VII. O CHAMADO

OUTUBRO CHEGOU CEDO, espalhando uma friagem pela cidade junto as folhas que começavam a amarelar e cair. Uma onda repentina de gripe preocupou a população e as pessoas andavam por aí, tossindo e espirrando em lencinhos. Em uma manhã nublada, Isabella procurou as amigas, seu nariz estava vermelho feito um hidrante e os olhos inchados, lagrimejavam em excesso.

— Doga de gribe! — Isabella exclamou em cumprimento as amigas que a esperavam no estacionamento e, em meio a uma fungada, ergueu a mão mostrando uma garrafa transparente que continha um liquido espesso e verde, com um cheiro nada agradável. — Eu tenho que tobar isso pra tosse e eu nem tô tossindo.

Anastásia segurou o riso arrumando o casaco junto ao corpo para se proteger de uma lufada de vento que corria entre os carros estacionados e apressou o passo em direção ao prédio principal com suas paredes de tijolo vermelho queimado. Isabella continuava a reclamar do remédio caseiro e ameaçou passar na farmácia assim que saísse do colégio para comprar um "remédio de verdade".

Victória comentou que a mãe de Isabella passou pela loja em uma tarde daquela semana, elas se cumprimentaram brevemente. Provavelmente a mulher estava atrás de ervas para fazer o que quer que fosse aquela gororoba que serviu para a filha. Victória tirou uma pequena garrafa térmica de sua bolsa, desenroscou a tampa e serviu na mesma um líquido marrom profundo, muito semelhante ao tom do chá Pu-erh.

— Bebe isso aqui, me agradeça depois — disse com um sorriso no rosto, entregando para Isabella. O vapor quente subiu diante delas trazendo um aroma confortável. — É receita de família, garanto que é muito mais gostoso que... seja lá o que for isso que você tá tomando. — Victória parecia radiante. — Eu que preparei.

Durante o segundo horário, Anastásia não conseguiu conter o sorriso em seu rosto quando ouviu seu nome ser anunciado pelos alto-falantes, como uma das candidatas para a rainha do Baile de Outono. Aquele era o primeiro título a ser disputado; depois, viria o Baile de Formatura. Enquanto a professora tentava recuperar a atenção da turma e diminuir o fluxo de conversas, o coração de Ana saltitava em seu peito com a excitação. Agora só precisava receber votos suficientes para conseguir a tão disputada a coroa do Robert W. High School.

— Parabéns, Ana!

— Vou votar em você!

— Você merece!

Eram as palavras que ecoava pelos corredores do colégio. Anastásia exibia um sorriso genuíno, sentindo que toda hesitação e nervosismo dos últimos dias se dissipar. Sua autoestima estava mais elevada do que nunca. Tudo estava bem; ela estava feliz com as coisas tomando um rumo cada vez mais normal. Mas, havia certos detalhes que ela não conseguia ignorar, como o corvo que voava perto da sua janela por noites consecutivas.

No almoço, as três se acomodaram na mesa de sempre, acompanhadas pelos gêmeos, Harry Benson – um garoto popular do segundo ano era prodígio no time de futebol –, junto de sua namorada Sarah Fletcher do primeiro ano e duas de suas amigas, que olhavam os veteranos com admiração. Tyler Anderson não parava de olhar para Victória, mas ela não prestou atenção, pois estava ocupada demais se dividindo entre revisar a papelada do editorial da escola e resmungar sobre a ausência do editor-chefe.

Jessica Forbes era uma das candidatas, e estava sentada na outra ponta da longa mesa, seus olhos astutos observando a loira conversar animadamente. Embora tentasse manter as aparências, os elogios soavam cada vez mais falsos e concordar com os demais se tornava cada vez mais difícil. Com um sorriso no rosto, Jessica se levantou, despedindo-se da turma e, jogando a bolsinha sobre o ombro, desfilou ao encontro de Alec, que a esperava na entrada do refeitório com seus óculos escuros.

Nos últimos dias, rumores começaram a circular pelos corredores. Jessica não confirmou nada, e estava ficando cada vez mais óbvio que algo estava acontecendo entre eles. Mesmo com sentindo a ponta dos dedos de Eric Palmer traçando um caminho despreocupado por seu antebraço, Anastásia sentiu um peso no estômago ao ver Alec passando o braço pela cintura da garota.

Engoliu a derrota à seco.

Martyn interrompeu seus devaneios, cutucando seu braço com um canudo.

— Ei, vocês duas — disse, apontando pra ela e Isabella. — Querem ir no Hideaway hoje à noite comemorar sua indicação?

Isabella, milagrosamente curada de sua gripe graças ao remédio de Vick, deu um beliscão no braço da amiga por baixo da mesa, deixando claro que, caso o convite fosse recusado, alguém sofreria as consequências. Ana olhou para a amiga e, em seguida, para Eric, acenando positivamente com a cabeça.

— Já foi lá? — Eric perguntou.

— Ainda não.

— Mas que coisa! — exclamou, olhando para o gêmeo. — Acho que o destino está jogando ao nosso favor, irmão.

— Concordo plenamente! — Martyn disse.

— Bestas — Victória murmurou com uma proposta de sorriso.

— Se tiver se sentindo sozinha hoje à noite, podemos convencer o Austin de ir com a gente — Eric sugeriu. — Aí você já teria um encontro.

— Não rola — Martyn disse prontamente, balançando a cabeça — Austin se borra de medo da Victória desde que ela gritou com ele por quebrar a maquete dela do sistema solar.

— Vou deixar essa oportunidade passar — Victória disse, organizando os papéis com satisfação. — Obrigada.

Após o colégio, Victória deu carona para as amigas em seu Jeep. Isabella mal conseguia conter a empolgação, pulando no banco de trás e se referindo aquilo como o "encontro de Ana e Eric".

— Não é um encontro romântico, Bella — Ana insistia com um sorriso largo no rosto, estava tão empolgada quanto a amiga, mas tentava manter a postura.

— Ah, claro que é! — Isabella retorquiu, apoiando os braços no encosto do banco e enfiando o rosto entre as amigas. — Conhecendo o Eric, ele devia tá com vergonha de te chamar pra sair, por isso pediu pro Martyn dar apoio e me levar junto. — Ela puxou o ar com força. — Meu deus, Ana, isso tá na cara dele!

Ana balançou a cabeça, comprimindo os lábios para conter o sorriso, e lançou um olhar para Victória como se buscasse alguma confirmação da amiga. Vick, sem desviar os olhos da estrada, deu um leve aceno de cabeça e era o que Ana precisava para relaxar e permitir que a sensação de animação corresse fluidamente por seu corpo.

— Tenho certeza que não quer ficar, Vickie? — Ana perguntou ao descer do carro.

— Não posso, fiquei de passar na loja depois da aula — Victória ajeitou os óculos. — Mas estarei esperando uma mensagem com todos os mínimos detalhes, ok?

Tinham tempo de sobra até às sete horas. Ligaram a televisão da sala e o som de um filme antigo serviu como trilha sonora para o restante da tarde. Entre risadas e fofocas, comeram pipoca e pintavam as unhas uma da outra, mas sempre que o assunto mencionava Jessica, Alec ou ambos, Anastásia rapidamente mudava o assunto tentando não parecer incomodada. Edwin as observava curioso, às vezes se distraindo ao tentar pegar a própria calda.

O céu escureceu gradualmente do lado de fora.

Isabella subiu para trocar de roupa enquanto Anastásia ficou na cozinha, organizando as almofadas do sofá e lavando a louça suja da noite anterior e do café da manhã, para que quando Barbara chegasse do plantão, não precisasse se preocupar com aquilo. Estava planejando a roupa que usaria naquela noite quando a luz falhou de repente, com um estalo alto, mergulhando a casa na escuridão. Com o susto, Isabella gritou no andar de cima e o som se prolongou no meio da escuridão.

Resmungando, esticou a mão para evitar bater de cara na parede enquanto procurava a gaveta onde guardavam velas e fósforos. Àquela altura, esperava que sua visão estivesse se acostumado minimamente com a escuridão, mas era impossível enxergar à um palmo de seu nariz, já que até o único poste da rua estava apagado.

— Anastásia...

Sua respiração falhou por um segundo. Aquela não era a voz de Isabella. Não podia ser. Era uma voz feminina desconhecida; melodiosa como o canto do rouxinol, mas ao mesmo tempo carregava uma frieza que só era possível em uma noite sombria de inverno. Um arrepio percorreu sua espinha, deixando seus sentidos em estado de alerta.

— Isabella? — Tentou chamar, mas sua voz não passou de um sussurro assustado. — Isso não tem graça.

O silêncio que a cercava era ensurdecedor, comprimindo seu corpo e tornando pesado qualquer movimento que pensasse em fazer. Seu coração martelava descontroladamente em sua garganta, quase sufocando-a, e a respiração irregular era a única coisa audível dentro da casa.

— Anastásia...

Ela comprimiu um grito, levando as mãos a boca como se qualquer barulho fosse resultar em sua morte. Sentia as lágrimas quentes escorrerem por seu rosto. O nome foi sussurrado tão perto de seu ouvido que ela sentiu os cabelos fazerem cócegas em sua bochecha. Por reflexo, ela se virou para encarar aquilo que a chamava, mas tudo o que via diante de si era a escuridão sólida.

Silêncio.

Como se tomasse coragem, inflou os pulmões com ar e tateou o balcão até finalmente encontrar a gaveta que procurava. Lá de dentro, puxou uma vela e uma caixa de fósforos. Após algumas tentativas frustradas pelo tremor em sua mão, a luz amarelada tremulou diante de si, projetando sombras pelas paredes e proporcionando uma visão melhor.

Os olhos arregalados e assustados correram por tudo o que ela conseguia enxergar, não encontrando nenhum sinal de que havia outra pessoa na cozinha. Em passos hesitantes, seguiu até a sala, olhando ao redor na expectativa de que alguém pularia de trás do sofá.

— Anastásia.

O sussurro soou distante dessa vez, quase inaudível; no entanto, a origem do som parecia se concentrar aos seus pés, o que a fez franzir a testa ao olhar para baixo e encontrar usa mochila iluminada pela luz amarelada. Era dali que a voz emanava? Como é possível? Sem entender o que acontecia, mas tomada pela curiosidade, Ana se agachou aproximando-se da mochila com cautela.

— Ana? — Isabella a chamou.

Quando sua mão estava a centímetros do zíper, as luzes se acenderam de repente, iluminando a sala de estar com toda força e ela se ergueu em um pulo, olhando assustada na direção da escada. Isabella agarrava o corrimão com as duas mãos e a olhava diretamente.

— Você está bem? — Bella perguntou, terminando de descer e caminhando até a amiga. — Te chamei e você não respondeu.

Ana percebeu que seus próprios olhos estavam quentes e ela deu uma risada forçada, balançando a cabeça positivamente e torcendo para que Isabella não tivesse percebido.

— Desculpa, eu... fiquei assustada. — disse por fim.

Assim que os garotos chegaram para busca-las, Ana colocou comida para Erwin e certificou-se de que todas as portas e janelas estavam trancadas. Tentava não pensar no que havia acabado de acontecer, garantindo-se que não passava de uma peça pregada por sua própria mente. No entanto, quanto mais se esforçava para evitar, mais a voz ecoava em sua memória. Não é real, não é real, repetia para si mesmo ao lançar um último olhar torto para sua mochila.

O Hideaway ficava a seis quilômetros da única saída da cidade, alguns metros depois do posto de gasolina. Ele se destacava na beira da rodovia, cercado por árvores altas que levavam para a floresta. O estacionamento era amplo e o pub, embora simples por fora, com uma placa de neon piscando em amarelo e rosa, revelava um interior aconchegante e bem arrumado. Mesas de madeira com quatro cadeiras eram espalhadas pelo ambiente, duas mesas de sinuca ocupavam um canto enquanto alvos para dardos se alinhavam na parede. No fundo, uma jukebox tocava as músicas escolhidas pelos clientes. Era um crime visitar Haven Heights e não dar uma passada no pub.

O quarteto se dirigiu a uma mesa próximo a janela, essas possuíam assentos acolchoados dos dois lados. Assim que fizeram seus pedidos, os gêmeos cumprimentaram alguns amigos de seu pai e então Eric segurou a mão de Anastásia, puxando-a até a jukebox. Eles passaram alguns minutos explorando a seleção e finalmente decidiram colocar Free Bird, do Lynyrd Skynyrd para tocar.

O som da música se misturava suavemente com as vozes e os risos que preenchiam o lugar, juntamente com o tintilar dos talheres e das bolas de sinuca se chocando uma com as outras. A atmosfera tranquila do lugar ajudou Anastásia a se distrair e esquecer a inquietação que a acompanhava desde casa.

— Vocês lembram das histórias que contavam quando éramos crianças? — Martyn perguntou e Ana sentiu tremelique percorreu seu corpo.

— Ah, não — Isabella balançou a cabeça negativamente. — Dormi com a luz acessa até os dez anos por causa disso.

— Era divertido — Eric comentou, olhando para ela enquanto pegava algumas batatas-fritas e olhou para Anastásia — Fazia tudo parecer uma aventura, sinto falta.

— Eu tenho arrepios só de lembrar — Ana disse.

Anastásia tinha poucas lembranças daquelas histórias, mas se recordava de algumas, como o duende que supostamente vivia debaixo da ponte que levava até o cemitério antigo, dos espíritos que vagavam pela floresta e dos fantasmas na mansão.

— A única pessoa que acredita nessas coisas é a Sra. Flowers, vocês sabem como ela é... — Isabella continuou.

— Faz várias semanas que ninguém a vê — Eric comentou, casualmente. — Papai até mandou alguém lá para ver se ela ainda tava viva.

Anastásia se sentiu levemente desconfortável quando os amigos começaram a rir e contar histórias sobre a velha. Desde a infância até poucos meses atrás, a Sra. Flowers sempre advertia a todos sobre o mal que estava chegando, mas todos riam, acreditando que ela estava ficando biruta de vez. Nada acontecia em Haven Heights. Ana não havia contado a ninguém sobre o encontro que teve com a mulher, e definitivamente aquele não era o momento, pois ela sabia que acabariam rindo dela por ter entrado na loja.

As melhores fajitas da região, segundo Eric, chegaram e o assunto logo foi esquecido. Enquanto comiam, o grupo falava sobre músicas e filmes, rindo de piadas espontânea e, sem que eles percebessem, o tempo passou rápido. No final da noite, dividiram a conta antes de saírem.

Do lado de fora, o tempo havia esfriado consideravelmente, fazendo com que Isabella soltasse um espirro agudo. Anastásia se abraçou, puxando o casaco mais para perto do corpo. Eric, um pouco tímido ao seu lado, passou a mão pelos ombros dela e a puxou para perto em uma tentativa de ajudá-la a se aquecer. A garota agradeceu com um sorriso, aconchegando-se junto à ele enquanto andavam pelo estacionamento e inalando a colônia que ele usava.

— E aí, como foi? — Barbara perguntou assim que Ana passou pela porta. Estava relaxada no sofá da sala, assistindo uma de suas séries e comendo pipoca.

— Divertido — Ana respondeu, tirando o casaco e o pendurando no cabide próximo.

Barbara deu uma olhada rápida para ela e sorriu.

— Quem diria, hein? — Ela riu. — Vocês duas saindo logo com os dois que sempre faziam confusão e juravam detestar.

— Eles ainda são insuportáveis — Ana falou com divertimento na voz, abaixou-se para pegar Edwin que se esfregava em suas pernas e caminhou até o sofá, sentando ao lado de sua tia e apoiando a cabeça em seu ombro. — Mas agora estão bonitos. Como foi o trabalho?

— Bem corrido. — Barbara respondeu sem entrar em detalhes, alguma coisa no seu tom parecia fora de sintonia.

Anastásia assistiu um pouco de televisão com Barbara, mas logo começou a bocejar. Despediu-se da tia com um beijo na bochecha e foi direto para um banho rápido. Ao sair, vestiu seu pijama confortável e sentou-se na escrivaninha, ligando o laptop antigo que ganhou da tia.

Entre bocejos e piscadas demoradas, Anastásia se esforçou para focar no trabalho escolar. Cada trio precisava produzir um projeto sobre os eventos mais marcantes do século XVIII em diferentes partes do mundo, e o grupo de Anastásia ficou responsável pela Guerra dos Sete Anos, um dos conflitos mais complexos século na Europa.

Fez anotações em seu caderno e organizou alguns arquivos para imprimir na manhã seguinte, e acabou por fazer quase todo o trabalho sozinha, mas não por falta de cooperação dos outros integrantes, e sim porque ela queria passar o menor tempo possível perto de Alec. Vou apresentar a pesquisa, vamos ver a casa e ir embora, dizia para si mesma quase como um mantra enquanto se preparava para dormir.

Naquela noite, Anastásia sonhou com a voz a chamando.

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