TWO

   Você havia tido um verdadeiro dia de cão por assim dizer, sua chefe havia enlouquecido completamente lhe entregando mais relatórios de animais de estimação para arquivar do que jurava ser possível, você se sentia completamente humilhada e Megumi nem ao menos podia lhe salvar naquela situação já que ele também era apenas mais um dos funcionários; depois do que mais pareceram horas você finalmente terminou de arquivar os relatórios e lavar todas as salas da parte do pet-shop já que a responsável do setor havia faltado.

   Sinceramente? Quando estava fazendo a faculdade de medicina veterinária não era daquele modo que via a sua vida.

   Era de noite quando chegou em casa por fim, havia tomado um banho tão quente que facilmente arrancaria sua pele por completo.

   Você olhava para o espelho, o rosto cansado refletido de volta como se carregasse o peso de toda a ansiedade que insistia em se fazer presente a todo momento. As olheiras marcavam a parte debaixo de seus olhos, um lembrete das noites insones, das memórias que insistiam em te assombrar, das vozes que ecoavam na sua cabeça, sempre te lembrando que você nunca foi boa o suficiente. Nunca seria.

   A escova passava lentamente pelos seus cabelos molhados, enquanto gotas d'água caíam sobre o mármore frio da pia, o som ecoando no silêncio sufocante do banheiro. Seus olhos se perdiam no reflexo, observando a sombra da pessoa que você se tornou. Havia algo no fundo do seu olhar que você mal conseguia reconhecer. Era o passado, sempre ali, rastejando como uma sombra atrás de você, pronto para te puxar de volta.

   A verdade era que a sua família havia te moldado de maneiras que você odiava admitir. Seu pai sempre foi uma figura ausente, um fantasma em casa, e quando ele estava presente, o clima pesava como uma tempestade prestes a desabar enquanto sua mãe sempre esteve envolta em suas próprias tragédias, com uma taça de vinho em uma mão e os gritos de desespero na outra.

   As brigas frequentes.

   O medo quase ensurdecedor.

   Você cresceu assim, em meio ao caos, ao desespero. Os poucos momentos de silêncio que você encontrava eram preenchidos por promessas vazias de que, um dia, tudo seria diferente.

   Por isso ao completar a maioridade você fugiu, fugiu para nunca mais voltar, mas mesmo assim a sensação de vazio que te envolvia era como um abismo sem fim, e você estava sempre à beira, prestes a cair e bem... Talvez você já tivesse caído a muito tempo.

   Você suspirou, afastando a escova do cabelo e deixando-a cair na pia com um som seco. Olhou para as próprias mãos frias, como se já não pertencessem a você. O silêncio na casa era pesado, opressor. Algo estava errado.

   Era sempre assim nos últimos tempos.

   A sensação de estar sendo observada, como se alguém te seguisse onde quer que fosse, no trabalho, nas ruas, até dentro da sua própria casa, cada vez que olhava por cima do ombro, nada estava lá... Mas você sabia.

   Algo estava.

   Alguém estava.

   Apoiada na pia, você respirou fundo, tentando afastar a paranoia, mas era impossível ignorar o arrepio constante que subia pela sua espinha, como se dedos invisíveis tocassem sua pele.

   Você apagou a luz do banheiro, deixando a escuridão te envolver enquanto caminhava pelo corredor silencioso em direção ao quarto, a brisa suave da noite entrava pelas frestas da janela aberta, trazendo com ele o som distante do vento nas árvores.

   Mas então, algo mais.

   Um som.

   Um farfalhar.

   Era leve, quase imperceptível, mas você ouviu, parou no meio do corredor, os pés descalços congelando contra o chão frio de madeira seu coração tão acelerado que parecia que a qualquer segundo simplesmente pularia para fora de sua boca, seus olhos buscaram algo no escuro, sem sucesso.

   Outro som. Mais próximo.

   O medo tomou conta de você e por uma fração de segundos você sentiu que todo o ar havia simplesmente se esvaído de seus pulmões lhe deixando a mercer dos próprios lábios arroxeados em busca do oxigênio. Não havia mais dúvida.

   Você não estava sozinha.

   O som de passos ecoou na escuridão, como se alguém – ou algo – estivesse se movendo ao redor da casa, você prendeu a respiração, tentando não fazer barulho, tentando se convencer de que era apenas sua imaginação. Mas então, ouviu novamente.

   Lá fora... Perto da janela.

   A adrenalina disparou por suas veias, e você correu para a janela, as mãos trêmulas puxando a cortina de lado, mas tudo o que viu foi a escuridão lá fora. Nenhum sinal de movimento, nenhuma sinal de vida, apenas as sombras dançando sob a luz fraca dos postes, os galhos das árvores balançando suavemente.

   Seu coração batia freneticamente contra seu peito, o medo se tornando palpável, quase sufocante. Você sabia que algo estava ali. Podia sentir.

   A noite estava viva ao seu redor. E você estava presa, ali, no meio dela.

   Mas havia algo mais... algo que você nunca conseguia nomear.

  Uma sensação de estar sendo observada, constantemente, como se alguém estivesse sempre um passo atrás, nas sombras, havia noites em que você acordava ofegante, com a impressão de que tinha alguém no quarto, te observando de algum canto escuro, e sempre que investigava, não encontrava nada além do silêncio.

   Um calafrio percorreu sua espinha, e você parou no meio da cozinha, os olhos correndo para todas as direções. Seus dedos apertaram a barra da camiseta, o tecido fino de suas roupas parecia incapaz de te proteger do que quer que estivesse lá fora, além das paredes.

   E então, de repente, você viu. A porta dos fundos estava entreaberta uma fresta pequena, mas o suficiente para deixar uma brisa fria passar e fazer com que seus pelos se eriçassem por completo e um arrepio perturbador.

   Seu coração deu um salto no peito.

   Você jurava que tinha trancado a porta. Sempre trancava, havia virado quase um ritual trancar a porta e a forçar ao menos cinco vezes para que tivesse a plena certeza de que ninguém entraria.

   Mas ali estava ela.

   Aberta.

   Por um instante, você não conseguiu se mover. O som distante da cidade, os carros passando, os grilos cantando, o farfalhar das folhas e os ruídos da casa antiga... tudo aquilo parecia distante, quase abafado, apenas sua respiração se fazendo presente em um tom alto demais.

   Cada instinto gritava para você correr, pegar o telefone, chamar alguém. Megumi. Ele sempre sabia o que fazer. Mas, ao mesmo tempo, algo te puxava para a porta. Como se uma parte de você quisesse saber o que ou quem estava ali. Quem tinha ousado invadir seu espaço.

   Você deu um passo à frente, hesitante. A ponta dos dedos alcançou a maçaneta da porta, e você a empurrou devagar, tentando não fazer barulho. Quando a porta se abriu completamente, a noite lá fora se revelou, envolta em uma escuridão opressora, quase como se te desafiasse a sair.

   O quintal estava vazio. O vento batia nas folhas das árvores, o farfalhar delas soava quase como sussurros, fazendo sua pele se arrepiar. Não havia nada. Nenhuma silhueta entre as árvores, nenhuma sombra se movendo. Apenas a noite, solitária e fria, mas o cheiro... um odor forte de gasolina pairava no ar, quase imperceptível, mas presente o suficiente para fazer seu estômago revirar.

   Você olhou ao redor mais uma vez, os sentidos em alerta, mas tudo parecia normal. Fez questão de trancar a porta com um estalo firme, e dessa vez, conferiu dez vezes, seus dedos ainda tremiam quando você se afastou.

   O alarme de seu celular quebrou o silêncio. Você quase pulou com o susto pegando o aparelho na bancada, a mensagem de Megumi piscava na tela.

   Megumi: "Amanhã, 9h. Não se atrase."

   Era uma conversa trivial, mas o conforto que trouxe fez com que você soltasse um suspiro pesado. Megumi era a única constante na sua vida, ele sempre esteve lá, te puxando para longe da beira do abismo mas, por mais que você tentasse, não conseguia afastar aquela sensação de que algo estava errado.

   De que havia algo ou alguém te espreitando, mesmo agora.

   Você voltou para o sofá, tentando focar em qualquer outra coisa, mas o pensamento de que, de alguma forma, alguém tinha entrado na sua casa sem ser notado não te deixava em paz.

   E aquele cheiro... gasolina?

   Era impossível ignorar.

   Com o coração ainda batendo forte, você apertou a manta contra o corpo, sentindo o peso da noite envolver a casa como uma prisão invisível. Lá fora, escondido nas sombras, havia alguém. Você sabia disso, tentou ignorar, se convencer de que eram apenas fantasias de uma mente cansada. Mas o desconforto nunca ia embora completamente.

   Naquela noite, enquanto o relógio marcava uma hora tardia, você ouviu algo. Um som fraco, como o ranger de metal contra metal, vindo da janela da cozinha. Seu corpo congelou por um segundo, o coração acelerando no peito.
  
   Tentando manter a calma, você se levantou devagar, os pés descalços tocando o chão frio da casa, caminhou até a cozinha, os sentidos em alerta, cada som amplificado pelo silêncio da noite, quando alcançou a janela, nada estava fora do lugar. O vidro refletia apenas seu próprio rosto, cansado, os olhos ligeiramente arregalados pela adrenalina.

   Você riu de si mesma, tentando se convencer de que estava ficando paranoica. Talvez fosse o stress do trabalho, ou as memórias de um passado que ainda pesava nos seus ombros, mas, no fundo, bem no fundo uma parte de você sabia que não estava sozinha. Algo – ou alguém – estava lá, nas sombras, observando cada movimento seu.

   Ainda abraçada à manta, você tentou afastar o pensamento de que algo estava errado. Tentou focar no brilho da televisão, nas luzes da cidade que escapavam pelas janelas. Qualquer coisa para não pensar naquela porta aberta.

   Naquele cheiro.

   Seu celular vibrou de novo, fazendo um som baixo e insistente.

   Desta vez, não era Megumi.

   Com um pouco de hesitação, você desbloqueou a tela, e uma mensagem desconhecida apareceu pela segunda vez naquela semana.

   Sem nome. Sem foto de perfil. Apenas um número.

   Desconhecido: "Você ainda está se escondendo, Minha luz?"

   O frio na espinha voltou, mais forte do que antes. Seu corpo enrijeceu, e você olhou ao redor, como se esperasse encontrar alguma pista, algo que pudesse explicar aquela mensagem. Mas não havia nada. Somente o vazio do seu apartamento e o eco distante do vento lá fora.

   Seus dedos pairaram sobre o teclado do celular. Queria perguntar quem era. Queria saber por que alguém te mandaria uma mensagem assim... mas as palavras pareciam presas na sua garganta. Algo dentro de você dizia que era melhor não responder.

   Antes que pudesse decidir, uma nova mensagem apareceu na tela.

   Desconhecido: "Eu te vejo. Sempre vi."

   Seu coração bateu mais forte, como se cada palavra aumentasse a pressão no seu peito. De repente, o ar pareceu mais denso, cada respiração se tornando um esforço consciente. A sensação de estar sendo observada, que você tinha tentado ignorar durante tanto tempo, estava de volta com força total.

   Você se levantou do sofá, a manta escorregando pelos seus ombros e caindo no chão. Olhou para a janela, espiando por entre as cortinas. Nada. Apenas as luzes fracas da rua e a sombra de alguns pedestres distantes, caminhando como se o mundo estivesse em perfeita ordem.

   Mas algo estava errado. Muito errado.

   A próxima mensagem veio antes que você pudesse se afastar.

   Desconhecido: "Você tem medo de mim, Sophie?"

   O som do seu nome vindo de alguém que você não conhecia – ou não conseguia identificar – trouxe uma onda de pânico. Você deu um passo para trás, sentindo o telefone tremer nas suas mãos. Sua mente estava em um turbilhão de pensamentos.

   Quem era ele? E como ele sabia tanto sobre você?

   Você tentou respirar fundo, mas o ar parecia preso na garganta. O desejo de apagar as mensagens, desligar o telefone e esquecer que aquilo estava acontecendo era forte, mas a curiosidade te prendeu ali, as palavras anônimas rodopiando na sua mente.

   Desconhecido: "Se eu estou te assombrando..."

   Seu corpo congelou. As palavras dançavam na tela como uma ameaça silenciosa, mas você sentia o perigo escorrer por cada uma delas. Aquele cheiro de gasolina de antes voltou à sua memória, e o medo queimar no fundo da sua mente. Será que ele já tinha estado ali? Será que ainda estava?

   Desconhecido: "É porque você deve estar me assombrando também"

   As mensagens pararam, mas a sensação de ser observada ficou mais intensa. Você olhou para a tela por alguns segundos, esperando, mas nenhum som veio. Nenhuma vibração. Só o silêncio esmagador.

   Com as mãos trêmulas, você digitou uma resposta curta, contra o seu instinto.

   Soph: "Quem é você?"

   Nenhuma resposta.

   Apenas o som baixo do vento, as folhas batendo contra as janelas, e o leve eco da sua respiração ofegante. Por um momento, você pensou que talvez estivesse imaginando coisas, que isso fosse apenas mais um trote, um desconhecido querendo te assustar.

   Respirou fundo bloqueando o número novamente.

   Mas, de alguma forma, lá no fundo, você sabia. Sabia que ele estava mais perto do que você jamais poderia imaginar. Que ele estava observando.

   E que isso era só o começo.

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