esse conselho.

     Mas não digo. Não digo porque sou egoísta. Porque, de fato, uma parte bem pequena de mim, tão minúscula que esteve enterrada esse tempo todo, acredita que ainda há uma chance.

— Vá — Genevieve sussurra. — Vá atrás da sua garota.

     E foda-se, é o que eu faço.

☠️

     Na manhã seguinte, estou num voo para Nova York.




☠️

Ai, gente, tô com muita dó do meu bebê 😭😭😭😭

Acham que a Genevieve fez certo?

Enfim, espero que estejam gostando dessa reta final...Faltam 7 capítulos pra acabar🥺

É isso, até 💋🖤

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