06. Avance cem passos, soldado.
Jules não está tendo uma única noite de sono tranquilo desde que voltou ao próprio corpo. Quando a insônia não a engole totalmente, os pesadelos invadem sua inconsciência, ela acorda cedo demais, sua pele ferve como brasa e sua cabeça dói como tivesse sido pisoteada por uma manada de búfalos. Todas as horas do dia que se seguem depois disso são uma tortura, a exaustão mental mal permitindo que ela consiga se esforçar o mínimo que seja em atividades que, antes de seu aniversário, seriam as mais simples.
Tem sido uma semana longa.
O estresse diário, esse piorava centenas de vezes seu humor já afetado pela falta de uma boa noite de sono.
— Eu quero cinco peças daquele salmão do porto chegando nessa cozinha antes das seis, Jones, e não me diga que eu preciso ameaçar alguém pra que isso aconteça. — Jules gorjeou, deslizando pela cozinha em seus sapatos brancos antiderrapantes enquanto amarrava o avental cinza em sua cintura com um nó firme. — É a segunda vez esse mês que Ulisses vacila comigo na entrega dos frutos do mar, avise-o que foi a última. Eu tenho uma longa lista de outros fornecedores só esperando que ele pise na bola de novo. — Jones, o pobre responsável pelo estoque do restaurante, apenas sacudiu a cabeça fervorosamente, o telefone pressionado contra o ouvido, e saiu praguejando da cozinha, amaldiçoando até a décima geração do entregador da peixaria.
— Se já começamos nesse humor, o dia vai ser longo. — Robin zombou de seu lugar na pista de frios, o sotaque sulista pesando em seu tom de diversão.
— Ela vai te acertar, Robin Hood. — Avisou Chloe, o sarcasmo quase derretendo em seu sorriso cínico. — E você sabe que a mira dela é ótima.
Chloe Harper é cozinheira de Jules há mais ou menos um ano e meio, o que pode ser considerado um tempo recorde no ramo que escolheram. Cozinhas de restaurantes tem uma enorme rotatividade de funcionários, então Julieta se considera sortuda por trabalhar com a mesma equipe por um ano inteiro, cada um tendo suas próprias manias e limites que os outros já se acostumaram. É sempre um pesadelo se ajustar a novos membros, Chloe dizia.
E ela está certa. A dinâmica em uma cozinha precisa ser perfeita, a garantia de um trabalho bem feito está no respeito pela hierarquia, e na sincronia da equipe. Se uma única engrenagem não funciona direito, o relógio para.
Para Jules, a engrenagem enferrujada tinha nome e sobrenome. Patrick Dylon, o dono do restaurante, um homem ignorante, irresponsável e arrogante, muito focado em escalar na alta sociedade de Boston, para realmente se preocupar em administrar o negócio que herdou de seu pai.
Jules está bastante ciente que a única razão para que a maioria da equipe continue ali, é porque o bom salário garante todas as contas pagas no fim do mês.
Robin gemeu em zombaria, apenas um olhar sobre o ombro para oferecer a Jules seu sorriso mais inocente.
— Ela sabe que eu só estou provocando.
— O quê eu sei é que o corte desses queijos está totalmente disforme. — Jules rebateu suavemente, nem mesmo dando um olhar para o trabalho de Robin, que contraiu o rosto em um beicinho. Risos se espalharam pela cozinha quando ele, infantilmente, murmurou algo como "não tá nada".
— Cuidado, pessoal, ela está afiada hoje. — Will os dispensou com um aceno brusco, antes de praticamente enfiar uma caneca de café fumegante na frente do rosto de Jules. — Você parece que precisa de cafeína.
Jules quase chorou de emoção quando o aroma do café invadiu seu olfato, e seus olhos se encheram de gratidão quando ela mirou seu sous chef, o cozinheiro quase dez anos mais velho.
— Você é um anjo? — Ela choramingou, estendendo as mãos para envolver seus dedos na louça quente. — Deus, eu poderia te beijar, William.
— Eu sou casado e seria antiético. — Will devolveu com bom humor. — Mas aprecio sua gratidão, chef.
— Uma Jules bem acordada é uma Jules que não tenta decapitar ninguém em uma noite cheia de reservas. — Chloe comentou, recebendo resmungos de concordância por toda a cozinha. Jules gemeu para isso.
— Quanto?
— O suficiente para chamar toda a equipe de garçons. — Respondeu Chloe, um sorriso amarelo brincando em seu rosto.
— E Patrick? — Robin perguntou, franzindo as sobrancelhas.
Jules riu secamente, mas foi Chloe quem respondeu:
— Não espere ver Patrick por aqui em qualquer noite minimamente importante. — Seu tom possui uma quantidade generosa de veneno, e ela gesticula com sua faca de carnes meio suja de sangue de cordeiro. — Provavelmente encheu a cara ontem com os amigos playboys, mesmo sabendo sobre hoje, e vê isso como uma desculpa plausível pra nem mesmo dar as caras.
— É o que a moça disse. — Jules apontou Chloe com um gesto gracioso de sua mão, ao que a outra mulher respondeu com um piscar de olhos atrevido. — Patrick pode assinar nossas carteiras, mas se qualquer um de nós o ver mais do que duas vezes depois disso, comece a se preocupar.
— Com a demissão? — Questionou Robin com assombro.
— Com o Apocalipse. — Jules corrigiu em um tom maldoso, o que apenas instigou a onda de risadas nas nove pessoas presentes.
— Mudem de assunto, o puxa-saco-oficial está chegando à bombordo. — Avisou Logan após um olhar cauteloso por uma das pequenas janelinhas redondas que davam vista para o salão.
Nem meio segundo se passou antes que Kenny Wayland, carinhosamente apelidado de boneco Ken, irrompesse pelas portas de acesso da cozinha com sua habitual postura altiva e afetada.
— Vocês... — Ele praticamente guinchou, seu peito inflando no que seria um novo acesso de histeria. O mais engraçado, o motivo do apelido para início de conversa, era o topete notavelmente platinado que parecia se arrepiar no topo de sua cabeça a cada ataque de nervos. — O que estão fazendo aí, parados? Estamos nos matando para preparar o salão, e vocês nem mesmo aqueceram os fornos?
Ken nem mesmo tentava esconder o quão pouco ele respeitava Julieta ou sua equipe, rapidamente assumindo que qualquer um deles não possuía qualquer habilidade notável além de manusear algumas panelas, era como se ele os olhasse, mas visse apenas um grupo de pessoas limitadas ao trabalho manual, pouco ou quase nada inteligentes ou cultas o suficiente para merecerem sua cordialidade. É óbvio que ele não poderia estar mais errado.
E é claro que eles o desprezaram com a mesma intensidade. Notavelmente, Jules fez um melhor trabalho em se manter neutra, sua graciosidade praticamente esfregando no rosto de Kenny o quão melhor ela era apenas por não se dar ao trabalho de se ofender.
— Fizemos uma pausa rápida pra nós agraciar com sua ilustre presença. — As palavras de Julieta, o sarcasmo velado em sua seriedade cordial, pareceram morder Kenny direto na bunda, e ele apertou os lábios como se experimentasse algo muito amargo. — Você parece tenso, Kenny, acho que tenho algo aqui para os nervos, um chá, talvez.
Ele parecia prestes a gritar, e teria, se não soubesse exatamente o tipo de problemas que teria por quebrar a paz da cozinha em um dia como esse. Não era exatamente o sonho de ninguém ter nove cozinheiros muito habilidosos com facas querendo cortar fora sua língua, presumivelmente para jogá-la em uma frigideira quente.
Ele não gosta de Julieta, especialmente, dentre todos os outros. Ela é calma, amigável e sorridente demais, praticamente encantando qualquer um que a conheça por mais de meio minuto. Perfeitamente ciente de que ela é a única razão para que a maioria deles continua trabalhando ali, Kenny não consegue evitar que o ciúmes ferva dentro dele. Em trinta anos nesse ramo, ele não conseguiu conquistar metade do respeito que Julieta atraiu em menos de dois.
— Coordene sua equipe, Fawley. — Ele praticamente cuspiu de volta. — Foi pra isso que foi contratada. — A porta bateu atrás dele quando se virou e pisou duro de volta ao salão.
— E eu achando que era por minhas inigualáveis habilidades culinárias. — Jules comentou com certo humor sarcástico para seus colegas, incapaz de levar a sério o quão pouco ameaçador o gerente soava. Ela sacudiu seu desprezo com um aceno de cabeça, e endureceu seu tom antes de dizer: — Muito bem, seus completos desajustados, vamos colocar esse show na estrada, sem corpo-mole e sem demora!
Ao som de seu comando, cada membro da equipe parece se ajustar em suas próprias tarefas, Jules terminando seu café em um gole longo, apenas para cantar novas ordens e se colocar no auxílio de uma praça mais complexa. Em alguns minutos a cozinha já engatava em um ritmo crescente de preparos que estavam apenas começando.
✦ . ・゚ .
Azul foi a cor que ela escolheu vestir pela manhã, quando acordou com os raios solares esquentando seu rosto, levemente arrependida por esquecer de fechar as cortinas. É domingo e ela não trabalha, graças a quaisquer deuses que existam. Também está relativamente quente para o mês de abril, que costumava ser o mais frio da primavera.
Tudo isso significava apenas uma coisa.
— Jules. — Nemo gritou do andar superior, seus passos apressados ecoando logo em seguida pelas escadas. Julieta esperou, de seu lugar na ilha da cozinha, uma torrada com geleia de damasco em sua mão direita. — Vamos tomar sorvete?
Jules já esperava exatamente por isso, e exalou uma risada enquanto engolia seu café da manhã. O olhar expectante de Nolan se fixou nela por todos os segundos que levou até que ela acenasse com a cabeça em confirmação.
— Vou pegar as chaves. — É tudo que Julieta responde e, minutos depois, ela e o irmão estão caminhando em direção ao centro comercial da South End, apenas alguns minutos de sua casa.
É um hábito, e ela tem orgulho em admitir, que adquiriu pouco depois que Nemo fez cinco anos. Jules não tem vergonha em dizer que é absolutamente louca por sorvete, mas ela sabe que isso não se aplica ao irmão. Nolan tem apenas uma apreciação razoável por essa sobremesa. Mas ele ainda espera por cada dia um pouco mais quente que o normal, apenas para pedir ansiosamente que Julieta o leve para comprar sorvetes.
Mesmo que o South End tenha as melhores sorveterias de Boston, Nemo sempre achou que a melhor coisa nisso tudo era simplesmente se sentar com sua irmã mais velha e conversar sobre absolutamente tudo o que lhes viesse à cabeça. Era um momento deles, há anos, e era o único onde nada parecia fora do lugar.
Com o tempo, e a experiência, Nemo também aprendeu que Jules adorava ouvir divagações de outras pessoas, exatamente porque ela mesma divagava com frequência, e se sentia muito bem quando alguém a ouvia com empolgação. Ele nunca sabia se sua irmã estaria sendo tagarela, ou uma excelente ouvinte. Variava bastante.
Hoje, por exemplo, ela apenas perguntou o suficiente para engatar em um assunto que dificilmente morreria. Ela estava ouvindo, com um sorriso satisfeito no rosto.
Mas ela não falou tanto, não dessa vez, tão pouco nas últimas semanas. Desde seu aniversário, ele percebeu, que se tornou um assunto sensível dentro de casa. Sua mãe lhe disse para não perguntar, para não comentar e até mesmo tentar não comparar suas atitudes com qualquer coisa que tenha vindo antes. Essa ainda é Jules, ela diria, apenas um pouco cansada.
É por isso que Nemo fala sobre qualquer outra coisa. Sobre seus amigos, sobre seu apreço e habilidade com os computadores da escola, sobre seu pesadelo onde era perseguido por pinguins, sobre sua redação sobre a Segunda Guerra.
— Sabe, meu pai costumava dizer que o pai dele sabia tudo sobre a Segunda Guerra. — Jules mencionou em determinado ponto da conversa, girando o canudo entre os dedos para misturar a calda de caramelo em seu milkshake. — Tenente Joel Reed Fawley, do 98º, em 1945 entrou com seu batalhão na Varsóvia para ajudar as tropas soviéticas a recuperá-la dos nazistas. — O garoto brilhou em interesse, praticamente escalando o bistrô de madeira entre ele e sua irmã, para ouvi-la com atenção. Ela riu suavemente de sua reação. — Eu não sei tantos detalhes, desculpe, mas pode perguntar à ele na próxima vez que formos visitá-los. Ele está sempre ansioso para falar sobre isso mesmo.
A mais pura verdade, vovô Joel aproveitava qualquer oportunidade para xingar Hitler. Ninguém podia julgá-lo por isso.
— Pode ser. — Nolan concordou com um balançar de seus ombros. — Acha que vai demorar muito?
— Mamãe pegou alguns turnos extras no hospital, e eu só consigo sair da cidade aos domingos, então talvez demore. — Ela explicou francamente. — Por quê?
Nolan balançou os ombros novamente.
— A redação é pra próxima sexta. — Respondeu. — Acha que ele vai se importar se eu ligar?
— Nemo, o vovô se dá tão bem com tecnologia quanto eu me dou bem com beisebol. — Brincou a mais velha, gesticulando com a mãos para enfatizar seu argumento. — É mais fácil você enviar uma carta.
— Fácil pra quem?
— Pra ele, é claro. — Ela respondeu com uma risada nasal. — E se prepare para receber uma resposta apenas no mês que vem.
— Vovô Joel devia ser a personificação da paciência. — Ele resmungou com frustração. — Sabe, porque ele é da geração que viveu de cartas, fonógrafo e rádio.
Rindo, Jules deixou seu irmão resmungar sobre como ele achava que seria impossível viver em um mundo sem os SMS's, a cafeteira elétrica e, é claro, o Spotify. Ela não concordava, mas também não achava que a lógica dele estava errada. Ela também não tem certeza se teria sobrevivido aos anos 30, mas por razões totalmente diferentes das que preocupavam Nolan.
Os anos 30 foram horríveis para mulheres... e para mutantes. E ela era os dois.
— Se eu te ajudar com a redação, você promete que para de falar mal do telefone a manivela? — Ela perguntou, juntando as mãos em sinal de súplica, ainda que sua expressão fosse pura diversão.
— Se me levar ao Museu do Capitão América, eu prometo. — Jules franziu as sobrancelhas com a condição curiosamente estranha.
— Sério? — Ela pensava que precisaria negociar um pouco mais. — Por que?
— Nunca fomos. — Nolan respondeu de forma óbvia.
Deixando suas mãos caírem novamente, Jules as cruzou no colo, e arqueou as sobrancelhas de maneira desafiadora.
— Aí que você se engana, meu caro Watson. — Ela replicou, sorrindo astuta. — Eu já visitei o Museu do Capitão América.
— O quê? — Nolan praticamente gritou, se empertigando na cadeira, tamanha sua indignação com a declaração de Julieta. — Sem mim? Quando?
Jules conseguiu engolir a risada que subiu por sua garganta, mas foi difícil morder o sorriso que repuxou os cantos de seus lábios. Nolan jamais a deixaria viver em paz sabendo que ela foi a qualquer lugar sem ao menos contar a ele.
— Eu tinha seis anos. — Respondeu, observando com diversão enquanto Nolan se deixava cair de volta no assento macio, torcendo o rosto em uma frustração infantil.
— Isso não conta. — Ele resmungou. — Você nem se lembra do que viu lá.
Julieta mordeu o lábio, uma mania difícil de superar, e encolheu os ombros quando percebeu que seu irmãozinho estava certo naquele ponto. Dezoito anos atrás, seu avô e seu pai a levaram ao Museu do Capitão América, no Smithsonian, onde ela comparou sua altura à do supersoldado, comprou camisetas combinando com os dois adultos, e dormiu no carro na viagem de volta, depois de tomar dois sorvetes de amora e ficar com a língua roxa.
Foi um dia legal, um de seus favoritos com seu pai.
Mas em relação ao Museu em si, ela realmente não se lembra de quase nada.
— Certo, espertinho. — Ela murmurou, cruzando os braços sobre o peito. — Você escreve uma redação com mil palavras, e na semana que vem eu te levo ao Museu do Capitão América.
O rosto de Nolan se iluminou em um sorriso largo e genuíno. Jules mal conseguiu continuar séria.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Promete? — Ele estendeu a mão no espaço entre eles, os dedos fechados, com exceção do mindinho, que ele flexionou em um convite silencioso.
Jules sorriu dessa vez, estendendo sua própria mão e entrelaçando seu mindinho ao dele.
— Prometo. — Confirmou, apenas para selar o pacto. — Agora vai lá e pede outro milkshake pra mim.
— Você precisa controlar esse seu vício, mulher. — Ele reclamou enquanto se levantava, apenas para receber o mais ofendido dos olhares. — Diabetes é uma ameaça real, sabia?
— Sua audácia é admirável.
— Gosto de estar em constante risco de vida.
Jules gargalhou alto enquanto seu irmão praticamente saltitava até o balcão de atendimento, nenhum dos dois cientes de estarem sendo observados pelo homem estático do outro lado da rua, sentado em um dos bancos mais distantes do parque, encoberto pelo intenso fluxo de pessoas que vem e vão. Ele apertou os olhos, azul-acinzentados à luz do sol, a respiração presa na garganta ao fixar sua atenção na única coisa verdadeiramente bonita que vira desde que saiu daquele buraco.
Azul, ela usava azul, e ele sabe que quer se lembrar do quão bem ela fica nessa cor, de como os cachos dourados de seu cabelo reluzem à luz do sol, e ela realmente irradia calor, como se fosse feita disso. O sorriso de sua alma-gêmea, mesmo à distância de cem metros, irradiava como o Sol, infiltrando cada centímetro sob sua pele, tocando a alma que, até então, ele não sabia se ainda tinha.
Cem passos, e tudo que os separa, e ele nunca achou que fosse haver um caminho mais tortuoso e impossível a percorrer, até agora. Ele não avança, ainda não, talvez nunca.
Ela é linda como o sol, ela é boa, melhor do que qualquer um que ele se lembre de conhecer. Ele não é. Ele está frio e imerso em escuridão, e não quer que isso a apague, nunca.
Ele se afasta, e cem passos de tornam cento e cinquenta, duzentos, trezentos... talvez um dia sejam apenas dois, um, nenhum. Mas não hoje.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top