Azul, levemente esverdeado nas bordas, mais escuros com a iluminação amarela e ruim do banheiro, uma cor tão clara e intensa que causava arrepios de frio. Mas havia algo mais, curiosidade, confusão, um tipo de vazio que ansiava para ser preenchido. Era quase ingênuo, como se não soubesse nada sobre o mundo real. Era ferido, como se só conhecesse a dor e o sofrimento. Era doce, como se, no fundo de sua mente inconsciente, ele pudesse enxergar Jules no reflexo do espelho, e estivesse profundamente feliz em vê-la.

Alguém com esses olhos não pode ser ruim, ela decide apenas vinte minutos depois de parar na frente do espelho do banheiro, e encarar sua alma gêmea com a estranheza e curiosidade de uma primeira vez, mas também como se fosse a última vez que o faria.

Ela molha uma toalha na pia e a usa para limpar o máximo que pode do sangue em seu rosto, braços e tórax, mas não vai além disso, porque acha que seria muito invasivo tirar a roupa dele pra um banho quando ele nem está consciente sobre isso. Ele poderia se sentir violado ou algo assim, coisas que ela teria sentido se a situação fosse o contrário.

Depois disso ela descarta a camiseta suja e o veste apenas com o casaco de zíper e mangas longas, prende o cabelo comprido com um elástico tirado das notas enroladas de dinheiro, e isso é o mais decente que ela acha que consegue deixá-lo nas atuais circunstâncias.

Seus próximos passos, no entanto, são mais calculados. Ela volta à recepção apenas para buscar papel e caneta, e furta alguns post-its da recepcionista quando ela não estava olhando. À essa altura, esse é o menor dos seus problemas.

Voltando ao quarto, ela pega o dinheiro distribuído nos bolsos, um total de 457 dólares, e o enrola antes de colocar na mesa de cabeceira ao lado de algumas barras de cereal e duas garrafas de água mineral. Ao lado disso tudo, ela prega uma nota adesiva colorida.

Comprei nas máquinas do corredor, acredito que seja confiável.
Ps: as de aveia são melhores.

Então ela segue para o banheiro, onde cola outra nota no espelho.

Lavei uma camiseta no chuveiro e deixei secar no box, vista se sentir muito frio.
Ps: acredito que o frio não seja um problema, certo?

Na porta de entrada, ela cola outra nota.

O quarto já está pago, quando sair apenas siga em frente e não fale com a recepcionista. Ela está desconfiada.

Na gaveta da mesa de cabeceira, outra nota.

Abra e leia a carta, por favor.

Depois disso tudo, Jules finalmente reuniu a coragem para se sentar no carpete e escrever a dita carta. Ela usa o guia da televisão como apoio para as folhas, e arrasta a caneta azul pela superfície.

Querida alma gêmea...

Não, ela amassa e descarta a primeira folha.

Caro desconhecido,

sabia que cometemos uns dezoito crimes nas últimas vinte e quatro horas?

Engraçado, mas não. Ela amassa e descarta outra folha.

Caro senhor alguém,

esse está sendo o dia mais estranho de toda a minha vida, mas eu tenho minhas razões para acreditar que não se compara a como tem sido sua vida inteira.

Você tem perguntas, e eu também, mas estou ciente de que apenas um de nós vai obter respostas agora. E tudo bem, porque eu não sou impaciente. Vou começar do início, mas tentarei ser rápida, porque só tenho vinte e quatro minutos para dizer tudo.

Você acredita em almas gêmeas? Eu sempre acreditei. Acho que sempre quis aquele pequeno momento de euforia em acordar no corpo da minha outra metade. Bem, de certa forma, as últimas vinte quatro horas foram bastante eufóricas, só não do jeito que eu esperava.

Eu não sei porque todas aquelas coisas estavam acontecendo com você, ou porque tantas pessoas queriam te machucar. Não importa, não agora. Acabou. Você está fora, e tão longe quanto foi possível te levar.

Não volte, por favor.

Não importa as razões pelas quais você estava lá, ou o que lhe fez ficar. Apenas um dia no seu lugar, e eu não acredito que você queria estar lá, ou que qualquer coisa boa tenha acontecido em todo esse tempo. Existem pessoas dispostas a te machucar seriamente e privar sua liberdade, mais uma vez.

Então, não volte, não importa o motivo, apenas corra na direção oposta. E se não souber para onde ir, sempre poderá vir até mim.

Talvez você nunca tenha esperado algo assim, e tudo bem, nem todo mundo sonha com as ligações de alma. Mas não é uma expectativa, é nossa realidade agora. Você é minha alma gêmea, senhor olhos bonitos, e eu sou a sua, para todas as coisas boas ou ruins.

Meu nome é Julieta Fawley, mas me chame de Jules, por favor. Eu nasci em 17 de abril, vinte e quatro anos atrás, em Sligo. Há dezesseis anos minha família se mudou para os Estados Unidos, onde vivemos desde então. Eu tenho um irmão mais novo e nós moramos com nossa mãe em Boston, no South End, onde também fica o restaurante em que trabalho.

Eu gosto de amarelo e azul, de praia e da cidade grande, de cavalos e gatos, de cozinhar, assistir musicais e dirigir. Sou fluente em inglês, irlandês, francês e português. Mas não falo russo, o que talvez seja péssimo, porque existe uma imensa chance de você só falar russo e não entender uma única palavra que escrevi agora.

Acho que estou trabalhando apenas com a fé aqui. Apenas a fé de que sua alma e a minha combinam por boas razões, eu acho.

É nisso que estou apostando quando te conto todas essas coisas sobre mim. Você tem aqui tudo o que precisa para me achar, e se algum dia me procurar, se me encontrar, até mesmo se escolher me amar, que seja por vontade genuína.

E tenha certeza de uma coisa, você nunca será obrigado a ficar. Você nunca será obrigado a absolutamente nada se depender de mim.
Isso soa como liberdade, não acha?

Com carinho, Jules.

Ela dobra o papel e o deposita cuidadosamente na gaveta, fechando-a em seguida. O relógio em seu pulso marca 23:57, e ela se deita de costas na cama encaroçada do hotel barato, respirando com certo alívio pela primeira vez em todo o dia. Ao fim de suas vinte e quatro horas, Jules só espera ter feito as escolhas certas.

Ela gostaria de poder prever onde essa escolhas os levariam em seguida. Mas sem nenhum dom de vidência ou premonições, só lhe restava a fé.