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22 de novembro de 2010
𝙃𝙖𝙣𝙣𝙖𝙝 𝙂𝙧𝙞𝙢𝙚𝙨
Ouvia a risada baixa das três garotinhas no banco de trás enquanto Lara dirigia e eu alisava o pelo macio do meu gatinho. Saímos bem cedo, antes mesmo das meninas acordarem, então trouxemos Sophia no meu carro.
— Glenn me levou ao Grand Canyon uma vez, no meu aniversário de oito anos — ela dizia para a amiguinha — a gente foi com a minha irmã Gwen, e o filho dela, Paul.
— eu nunca fui ao Grand Canyon — Sophia responde — deve ser legal viajar com a família
— a tia Hannah pode levar a gente até lá qualquer dia, não é, tia?
As olho pelo retrovisor interno, vendo gigi sorrindo animada e Sophia me olhando esperançosa.
— claro, amor. Um dia levamos vocês até o Grand Canyon, faremos uma grande viagem em família — sorrio para elas — e a Soso terá a melhor viagem de todos os tempos.
— você me levaria com vocês, tia Hannah?
— não faremos viagem alguma sem você, meu bem.
Sophia sorri contente e as duas voltam a tagarelar sobre outro assunto.
— como consegue ser a tia favorita de qualquer criança, ou miss simpatia? — me olha séria, rapidamente voltando seu olhar para a estrada
— jeitinho, Belinha. Meus sobrinhos gostam de me trazerem mais crianças para me adotarem como tia.
— como se você não amasse isso, não é?
Lara tem razão, eu amo crianças. A notícia de que Lori esperava o primeiro neto, filho e sobrinho Grimes me animou ao extremo, fiquei tão entusiasmada com a ideia de ser tia que aquilo me tirou algumas noites de sono. Quando Carl nasceu eu tinha treze anos, mau sabia como segurar uma criança em meus braços, morria de medo de derrubá-lo no chão. Carl me tirou da escuridão, me apresentando o lado bom da vida, me mostrando como um abraço resolve tanta coisa e tira tanta dor.
Quando Camilla nasceu eu já era mais experiente, pude participar do nascimento, dar banho, mas ainda tinha medo de a derrubar no chão. Gigi foi a sobrinha que a vida me deu, um presente perfeito do universo para mim. Quando a conheci ela já era grandinha, mas ainda era uma criança, ainda tive o prazer de andar na montanha-russa com ela grudada em meu braço, a colocar para dormir e ler um conto de fadas que ela adora. Meus sobrinhos são as pessoas mais importantes para mim, são eles que me mantém de pé todos os dias, é por eles que eu ainda continuo.
— crianças são o meu ponto fraco, você sabe.
— e como sei — murmura — e você e o Daryl? O que anda rolando?
— nada — ela me olha confusa — não sei o que rola entre nós dois, só sei que eu gosto.
— burrice, é isso que vocês tem — nega — quando é que vão se acertar de uma vez, Hannah?
— até dois meses atrás a gente nem se falava, seguíamos nossas vidas como se fôssemos pessoas estranhas. Dê tempo ao tempo, Lara.
— estamos no meio de um apocalipse zumbi, Isabel. Tempo é tudo o que não temos.
— não vou adiantar as coisas só porque você acha que é burrice esperar e ver onde isso tudo vai nos levar. Eu gosto do Daryl, continuo tendo o mesmo sentimento de sempre, mas não vou me precipitar com isso. Quero que dê certo, Lara — digo — eu quero muito que dê certo dessa vez, e eu quero que seja do jeito certo.
Ela me olha por poucos segundos e volta seu olhar para a estrada. Suspiro e ajeito o gatinho em meus braços, o aconchegando melhor.
— Daryl é complicado, é difícil saber o que se passa na cabeça dele.
Os carros em nossa frente vão parando as poucos, um atrás do outro. Havia um grande engarrafamento na estrada, um verdadeiro cemitério de carros.
— devemos descer? — questiono, Lara puxa o freio de mão, travando o carro.
— eu acho que sim.
Ela desce do carro, abrindo a porta de trás para pegar a filha no colo. Abro a porta e desço, me abaixando para pegar a garrafinha de água que ainda restou, despejando um pouco do líquido no potinho de água de Bart.
— não suma, gatinho levado.
Levanto o vidro em uma altura que ele não consiga sair e fecho a porta, alcançando o resto do grupo. Gigi e Sophia já estavam ao lado de Carl.
— demoraria horas para tirar todos os carros que bloqueiam a passagem e a gasolina acabaria antes de chegarmos na próxima estrada que leva até Fort Benning. Além do mais, o meu trailer está com problemas outra vez.
— você não tinha concertado ontem quando paramos na estrada?
— fita isolante não é o suficiente, preciso de mais do que isso se quisermos chegar até nosso destino.
— tudo bem, então vamos vasculhar os carros, vemos o que podemos usar para o concerto do trailer e talvez até encontramos algo útil para a sobrevivência do grupo.
— em duplas, pessoal. Nada de perambularem sozinhos entre os carros, é fácil para um podre se esconder entre eles.
Havia carros para todos os lados, empoeirados e sujos, mostrando que estavam ali desde o início. O lugar tinha um odor forte de coisa podre, indicando que, se não ouvessem zumbis por aqui, eram corpos em decomposição.
— onde meus olhos possam ver, crianças — ordenei seguindo Lori e Carol, recebendo um "está bem" em uníssono. — aqui fede a morte — murmurei levando a mão até o nariz
— como queria ser médica, garota?
— no meu trabalho eu não iria sentir o forte cheiro de corpos, eu só iria curá-los.
— uma hora teria que lhe dar com mortos — Carol brinca
— eu só não esperava que fosse dessa forma.
Me encantei pela medicina na adolescência, em uma das vezes que meu pai foi baleado em serviço, quando ele ainda era apenas um policial de cidade pequena. Queria fazer o que fizeram por ele, queria salvar vidas de pessoas desconhecidas, trazer o alívio para familiares preocupados, para crianças que choravam encostadas em uma cadeira dura de recepção. Perdi o foco quando papai morreu, parte de mim desistiu desse sonho, e assim como ele nasceu, morreu. Por isso demorei a entrar de verdade em uma faculdade, queria ter a certeza de que estava escolhendo a profissão certa. O meu lugar era na medicina.
Algo em mim gritava para que eu seguisse o meu coração, e o meu coração estava em Atlanta, na faculdade em que fui aceita. Mas por outro lado, eu tinha toda uma vida em King County, ou não. Eu tinha vinte e dois anos, trabalhava em uma livraria no fim da rua, morava com o meu irmão mais velho e a família dele, não era o tipo de vida que eu queria. Rick tinha seu trabalho na polícia, Lara era uma ótima advogada em Virgínia, meus amigos tinham ótimos trabalhos, por que eu seria uma fracassada que viveria as custas do irmão?
Sou grata ao Rick e Lori por terem me acolhido, me dado amor, carinho e uma ótima vida durante todos os anos que morei com eles, foram os melhores da minha vida. Mas eu precisava conquistar algo, enfrentar uma nova realidade, me jogando para fora da minha zona de conforto, finalmente encontrando o meu lugar. Cursar medicina em Atlanta foi uma decisão difícil, eram quilômetros de distância e eu tinha um namorado na cidade, um namorado que eu amava pra cacete, mas que tive que deixar para trás. A vida exige alguns sacrifícios, não é?
— tia, a gente pode ir ali? — Gigi questiona, apontava para um carro vermelho mais a frente, não estava tão longe
— eu não sei, docinho. Carl e Soph tem mamães bem chatinhas — brinco — se elas concordarem, por mim tudo bem.
Lori me dá um empurrão fraco e Carol dava risada.
— desde que não abram nenhuma porta, tudo bem.
— tomem cuidado — Carol mandou
As três crianças comemoraram de seu jeitinho tradicional, uma dancinha engraçada e vários "yes", é a marca deles.
— onde..
— seus olhos possam ver — os três completaram
— já sabemos, tia Hannah — Carl diz — você fala isso todo dia.
Os três continuam andando, me deixando de sobrancelhas arqueadas e a boca entreaberta. Meu sobrinho está crescendo, como pode?
— seu filho está atrevido, faça algo.
— é a sua cópia, não tem muito o que fazer, Belzinha — me dá tapinhas nas costas
— Carl se parece com a Hannah? Eu acho que ele se parece com o pai
— na aparência, sim — ela fala — mas Carl é idêntico a Hannah quando ela tinha treze anos. Mesma personalidade, mesmas respostas, mesma maneira de andar — aponta para Carl, que se aproximava de seu destino — olha, igualzinho.
— você era rebelde, Hannah?
— eu gostava de responder pessoas com meu humor quebrado, acho que para a minha mãe isso era ser rebelde, então sim, eu era um pouquinho.
— um pouquinho? Garota, você quase enlouqueceu a sua mãe.
Dou um sorrisinho travesso para ela, me lembrando da minha época de "rebeldia"
— como eu iria saber que pular a janela para ir brincar na praça com meus amigos era algo errado? Eu só tinha onze anos.
— brigou com a filha do prefeito, você quebrou o nariz dela e seus irmãos tiveram que pagar a conta do hospital.
— tínhamos doze, e eu trabalhei para eles durante um mês.
— pegou o carro da sua mãe durante uma madrugada e dirigiu até a cidade vizinha para a festa da Kristen.
— eu tinha carteira de motorista.
— a carteira era da Lara, sua sonsa — acompanho Carol em sua crise de riso — Rick tem cabelos brancos desde os vinte e a razão foi a irmã mais nova dele. Se Carl realmente for igual a você, eu sofrerei muito.
— não é a única, Giulia também vem seguindo meus passos. Glenn e eu também sofreremos.
— Sophia os levará para um bom caminho, relaxem.
— ou eles a levaram para o mesmo caminho — murmuro
Dávamos risada quando Rick apareceu, gritando em sussurro para que entrassemos debaixo dos carros. Nos encaramos por alguns segundos, mas meus olhos foram para as crianças mais a frente.
— crianças, para baixo dos carros, agora — ordenei
Me enfiei em baixo de um carro preto, ao lado do carro em que Carol e Lori estavam escondidas. Vi quando os três se encolheram debaixo do carro vermelho, se espremendo para que coubessem todos ali.
Os grunidos e passos arrastados iam ficando mais próximos e o mal cheiro invadiu meu olfato, me fazendo torcer o nariz algumas vezes. Encarava as três crianças em baixo do carro, percebendo o desespero de Sophia, sentindo um aperto forte no peito e me questionando onde Glenn e Daryl poderiam estar.
O grupo de caminhantes passavam lentamente pela rodovia, me deixando ainda mais aflita e preocupada com a segurança das três crianças lá na frente. Olho para trás, vendo Lara tapando a boca de Camilla em baixo de um carro, totalmente apavorada com a situação.
O último zumbi passou pelo carro, nos deixando para trás. Por segurança, sussurrei para Carl que ficassem lá em baixo mais um pouco, mas fui completamente ignorada por Sophia, que enfiou a cabeça para fora, ganhando a atenção de dois caminhantes que ficaram para trás.
A garotinha correu entre os carros enquanto gritava pela mãe. Rolei para fora e me levantei, correndo em direção os gritos da loira sem me importar com as consequências. Carol chorava e chamava a filha, Sophia saiu da estrada, desceu para a floresta com dois zumbis em sua cola.
— vai, ajuda ela — Lori gritou para o marido
Rick deslizou na descida íngreme, correndo atrás da pequena garota que corria pela floresta. Meu coração apertava e o pensamento de que poderia acontecer algo com Sophia me deixava aparovara.
— eu falei para ela ficar, eu falei, tia — Gigi disse grudando em minha cintura.
A abracei, deixando a garota o mais perto possível de mim, afagando seu cabelo.
— eu sei que falou, amor. Rick vai trazê-la de volta, vai ficar tudo bem.
Eu espero.
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