05. A vida depois.





          De todas as histórias que seu pai lhe contou na infância, Jules não se lembra de ter ouvido uma única menção sobre a completa sensação de se sentir doente quando tudo acaba. Ela retorna ao próprio corpo na manhã de 18 de abril e, sem nenhum exagero, quase não consegue chegar ao banheiro antes de colocar as tripas para fora. Sua boca tem um gosto acre e calafrios se espalham por seu corpo enquanto ela afasta o cabelo do rosto suado.

Está tudo ali, cada lembrança vívida das últimas vinte e quatro horas, mesmo o cansaço e a dor, era como se ela tivesse passado por tudo em seu próprio corpo. O que não era verdade. Ela está bem ciente de que não tem um único arranhão, nem mesmo um hematoma, que seu corpo literalmente entrou em coma durante as vinte e quatro horas em que sua consciência dividiu espaço com sua alma gêmea.

Mas ele... ele vai acordar do outro lado do país com cortes sangrentos e ferimentos dolorosos, sozinho e confuso.

Seu estômago aperta dolorosamente, e ela segura a porcelana fria da privada antes de se curvar e vomitar tudo o que ainda tem em seu estômago. Mesmo os pensamentos mais brandos são capazes de lhe dar náuseas. Então ela tenta não pensar em como está desesperadamente preocupada com o homem que acabou de salvar.

Será mesmo que ela o salvou? Ou apenas o condenou?

Ela arranca as roupas grudentas de seu corpo e tropeça para dentro do box, suspirando em alívio quando a água entra em contato com sua pele suada e quente. Seu cabelo cacheado fica encharcado em questão de segundos, e ela usa os dedos para penteá-los pra longe do rosto.

Jules nunca achou que poderia sentir tanta falta do calor em suas veias como o fez agora. Ela mal pode esperar para sair dali e caminhar sob a luz do sol, deixar os raios solares preencherem qualquer resquício de frio e escuridão.

Sua mente continua voltando até sua alma gêmea, e ela deseja que possa ter deixado ao menos um resquício de calor para aquecê-lo nas noites difíceis. Porque, ela quase pode sentir em seus ossos, terão muitas.


✦ . ・゚ .


— Não está com fome? — Agnes perguntou, desviando o olhar de sua revista de jardinagem apenas para fixa-los na filha mais velha, que parecia completamente alheia ao mundo desde o início da manhã.

Jules mal ergueu o olhar de suas panquecas intocadas, cutucando os pedaços de melão com o garfo até que estivessem triturados. Seu corpo estava praticamente submerso no vestido-suéter caramelo, sua "roupa de dia ruim" como ela mesma chamava, e o cabelo cacheado estava úmido e espalhado de maneira desleixada sobre os ombros.

Inconscientemente, Jules continuou a mexer no anel prateado em seu dedo indicador, aquele que ela herdou de sua avó e que carregava um simples topázio oval menor que sua unha do mindinho. Ela nunca o tirou desde a morte do pai, e adquiriu como hábito girá-lo incansavelmente em seu dedo, um ato de puro nervosismo e preocupação.

É claro que nada disso passou despercebido pelos olhos atentos de Agnes.

— Posso fazer um omelete se não quiser as panquecas. — A mulher ofereceu, finalmente atraindo o olhar da filha, que balançou a cabeça e encolheu os ombros.

— Panqueca está bom. — Ela murmurou, a voz distante e silenciosa. — Obrigada, mãe.

Agnes franziu as sobrancelhas, torcendo os lábios em uma expressão frustrada enquanto tirava os óculos e os colocava sobre a madeira da mesa. Ela não via Jules tão perdida desde que descobriu a mutação, e, ainda assim, não parecia tão ruim na época.

Honestamente, Agnes podia lidar com uma filha mutante, seu próprio irmão tendo sido o único na família a expressar o gene 'X' antes que Jules nascesse. Objetos entravam em combustão quando Jules ficava nervosa ou ansiosa, sua pele era tão quente que sequer podia ser tocada quando ela se sentia ameaçada ou ferida, e coisas muito mais estranhas que isso aconteciam aleatoriamente ao seu redor desde que ela começou a compreender sua mutação. Tudo isso, Agnes compreendia e sabia enfrentar.

No entanto, nada disso tinha haver com o que Julieta estava passando agora.

— Seu pai saberia o que dizer. — Agnes exalou, derrotada.

Rowan esperou por esse dia desde que Jules nasceu, e se preparou para qualquer que fosse o resultado. Para o bem ou para o mal, ele queria estar pronto pra acolher sua menina. Ele só não se preparou para partir antes que esse dia chegasse. Agnes também não.

— Acho que nem o papai teria um bom conselho agora. — Jules suspirou, desistindo de fingir que acabaria comendo qualquer coisa, e largando o garfo no prato.

— Talvez eu tenha um. — Retrucou Agnes com um meio sorriso repuxando as ruguinhas em seu rosto. — Vamos, tente.

Jules apoiou os cotovelos na mesa e descansou as bochechas em suas palmas abertas, piscando em descrença ao encarar a mãe, bem menos confiante em qualquer forma de conselho que pudesse ser útil em sua situação... complicada.

— Ajudei minha alma-gêmea a fugir de um tipo de prisão clandestina. — Ela disse passivamente, um tom de voz manso e o olhar cansado enquanto observava o rosto de sua mãe se transformar em incredulidade. — Cometi uns dez crimes diferentes, e tem uma enorme chance de que eu seja proibida de pisar em Nevada se algum dia descobrirem tudo.

— Seu senso de humor é estranho. — Agnes bufou, recolhendo os pratos com certa impaciência e os levando para a pia. Jules a seguiu com os olhos. — E às vezes não tem graça alguma.

— Acredite, eu também não achei nada engraçado. — Confessou Jules no mesmo tom, soltando o ar em uma respiração profunda. — Ainda estou decidindo se foi a coisa mais incrível ou a mais estúpida que eu já fiz. — Ela deu de ombros, desviando os olhos para o mármore gelado.

A sequência de declarações, sua expressão imperturbável, e aquele calor perturbador em seus olhos que não estava ali antes, foram as razões pelas quais Agnes congelou e lhe encarou, abismada.

— Julieta Fawley, o que você está me dizendo? — Questionou a mais velha, totalmente pasma.

Em resposta, Jules suspirou, o rosto ainda amassado entre suas mãos pálidas e os ombros encolhidos. Não havia mais volta.

— Tem algo sobre os olhos dele que eu não consigo explicar. — Ela murmura, um sorriso pequeno e melancólico repuxando seus lábios. — Eu apenas senti, mamãe, do fundo do meu coração, que ele precisava de mim.

Agnes sentiu que poderia cair em seus joelhos ali mesmo, quando agarrou o mármore da bancada com a mão livre, a outra pressionada em seu peito, como se isso pudesse acalmar seu coração descompassado. Ela reconhecia aquele olhar no rosto de sua filha, a inquietação, a angústia e o medo.

Olhar para Jules agora era bastante familiar. Ela viu a si mesma 32 anos atrás.

— Julieta, o que...?

Ela não consegue finalizar sua própria frase quando vê a mudança no rosto de sua filha, como de repente isso a atinge. Jules tem aquele olhar em seus olhos, aquele que Agnes quase esqueceu: é o olhar de alguém que está prestes a quebrar.

Ela vai surtar. Ela vai surtar e Agnes sabe disso quando vê seus olhos se encherem com lágrimas quando a realização vem completamente.

A mais velha se move, dá a volta na ilha de mármore, e puxa a filha para seus braços. Jules está se agarrando a ela com as mãos trémulas, soluçando molhando sua camisa com lágrimas incansáveis, e é muito parecido com aquilo que ela fez quando foi informada sobre a morte de Rowan.

Essa não é sua Jules, a mulher enérgica e alegre que ilumina qualquer lugar por onde passa, a força da natureza capaz de aquecer o coração mais frio. Mas essa ainda é sua Jules, a mesma menina que afundou e quebrou quando perdeu o pai.

Agnes não sabe o quê exatamente aconteceu no dia anterior, as coisas que Julieta fez por sua alma gêmea, e que apenas ela carregaria pelo resto da vida. Desta vez, Agnes não a consola nem a conforta, porque não há nada que ela possa fazer ou dizer para aliviar esse fardo. O melhor que ela pode fazer é estar lá.

— Eu tive que fazer.

— Eu sei. — Ela acaricia os cachos dourados e apenas segura a filha por um tempo e, embora deseje poder tirar essa responsabilidade de sua menina, não é possível.

Julieta vai carregar essas cicatrizes para sempre, e não soltá-la enquanto ela desmorona é o melhor absoluto que Agnes pode fazer.


✦ . ・゚ .


— Nemo, você vai se atrasar! — Jules grita de seu quarto no segundo andar, agarrando a própria bolsa e sua jaqueta jeans. — Pior ainda, eu vou me atrasar, e então nós dois vamos estar com problemas. — Seus passos são ruidosos quando ela desce as escadas. — Me diz que não está assistindo televisão quando devia estar no carro.

— Mas, Jules, é a Shield. — Nolan retruca com total convicção de que seu argumento era o mais plausível, e Jules franze as sobrancelhas quando entra na sala.

— O quê? — Ela pergunta, confusa.

— Olha. — Ele aponta, sacudindo as mãos em euforia.

Jules então desvia sua atenção para a televisão e, por um segundo breve, sua respiração engata com a visão dos destroços em chamas do Triskelion, uma das três sedes oficiais da Shield desde que a mesma foi fundada, localizada na Ilha Theodore Roosevelt, entre Washington e Virgínia. E agora tudo o que resta dela são entulhos e restos carbonizados.

Quem, ela se pergunta, teria tido essa audácia estúpida?

O Secretário de Defesa do Conselho de Segurança Mundial, Alexander Pierce, atuava como agente secreto dentro do governo dos Estados Unidos, agindo em comunhão com a organização terrorista Hydra, da qual ele também era um dos principais líderes há anos. — Jules mal percebeu quando se inclinou para mais perto do sofá, escorregando para se sentar enquanto Nolan se afastava para lhe dar espaço. — Pierce tentou usar o Projeto Insight, uma operação onde três porta-aviões lançados do Triskelion patrulhariam o mundo e eliminariam ameaças potenciais, para dar à Hydra o controle sobre todos aqueles que ameaçariam sua ascensão. Na manhã da última quarta-feira, Pierce também ordenou o assassinato de Nicholas J. Fury, Diretor da Shield.

Enquanto os membros do Conselho da Shield aprovava o projeto como o objetivo oficial de eliminar potenciais ameaças globais e garantir a paz, a Hydra pretendia usar os porta-aviões para eliminar qualquer um que se opusesse a eles. Pierce ordenou a prisão de Steve Rogers, o Capitão América, acusando-o de traição e associação na morte do Diretor Fury. Nesta mesma tarde, Rogers coordenou e infiltrou uma equipe no Triskelion, onde agiram em uma operação não-oficial com o objetivo de inviabilizar o lançamento dos porta-aviões.

— Funcionou, não é? — Nolan franziu as sobrancelhas, olhando em confusão entre sua irmã e a cena que se seguia na televisão. — O Capitão conseguiu.

Jules murmurou algo incompreensível, incapaz de formular uma resposta decente, ou uma em que ela acreditasse. Era quase impossível ter certeza de que esse era o resultado que qualquer um deles esperava.

A repórter continuou a narrar cada vez mais informações sobre a operação, cada uma delas deixando Julieta mais atordoada do que antes. Ela sabe que suas mãos estão fervendo no momento em que uma lista de prováveis alvos surge na tela, as possíveis ameaças que a Hydra poderia eliminar se seus planos não tivessem sido frustrados por Rogers e seus aliados.

Algumas pessoas muito conhecidas por lutarem contra o movimento terrorista que a Hydra apoiava, alguns apenas influentes demais, outros poderosos ou ricos demais. Um mutante, um que ela reconhecia, que o mundo todo sabia quem era e o que ele defendia. Charles Xavier seria um alvo, é claro que sim.

O problema é que Jules sabe que, estando ou não naquela lista, ela também seria um alvo, porque o algoritmo não erraria. Qualquer um com dois neurônios poderia prever que, em um mundo em que a Hydra ainda fosse uma ameaça, Julieta Fawley seria um alvo óbvio.

— Imagina o que esses caras devem saber sobre todo mundo. — Nolan comenta com admiração infantil.

Jules pisca suavemente, afastando seus próprios pensamentos sombrios.

— Chega disso. — Ela alcança o controle para desligar a televisão, e ignora os lamentos de Nolan. — Vá buscar sua mochila, tenho dez minutos pra te deixar na escola.

— Mas eu queria saber o resto. — Ele resmunga, recebendo nada além de um olhar fixo, que apenas o faz se levantar e sair da sala para pegar suas coisas. — Poxa...

Jules também ignora a chuva de drama que seu irmão começa a murmurar depois disso, e tudo o que lhe resta é uma visão turva, sua mente zonza indo e voltando em todas as coisas que aconteceram nas últimas 48 horas.

Quais as chances de qualquer uma dessas coisas estar interligada, ela não tem certeza se quer saber a resposta.






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