IV. O FANTASMA DE OLHOS VIOLETAS

A VISÃO TURVA finalmente começou a se acostumar com à escuridão densa que pairava entre as árvores. Anastásia se levantou com dificuldade, sentindo o corpo dolorido sem ter a menor ideia de quanto tempo havia se passado. Tocou a testa no ponto onde a dor havia surgido antes de desmaiar, sentiu a textura úmida e grossa melar a ponta de seus dedos.

— Que porcaria — exclamou chorosa com medo de ficar com uma cicatriz feia o suficiente para estragar suas fotos do baile.

De repente, uma voz masculina soou alto demais no silêncio que a envolvia e a transportou de volta para a realidade que nunca saiu. Dilan, pensou com um alivio e, ainda trêmula, andou em direção à estrada que parecia ter desaparecido momentos antes. Subiu o pequeno barranco, vendo a marca de seus sapatos exatamente onde deslizou e se viu diante da última pessoa que esperava encontrar.

Alec estava parado a um metro de distância de onde ela surgiu, encarando-a com o nariz ligeiramente torcido. Ah, droga! Ela passou as mãos pelos cabelos assanhados, tirando algumas folhas, em uma tentativa de melhorar a situação, mas sabia que estava horrível. Por um momento, ela considerou se jogar de volta em meio as árvores para evitar o que viria a seguir.

— O que aconteceu? — Alec perguntou, sério.

Anastásia gaguejou ao tentar responder, não estava preparada para aquela pergunta e não estava psicologicamente preparada para conversar com ele. Todas as respostas soavam completamente malucas e todos os horrores que viveu pareciam minúsculos ao serem comparados com estar naquele estado, diante do garoto mais bonito que já havia visto em sua vida. Por fim, decidiu dar a desculpa mais patética de todas.

— Eu... caí.

Alec inclinou a cabeça para o lado, ligeiramente desconfiado.

— Sozinha? — Indagou.

Ela balançou a cabeça positivamente, sentindo o rosto ficar quente. Esperava que a qualquer momento ele fosse absorver aquela informação e soltasse uma gargalhada, porém apenas continuou a encarando, como se avaliasse sua resposta. Em silêncio, Alec pegou um pequeno lenço de algodão do bolso e estendeu para ela, para que pudesse limpar o rosto sujo.

— Vamos, eu te acompanho até sua casa — disse em um tom de voz neutro, virou e começou a descer a rua.

Anastásia encarou as costas largas por alguns segundos, perguntando como alguém poderia ser tão arrogante ao ponto de não demonstrar o mínimo de preocupação, ela não poderia estar tão feia assim. Irritada, considerou a ideia de não a seguir, mas ao lembrar da sensação de não encontrar a saída, começou a caminhar atrás dele.

Uma garoa fina começou a cair pela noite, ajudando-a a esfriar a cabeça e se livrar de parte da sujeira que cobria seu rosto. O cabelo, normalmente em uma tonalidade dourada pálido, estava grudado pela lama e impossível de desembaraçar. Pelas ruas mais afastadas, não havia nenhum movimento além de alguns animais aqui e ali que tentavam se proteger da chuva que ameaçava engrossar.

Anastásia estava inquieta, lançando olhares de soslaio para o garoto em uma tentativa de prever qualquer movimento suspeito; porém o rapaz não demonstrava nenhuma expressão, mantendo sua postura rígida e impassível, como se fosse uma obrigação acompanha-la. Acelerou o passo apenas o suficiente para ficar ao lado dele, aproveitando o momento para observá-lo mais de perto, tentando decifrá-lo.

Os cabelos loiros de Alec começavam a pesar por conta da chuva, grudando em sua testa enquanto pequenas gotas de água escorriam por seu rosto, contornando seus traços marcados. Era como se uma escultura de Michelangelo tivesse ganhado vida e caminhasse ao seu lado, com os olhos escuros fixos no caminho e o maxilar tenso.

Em nenhum momento Alec a olhou ou falou algo para quebrar o gelo, poderia até pensar que ele estava alheio à sua presença ali, e Anastásia se sentia como um fantasma seguindo um humano que nunca poderia tocar. Sentiu o rubor subir por suas bochechas ao perceber que o encarava por tempo demais e desviou o olhar para os próprios sapatos sujos.

Havia algo nele estranhamente familiar, talvez por lembrar dos rostos perfeitos nas revisas adolescentes e nas ruas da cidade grande, todos moldados por procedimentos estéticos, com seus os maxilares marcados e as maçãs do rosto altas. Mas nenhum deles chegava próximo aos traços perfeitos de Alec.

Quando finalmente entraram em sua rua, a casa solitária era iluminada pelas luzes azuis e vermelhas da viatura. Ana deixou escapar um xingamento baixo e correu rapidamente pela calçada, sem pedir licença ou se desculpar, e entrou pela porta aberta. Não fazia ideia de que horas eram, poderia ter passado um dia inteiro naquele lugar e não saberia dizer.

— Tia! — Gritou ao entrar na sala de estar, onde havia algumas pessoas que passaram despercebidas no primeiro momento.

— Meu Deus, Anastásia! — Barbara exclamou, atravessando a sala em passos largos para alcançar a sobrinha. — Olhe só para você! O que aconteceu? Liguei para as meninas e ninguém sabia onde você estava.

— Não foi nada — respondeu um pouco envergonhada. — Estou bem, acabei seguindo uma trilha na floresta e me perdi... — Ela olhou para as roupas sujas. — Acabei escorregando e... Parece que não parou de chover lá dentro.

— Onde você estava com a cabeça? — Barbara disse, balançando a cabeça em reprovação, as mãos apoiadas nos ombros da garota enquanto os olhos percorriam seu rosto. — Não entre na floresta sem avisar ninguém, Anastásia.

Anastásia se lembrava das lendas sobre a floresta e sabia que Barbara, assim como ela, era cética demais para acreditar em contos de fada, porém era de conhecimento comum que se aventurar sem preparo pelo interior da floresta era perigoso.

— Desculpa, tia — murmurou, olhando ao redor e finalmente percebendo os demais na sala. Seu olhar cruzou com Eric em pé ao lado do irmão no canto da sala. — Desculpa preocupar vocês também. Estou bem, Alec me ajudou e me tr-

— Alec? — Dilan que estava sentado no sofá e se levantou assim que ouviu os passos apressados na varanda, se aproximou e colocou a mão nas costas da garota.

— Quem é Alec? — Barbara indagou com as sobrancelhas unidas.

— É o garoto novo na escola, ele... — Começou a explicar, mas foi interrompida novamente.

— Ele fez algo com você? — Dilan abaixou o tom de voz, visivelmente preocupado.

— Ah, não! Não, não! — Ana exclamou, deixando escapar um riso nervoso e sentindo seu rosto esquentar ainda mais. — Ele só me acompanhou até... aqui. — Franziu as sobrancelhas e a última palavra saiu como um sussurro quando percebeu.

— Você tem certeza? — Dilan insistiu, preocupado.

Anastásia balançou a cabeça positivamente e pediu licença.

Da varanda, Alec escutava atentamente a conversa que vinha da sala de estar e debatia entre ir embora sem se despedir ou esperar a garota retornar. Após uma breve análise, percebeu que seria grosseiro demais partir, principalmente após ter seu nome mencionado.

Ele sabia que as árvores tinham costume de pregar peças nos intrusos, uma mistura de diversão e proteção, mas o que o deixava intrigado era o comportamento que adotaram contra alguém tão inofensivo como aquela humana. O corvo preto pousou em seu ombro, roçando o bico carinhosamente em sua orelha após ele acariciar as penas do pássaro. Alec não era inocente pelo que aconteceu, mas também não era inteiramente culpado.

— Dia difícil, meu amigo. Noite difícil. — murmurou enquanto o corvo levantava voo ao ouvir os passos delicados se aproximando.

Anastásia retornou, os cabelos sujos e molhados agora presos em um rabo de cavalo, e sua pele de porcelana marcada por pequenos cortes que exalavam um perfume tentador. O corte em sua testa estava escondido por uma mecha do cabelo.

— Estava falando com alguém? — Ela indagou, encostando-se no batente da porta e cruzando os braços.

— Pensando alto — disse com uma breve proposta de sorriso que sumiu rapidamente.

— Como você sabia onde era minha casa? — O rubor se estendeu por seu rosto, fazendo a boca dele salivar.

— É uma cidade pequena — respondeu prontamente. — Nossos colegas de classe falam demais.

Era uma justificativa aceitável, mas também era uma informação pessoal e específica demais para ser comentada pelos corredores do colégio. Será que ele perguntou para alguém?, pensou sentindo um formigamento no estômago.

— Obrigada — disse com uma voz envergonhada.

— Posso entrar? — Alec indagou. — Não quero desentendimentos com sua família, me deixe explicar a situação.

— Não precisa. — A resposta rápida o surpreendeu e os olhos violetas brilharam com uma intensidade que parecia penetrar os seus, como se soubessem seus segredos. — Na verdade, o xerife quer falar com você, ele já está vindo. Espere aqui.

Pela primeira vez em muito tempo, Alec ficou surpreso. Tentou se lembrar da última vez que alguém se impôs daquela forma contra ele, e nem mesmo sua amada Beatrice apresentou tal postura em sua primeira noite juntos; apesar de assustada por sua presença repentina, ela cedeu sem hesitação. Lembranças como aquela deixavam um gosto amargo em sua boca. Ele correu a língua pelos dentes, sentindo os caninos levemente maiores do que o considerado humano e os retraiu.

Alec, pensativo, observou Anastásia retornar ao interior da casa quando a mulher a chamou. Durante o todo o trajeto, evitou qualquer tipo de contato direto com ela por sentir que não suportaria ver aquela que um dia amou refletida naqueles olhos, principalmente com o cheiro doce do sangue pairando no ar. Ele não quis que ela se machucasse daquela forma e quando sentiu o aroma exalar, sua vista ficou vermelha e ele foi atraído como um tubarão até a presa ferida.

Ele se perguntava o porquê de lutar contra seus instintos mais primitivos ao vê-la desacordada no chão da floresta, apenas Deus foi testemunha do quanto ele desejou possuí-la ali mesmo. A energia que Anastásia exalava era o que ele vinha procurando há tanto tempo, mesmo que inconscientemente, em uma tentativa inútil de suprir o vazio deixado por Beatrice; ela era o desejo que o fez escolher o sol. Agora, tinha o pote de ouro em mãos, mas algo dentro dele o impedia de deleitar-se com a riqueza.

Seus devaneios foram interrompidos quando ela retornou, de rosto lavado, junto ao xerife Palmer e seus filhos, que o encararam desconfiados. Os gêmeos o cumprimentaram cordialmente com um aceno da cabeça que Alec não retribuiu. A garoa parou e eles desceram a varanda, o loiro seguiu o xerife até o ponto onde a calçada terminava, garantindo que os outros jovens não ouvissem a conversa.

— Você se chama Alec...

— Volturno, senhor. — Alec completou formalmente.

Ele olhou por cima do ombro do homem e observou Anastásia conversar com os gêmeos, com um sorriso doce nos lábios e evitando detalhes do que aconteceu.

— Que sobrenome forte você tem, rapaz. — O xerife passou os dedos pelo bigode expresso. — Ana disse que você a acompanhou.

— Isso mesmo, senhor. Estava voltando para minha casa quando ouvi algo no meio das árvores. — Alec respondeu, sério. — Quando chamei, a vi dizendo que havia tropeçado.

— Onde você mora? — Indagou.

— Estou na mansão no topo da colina.

— Entendo, é uma boa casa, apesar do que aconteceu no passado. O corredor de imóveis deve ter comentado com você sobre isso, não? — Alec assentiu. — Está lá sozinho? É uma casa grande demais para um jovem como você.

Alec fixou os olhos verdes nos do xerife, deixando o homem um pouco desconfortável no primeiro momento, só então utilizou seu Poder para introduzir certezas na mente do humano que começava a fazer perguntas demais. A respiração do homem falhou por um momento e ele piscou algumas vezes antes de voltar a falar como se tivesse sido interrompido no meio de uma fala.

— É uma boa cidade, realmente. Há muito tempo não temos residentes vindos de fora. — Ele coçou o queixo. — As Sinclair retornaram há pouco tempo, mas cresceram aqui. O que te trouxe para esse fim de mundo?

— Um recomeço. — Respondeu.

— Bom, aqui não é o melhor lugar para recomeçar, mas, quem sabe, começar algo novo. — O xerife deu uma risada rouca e um soquinho no ombro do rapaz.

Alec balançou a cabeça, concordando.

— Bem, seja bem-vindo e boa sorte com o que procura.

— Agradeço.

— Vamos, meninos. — O homem chamou seus filhos com um gesto da mão e os gêmeos então se despediram de Anastásia, um de cada vez, com um abraço amigável.

Alec, tomado pela curiosidade, abaixou seu escudo mental para prestar atenção nas informações que capitava naturalmente. Depois de tantos anos, aprendeu a ignorar a maior parte dos pensamentos alheios e se concentrar apenas no que era importante. Mas sem hesitação alguma, invadiu a mente dos garotos para vasculha-las.

Um dos irmãos carregava uma paixão de infância por Anastásia, com a volta dela para a cidade e seus hormônios em ação, os sentimentos escondidos afloraram novamente. O outro, por sua vez, chamou a atenção de Alec pela desconfiança que retumbava em sua mente: não acreditava totalmente nas palavras de Anastásia e sabia de alguma forma que havia algo além do que ela contou, mas não conseguia comprovar aquele pensamento.

Quando Alec voltou sua atenção para Anastásia, sentiu seu rosto se contorcer em uma expressão de choque ao se deparar com uma mente bloqueada, cercada por uma parede impenetrável que o manteve do lado de fora. Como? Isso não é possível, pensou ao ser invadido por sentimentos que há muito tempo estavam guardados.

Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, era o ditado, mas para ele que havia nascido antes mesmo da expressão existir, testemunhou o contrário inúmeras vezes ao longo dos séculos. Coincidências acontecem, é claro, mas o destino é apenas um. Então por que parecia que estava se repetindo? Beatrice estava morta, mas naquele momento sua essência se fez tão presente que se tornou difícil de ignorá-la, e a garota, que o encarava com olhos violetas tão familiares, refletia como um fantasma de suas memórias mais doloridas.

Não é possível.

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