25 | Vingança
"Você perdeu o que não vai voltar?
Você amou, mas nunca aprendeu?
O fogo está apagado, mas ainda queima
E ninguém liga, não tem ninguém lá."
——————
Merliah
O PRIMEIRO SENTIDO QUE ME DOMINA É O OLFATO. Parecia cheiro de mofo, cheiro de algo que está guardado ou fechado há muito tempo. Irrita meu nariz.
Abro meus olhos que demoram um pouco para se acostumar a luz escassa, estava escuro e feixes de luz escapavam da janela de madeira. Ouço ruídos que pareciam de um bebê, meus ouvidos zunem e minha cabeça lateja. Levo a mão até minha testa sentindo um curativo e então me lembro o que aconteceu.
É claro, ela não me deixaria sangrando na presença de um bando de vampiros.
Estranhamente me sinto entorpecida, incapaz de sentir medo real, perdida demais em meus pensamentos e teorias. Seth, Jacob, meu pai... Eu queria ver eles, queria ter certeza que eles estavam bem. Eu morreria feliz se tivesse a garantia que eles teriam uma vida.
Inspiro ar pela boca percebendo como minha garganta estava seca. Quanto tempo eu havia ficado apagada pra sentir tanta sede?
Olho em volta em busca de algo para beber mas eu estava sozinha no pequeno quarto. As paredes eram de madeira assim como a janela, eu estava sentada em colchão e um cobertor fedido estava largado ao meu lado. Uso meus pés para me afastar dele e me forço a ficar de pé, mesmo sentindo dor na cabeça, para espiar por entre as vigas da janela.
Tudo que eu vejo era mato, para tudo quanto é lado. Não tinha nada que eu conseguisse identificar, nenhum ponto de referência que me diga onde eu estou.
Também não ouço barulho de nada a não ser o farfalhar de folhas do lado de fora. Nenhuma voz, nada mesmo. Talvez eu tenha alucinado enquanto recobrava a consciência, talvez eles tenham me largado aqui para cuidar de algo mais importante.
Seth seria mais importante.
Meu coração acelera e meus olhos começam a olhar em volta em busca de algo que pudesse me ajudar a me livrar da madeira na janela. É nesse exato momento que a porta se abre, sem mais nem menos, sem me dar chance de disfarçar o que eu fazia.
É um vampiro. Identifico pelo aspecto pálido, o rosto perfeito e os olhos vermelhos. É um rapaz não muito alto, tinha a minha altura, seu cabelo era castanho e caía em cachos até o ombro. Era incrivelmente bonito e com uma aparência suave, não me sentia ameaçada ao vê-lo.
Ele ergue uma sobrancelha na minha direção.
— Eu preciso de água — murmuro, minha voz saindo mais estranha do que eu esperava.
A sede deixou minha garganta seca.
O vampiro dá de ombros e some, deixando a porta aberta, mal tenho tempo de pensar em dar um passo pra fora quando ele aponta de novo. Ele estende uma garrafa de água em minha direção e eu sou rápida em pega-la.
— Perdão senhorita, não sabemos como cuidar de humanos — ele diz, sua voz de soprano era fina e agradável aos ouvidos. — Vou tentar arrumar algo para a senhorita comer.
Mal presto atenção no que ele fala, preocupada demais em beber todo o líquido da garrafa. Me sinto muito melhor depois de me hidratar um pouco.
— Onde está a Isabel? — pergunto.
Ele me encara com os olhos vermelhos mas não diz nada, permanece parado como uma estátua sinistra.
— Você sabe se o Seth está bem? Os lobos da campina, vocês mataram eles?
— Eu não estava lá — é o que ele responde.
Franzo o cenho de inquietação, querendo gritar por não ter informação. Sou obrigada a engolir o bolo na minha garganta e manter minha expressão serena, não iria chorar na frente de nenhum deles.
Nossa troca de olhares sinistra é interrompida por um choro de bebê. Como assim aqui tinha um bebê? Eu pensei que talvez estivesse alucinando e...
— Hans, aquela coisa está chorando de novo! — ouço a voz de alguém gritar. Uma voz grossa e firme.
— Acho que você consegue lidar com ela — o vampiro na minha frente responde, dando as costas para mim.
Hans, esse era o nome dele.
— Não sabia que ia ter que passar o meu tempo sendo uma babá — o outro resmunga. Não parecia estar muito longe.
O bebê ainda chorava. Surpreendendo a mim mesma Hans sai do quarto e o deixa com a porta aberta.
— Não é tão difícil, é só ver se está com fome ou fez cocô — ele diz, sua voz se afastando um pouco.
Enfio a cabeça pro lado de fora da porta vendo um corredor ainda mais escuro que o meu quarto, iluminado por uma lâmpada amarela.
— Eu nunca cuidei de um bebê — o outro diz, a voz carregada de mau humor.
Alguém além de mim não estava feliz por estar aqui.
— Me dá ela — é Hans quem diz. Alguns segundos se passam e o bebê para de chorar. — Ela só queria colo. Segura.
Dou mais alguns passos pelo corredor e consigo ter um vislumbre das costas dos dois, mas nada do bebê.
— Por que você não segura?
Há uma longa pausa antes de Hans responder.
— Não posso — Hans murmura, a voz parecia triste.
Nesse momento percebo uma porta no fim do corredor, logo após a abertura em que eu os espiava num lugar que parecia uma cozinha, a porta parecia dar para um lugar do lado de fora.
Conseguia ver uma luz do dia escapando por entre as frestas.
Com todo o cuidado inclino meu pé pra frente e respiro profundamente, tentando fazer o mínimo de barulho possível.
— Se eu matar essa coisa sem querer Isabel vai arrancar minha cabeça — o vampiro número dois reclama.
— Então não mate.
Passo pela abertura que dava vista aos dois e continuo me arrastando pelo corredor, chegando cada vez mais perto da porta, mas então sou interrompida por uma voz descontraída.
— Ah, se eu fosse você não faria isso — é Hans quem diz isso.
Suspiro de frustração e me viro pra ele, ele tinha um celular em sua mão e estava encostado despreocupadamente no batente da porta. O bebê não fazia mais barulho, tudo estava silencioso de um jeito sinistro, somente minha respiração cortava o ar.
— Então ficaria sentado ali esperando a morte? — indago, cruzando os braços e passando por ele.
Volto para o lugar onde eu estava e nem consigo ouvir seus passos atrás de mim, só percebo pois ele continua falando.
— Olha, lá fora tem mais de nós e eles são mais novos e menos legais — Hans começa. — Eles caçaram tem pouco tempo mas vão te matar se sair correndo por ai. Já devia ter percebido que seguimos ordens.
— E quais são as ordens do momento?
— Não interessa a você, senhorita. Sente-se e espere sua comida chegar.
Minhas pernas obedecem ele e se dobram, fazendo com que eu me sente no fino colchão que cheirava a mofo.
— Você é um grosso — murmuro, mesmo sabendo que era mentira.
Na verdade a companhia poderia ser bem pior.
— E você fala demais — Hans rebate. — Fique logo quieta antes que eu decida te deixar com fome.
E é isso que eu faço. Hans some pela porta, a fechando assim que sai, e não ouço um só ruído até ele voltar depois de algum tempo com uma caixa de pizza.
Como pelo menos quatro fatias, só então percebendo o quanto estava com fome. Ele volta com mais água alguns minutos depois e me deixa sozinha de vez, trancando a porta quando saiu.
O sol começa a sumir das frestas e o ambiente se torna frio. Me abraço, tentando manter o calor no corpo.
Minha cabeça começa a processar tudo o que havia acontecido e o que talvez viesse a acontecer. Está mais do que claro pra mim que Isabel tem um problema com a Alex, algo mal resolvido e um ressentimento enorme mas ainda não sei exatamente o motivo. Ela andou procurando Alex por muito tempo e foi por isso que seu amigo morto Elijah me encontrou. Seth o matou para me proteger e isso desencadeou uma ira maior ainda em Isabel.
Agora resta saber se a ira tem a ver com o Elijah ou somente com saber que Alex estava vivendo numa tribo indígena de lobos por todo esse tempo. Algo no ódio de Isabel me faz pensar que ela chegou um dia a amar Alex e agora só quer vingança.
E ela me pegou, então deve saber que Alex se importa comigo. E se importa com Seth. E eu me importo com Seth.
Esses pensamentos me causam azia, sinto vontade de vomitar toda a pizza que eu comi. Talvez não haja um jeito de todos ficarmos vivos, talvez eu tenha que escolher entre os dois assim como ela havia proposto, talvez eu deva somente morrer e me poupar dessa escolha.
Um bolo surge em minha garganta mas trato de me desfazer dele no momento em que a casa volta a fazer barulho. O bebê solta alguns grunhidos e conto os segundos até ouvir minha porta ser destrancada.
Quem aparece é Isabel, vestida toda de preto e com uma bota até os joelhos. Seus cabelos loiros brilham assim como suas íris carmim.
— Olá Merliah — sua voz é clara e linda.
Tchau Merliah. Foi o que ela havia dito quando me acertou na cabeça. Demoro alguns segundos encarando seu rosto perfeito enquanto tentava me lembrar se havia falado meu nome pra ela quando nos encontramos mais cedo.
A resposta é não. Eu não havia falado.
— Não me lembro de ter me apresentado — digo, mantendo meus olhos fixos aos dela.
Ela sorri e podia jurar que vi seus dentes brilharem.
— Não precisou — Isabel diz, se agachando para ficar na mesma altura de meus olhos. — Assim que deixou Seattle seguimos seu cheiro até um tal de James...
Ela deve ter ouvido meu coração se acelerar pois em seguida acrescenta:
— Não se preocupe, não matamos ele, tinha um bebê lá, não vou destruir a infância de um pobre bebê. Mas vi algumas coisas interessantes antes de ele pegar o voo dele para Nova York. Algumas fotos, roupas com seu cheiro e uns e-mails antigos. E claro, uma conversa interessante dizendo como você havia o trocado por um tal de Seth. Os primos dele não ficaram muito felizes por você ter aparecido lá.
Me arrepio ao pensar em James tão perto deles. James que foi tão bom pra mim e estava envolto na segurança de sua vida normal, uma vida sem monstros te assombrando.
— O quer de mim? Vai me matar?
Isabel aponta para a caixa de pizza.
— Eu não gastaria meu dinheiro nesse treco fedido se fosse pra te matar. Tenha certeza disso.
— Então quais são seus planos? — pergunto.
Ela se levanta e se espreguiça, como se ficar naquela posição estivesse incomodando, algo que eu sei que não é possível. Isabel anda de um lado pro outro, uma expressão pensativa em seu semblante.
— Não sei se estou com ânimo pra falar agora, tive um embate divertidíssimo hoje à tarde. Acredita que finalmente achei seu cachorrinho? Estava correndo na floresta, não sei como ele achou você, mas já pegamos ele.
Meu coração dá um salto e me ponho de pé, fechando a mão em punhos. O que eu ia fazer? Bater nela? Só se eu quisesse quebrar todos os meus dedos.
Mordo meu lábio inferior para impedir que ele trema e me recuso a deixar as lágrimas invadirem o meu rosto, eu não ia dar esse gostinho à ela, já não basta o sorriso convencido que ela exibe após minha reação.
— O que você fez com ele? — pergunto, entredentes.
Ela balança a cabeça como se descartasse algo.
— Por enquanto nada, isso depende de você na verdade. Preciso que me faça um favor.
Respiro profundamente e abro minhas mãos.
— O quê?
— Se livre de alguém.
— Me livrar?
— É, matar.
A palavra me causa um certo choque mas não deixo isso me abalar.
— E por que você não faz isso?
— A pessoa que eu quero que mate se chama Calvin, ele é um lobisomem, um dos poucos do mundo. Nós tínhamos um trato e ele descumpriu a parte dele. Mas por ser um lobisomem ele consegue reconhecer o meu cheiro, cheiro de qualquer vampiro na verdade, é por isso que ninguém aqui pode fazer isso.
Então ela realmente quer que eu... Como ela pode pensar que eu faria algo assim?!
— Não vou matar uma pessoa, isso está fora de cogitação! — exclamo, um tom de voz mais alto do que pretendia.
Isabel dá de ombros e então sussurra:
— Tudo bem.
— Tudo bem? — repito, estranhando sua resposta.
— É. Matamos você, matamos Seth e vocês podem ter o final trágico de vocês assim como Romeu e Julieta. Eu e meu pessoal vamos embora com o sentimento de vingança saciado e todos vivem felizes para sempre. Menos vocês dois, claro.
O sentimento de impotência me atinge e sinto vontade de gritar. Então era isso? Ou eu matava ou eu morria? Garantir o sofrimento de outra pessoa ou garantir o meu próprio?
— Por que está fazendo isso? — murmuro, minha voz falha no final.
A expressão de Isabel não amolece.
— Sabe Merliah, esse não era meu plano pra você mas você me irritou bastante. Acho que já deve ter percebido que não gosto de garotas que falam demais ou opinam demais, deve ser por isso que Alex fugiu de mim. Mas você me irritou, você olhou no meu rosto e disse que eu sou um monstro? Eu? Um monstro? Por sobreviver e querer vingança pelo que o seu lobinho fez?! Você olhou pra mim e viu um monstro, quero que olhe no espelho todo dia e veja um monstro também. É pegar ou largar.
Ela era louca e vingativa. Tudo isso é vingança, tudo isso é ela agindo como Deus somente por saber que pode. Isabel quer controlar os outros e o único jeito de salvar Seth é me deixar ser controlada.
— Se eu fizer isso vai soltar o Seth? — pergunto.
— Claro.
— Quero que me dê sua palavra.
— Te dou minha palavra que Seth voltará pra casa — Isabel responde prontamente.
Limpo a lágrima que escorre por minha bochecha antes de dizer.
— Então considere feito.
Gente, muito feliz por vocês não terem me abandonado! Sério!
Muito obrigada pelas 20mil views e muito obrigada por todos os votos e comentários.
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