035 - Kalokagathia

“Uma jornada de mil milhas começa com um único passo.”

– Lao Tzu.

Kalokagathia (de origem grega) - Um ensinamento platônico baseado na filosofia de um todo corporal, moral e espiritual.

   — A vítima levou um tiro na perna e quase 1,5L de sangue foram perdidos. É uma emergência!

   Respirei com dificuldade enquanto observava os policiais agitados ao meu redor, meus olhos no homem inconsciente, imóvel na maca. Sangue escorria de seu ferimento, encharcando a peça de roupa amarrada em sua perna.

   A ferida era profunda, só podia esperar que não tivesse danificado a fíbula.

   Era como ver o mundo preso em uma casa de vidro.

   Tudo parecia irreal, como uma ilusão, mas o conhecimento de que era real me assombrava, me incomodava e se instalava profundamente dentro de mim como uma doença maligna.

   Tentei procurar por qualquer coisa que pudesse tirar meu entorpecimento. Nada. Eu não descobri nada.

   — Loren — a voz de Archer me trouxe de volta à realidade.

   Ele parecia maltratado, cinzas negras cobriam sua pele. Seu cabelo normalmente limpo estava uma bagunça e ele parecia ter envelhecido cem anos nos últimos minutos.

   — Os policiais confirmaram — luzes azuis e vermelhas criaram um tom de roxo, sombreando sua pele revestida de cinzas. — Liam está morto. Eles verificaram seus registros. Aparentemente, ele estava tentando escapar do país com um passaporte falso e mudar ilegalmente seu nome. Permaneceu sem sucesso por 13 anos.

   Uma respiração me escapou. Eu me senti tonta.

   — Eles invadiram os aeroportos também, deveriam encontrar Betânia em um deles — sua carranca se aprofundou quando seus olhos pousaram no sangue seco em meu pescoço. — Vamos, Lô, vamos fazer um curativo em você.

   — Hum? É… — eu estava atordoada, não sabia o que fazer ou como reagir.

   Um suspiro me escapou quando ele agarrou minha mão sem dizer nenhuma palavra e me arrastou para a ambulância que Ares estava sendo medicado.

   Entrei e ele seguiu meu exemplo, fechando a porta do veículo.

   — Ele vai ficar bem? — sussurrei para a enfermeira que estava ocupada apertando sua máscara de oxigênio

   — Deverá ficar — ela murmurou enquanto injetava anestésicos nele. — Sua única preocupação por enquanto deve ser a perda de sangue, se não houver nenhuma complicação médica que tenha sido desinformada.

   — Não há, garanto a você — balancei a cabeça. — Fui nomeada sua enfermeira pessoal e cuidadora. O único problema que ele pode ter seria o enfraquecimento dos nervos devido aos danos na coluna.

   Seus olhos penetrantes se voltaram para mim, lançando-me um olhar cheio de julgamento.

   — Enfermeira?

   — Bem, não o caminho do bacharelado — eu me contorci na cadeira. — Me formo em 6,5 meses.

   — Ah, entendo — ela assentiu. — Seu dano na coluna deve ficar bem com algumas substituições de medula óssea. Espero que seu consultor tenha discutido isso?

   Eu balancei a cabeça.

   — Loren, sinto que você precisa saber disso — Archer falou após um silêncio prolongado, o leve balanço da ambulância contrastando com a sirene que perfurava o ar.

   — Sim?

   — Eu... sabia que havia algo errado comigo. Já sei há três meses.

   Meus olhos se arregalaram.

   — Comecei a me sentir mais estressado, mais tonto. Tive problemas de visão, náusea e privação de sono. Achei que era só meu trabalho me alcançando. Depois foi queda de cabelo, boca seca, irritação — um suspiro escapou dele, seu rosto se contorcendo de tristeza.

   Suas palavras eram como facas nas feridas.

   — Você nunca disse nada… — eu sussurrei, minha garganta queimando. — Se você tivesse dito alguma coisa—

   — Eu não estava em condições de fazer isso — ele suspirou. — E mesmo que estivesse, nunca deixaria Ares saber. Ele já tem o suficiente com que se preocupar.

   — Nada importa mais do que a sua vida, Archer — os pequenos detalhes de seu rosto que antes passavam despercebidos, ficaram proeminentes sob a penumbra da ambulância. As olheiras sob seus olhos. Pele flácida, maçãs do rosto mais acentuadas, pele mais pálida, tom roxo.

   Seus olhos estavam desprovidos do brilho que tinham quando o vi pela primeira vez.

   — Eu não sabia que era uma ameaça à vida — um suspiro escapou dele. — Eu visitei um médico quando você e Ares foram discutir seu transplante. Mais cedo naquele dia, eu vomitei três vezes e em todas saiu sangue. O médico disse que provavelmente era uma intoxicação alimentar e receitou remédios para isso, mas então eu tive febre… E no último dia em que visitei o médico, ele disse que eu tinha um sério dano no tecido nervoso que estava lentamente me deixando mais fraco. Meu sistema imunológico está fodido.

   Eu estava com medo de respirar, com medo de me mover. Com medo de que se eu estendesse um dedo e tentasse tocá-lo, ele não estaria lá.

   Uma gota de lágrima me escapou quando senti minha alma se despedaçar.

   Archer era importante para mim. Ele foi a única pessoa que se aproximou e fez amizade comigo. Eu não queria perdê-lo.

   Ele desviou o olhar para a estrada que passava, como se ainda tentasse compreender a realidade que se instalava entre nós.

   — Com licença? — a enfermeira falou. — Preciso fazer um curativo no seu ferimento.

   Balancei a cabeça e expus meu pescoço para ela. Um pequeno silvo me escapou enquanto ela limpava meu ferimento e o sangue seco.

   — Prometa-me que não vai deixar nada acontecer com você mesmo — eu falei, minha voz firme.

   Ele olhou para mim, com os olhos sombrios, arrasados. Ele parecia perdido, perdido e afogado em um mar de escuridão.

   A ambulância parou abruptamente. A porta foi aberta. Ares foi levado para fora.

   Tudo passou num borrão. Eu fui junto com ele, meus dedos acariciando sua bochecha fria enquanto ele estava inconsciente. Sua pele perdeu a cor, coberta de cinzas. Ele ainda estava lindo. Tão lindo.

   Um soluço me percorreu quando dei um pequeno beijo em sua testa, a agonia torcendo meu estômago quando a equipe me pediu para esperar do lado de fora da sala de operação. Eu fiquei lá, imóvel.

   Cada minuto que passava parecia uma eternidade. Cada respiração que me escapou só aumentou minha turbulência sem fim.

   Senti uma mão em meu ombro.

   — Lô, vamos sentar.

   Deixei que ele me guiasse através da multidão.

   O vazio me devorou viva, contorcendo-se, contaminando. Como se estivesse preso em uma névoa de inferno, mas o fim nunca chegou.

   — Tente se concentrar em sua respiração — a voz de Archer estava trêmula. — Ele vai ficar bem. Ele tem que ficar.

   Meus dedos foram para o pequeno pingente de borboleta que descansava em meu pescoço.

   Girei-o em minhas mãos, observando a linda pedra azul-celeste gravada na delicada borboleta dourada. Refletia arco-íris. Era como se eu tivesse uma parte dele comigo.

   Eu girei novamente. Vermelho, azul, amarelo, verde, roxo dançando nele, como as cores de um caleidoscópio. Parecia quase mágico. Foi como se Ares tivesse me dado um pedaço de arco-íris para admirar.

   Um toque de cor no meu preto e branco. Minha morte e sangue. Tudo o que estava entre os sete céus e as trombetas do apocalipse, eu estava perdida. Como um anjo com asas quebradas perdendo o rumo e acabando no inferno.

   Eu estava perdida em minha própria fenda de nada.

   — É um lindo colar — comentou Archer. — Safira?

   — Eu não sei — minha voz era apenas um sussurro. — Você acha que combina com meus olhos?

   Eu olhei para ele, as lágrimas escorrendo livremente.

   — Na verdade, está um pouco apagado, é um pouco mais escuro. É como um azul esverdeado e seus olhos são como um azul acinzentado.

   — Ainda está azul, não é? — eu sorri, minha voz falhando no final quando percebi o brilho do enfeite. — Pelo menos ele sabia que era azul.

   — Ele?

   — Ares — uma onda de melancolia tomou conta de mim, era ele.

   — Ele tem bom gosto quando se trata de coisas assim — ele ergueu o pulso, expondo um relógio prateado brilhante. — Ele comprou isso para mim quando eu fiz 10 anos.

   Um sorriso apareceu em meus lábios quando toquei o relógio.

   — É lindo.

   — Tenho certeza de que ele teria identificado a cor exata se pudesse — ele sussurrou.

   Antes que eu pudesse responder, seu telefone tocou.

   Ele franziu a testa, pescando e verificando o contato. Voltei a brincar com o pingente

   — Sim. Ok, o quê? — sua carranca se transformou em uma carranca. — Vamos conversar sobre isso — ele latiu e desligou o telefone.

   — Loren, era o chefe do hospital. Aparentemente, alguém lhe enviou por e-mail um pequeno vídeo de você e Ares se beijando.

   Meu coração caiu no estômago.

   — Devíamos entrar e resolver isso.

   — O que? — sussurrei enquanto meus piores pesadelos ganhavam vida, um após o outro.

   — Vamos — ele se levantou, pegou minha mão e me puxou com ele, nos direcionando para o escritório do chefe.

   Foi uma caminhada rápida até o escritório. Três batidas na conhecida porta de madeira seguidas por um áspero “Entre”.

   Entrei no escritório, abaixando a cabeça, me preparando para ver meu futuro se desintegrar diante dos meus olhos.

   Tudo pelo que trabalhei duro, cada centavo que economizei em vez de comer uma refeição, cada vez que tive que passar a noite em uma biblioteca para poder estudar, cada olhar malicioso que tive que ignorar quando trabalhei.

   Tudo.

   Justamente quando pensei que as coisas finalmente iriam melhorar para mim, tudo pelo que trabalhei desapareceu. Bem desse jeito.

   E a pior parte foi que eu mereci isso. A culpa foi minha.

   — Oh, Archer, você trouxe a Sra. Campbell com você também — sua voz era rouca. — Recebi um e-mail esta noite às 7h02, de uma conta anônima. Sra. Campbell, você poderia dar uma olhada?

   Ele me entregou seu telefone, que eu peguei e apertei o botão play, meus nervos aumentando.

   Meus olhos se arregalaram enquanto assistia ao vídeo começando com uma tela trêmula. Estava filmando a porta aberta do quarto de Ares, banhada pela escuridão. Observei com horror Ares me empurrar contra o batente da porta e começar a me beijar como se não houvesse amanhã. Lembrei-me desta noite, eu que entrei no quarto dele.

   Embora à primeira vista fossem duas silhuetas, se alguém olhasse mais de perto seria capaz de distinguir o contorno da máscara de Ares, meu rosto e cabelo.

   Abafei um soluço que ameaçou escapar de mim enquanto observava seus lábios deslizando pelo meu pescoço, minhas mãos enroladas em seu cabelo enquanto envolvia minhas pernas em torno dele.

   Minha mente rapidamente somou dois mais dois.

   A Betânia de quem eles estavam falando antes era a mesma que me prometeu que não revelaria meus segredos. Aquele que conversou comigo e brincou comigo. Eu pensava nela como uma amiga.

   O vídeo termina e eu não sabia se deveria ficar grata por não registrar o que aconteceu depois. O chefe pega seu telefone e me lança um olhar penetrante.

   — Você sabe que talvez não consiga frequentar a faculdade dos seus sonhos, certo? — encolhi ainda mais, sem encontrar seus olhos.

   — Agora me escute com muita atenção — Archer caminhou até o chefe, sua voz era ameaçadora, o suficiente para fazer um homem adulto chorar.

   — Você é nosso médico de família e praticamente administra este hospital com a caridade do meu irmão. Se quiser manter este hospital funcionando, sugiro que dê um passo atrás. Você não vai gostar do resultado da minha pesquisa de antecedentes.

   — M-Mas não podemos deixá-la enfiada aqui! — o chefe disse em tom defensivo. — E se isso já aconteceu antes? — ele me lançou um olhar. — Mesmo que eu feche os olhos para o caso do seu irmão, o que acontece se alguém aparecer e fizer a mesma afirmação?

   — Escute aqui — Archer afirmou friamente. — Loren é uma pessoa diligente, eficiente e trabalhadora. Tenho visto meu irmão progredir ao longo dos meses. Não apenas sua saúde mental, mas também sua saúde física melhorou melhor do que eu esperava. Acredito que Loren tem uma boa parte nisso.

   — Mas—

   — Sem mas — Archer articulou. — Eu entendo, no entanto, entendo que possa haver alguns problemas em relação aos funcionários do conselho. Espero que você reserve um tempo para negociar com eles. Estou claro?

   — Archer, você vai ter que entender — o chefe suspirou, com os ombros caídos enquanto me lançava um olhar desapontado. — Indico Loren e a recomendo pessoalmente porque ela é uma jovem talentosa que se dedica cem por cento em tudo. Você acha que não tenho conhecimento de sua diligência? Fui eu quem a recomendou.

   Um suspiro escapou de Archer quando ele cruzou os braços.

   — Vá direto ao ponto.

   — Mesmo que eu feche os olhos, a autoridade não o fará. E se eles descobrirem sobre ela? No final das contas, ela seria a única em apuros, não eu. Você entende que é contra a ética e os códigos, certo? Ela não vai se formar em medicina por anos!

   Archer olhou para mim.

   — Bem, encontre um jeito.

   — Eu sei sobre sua paixão pela área médica e as lutas pelas quais ela passou, mas isso não a desculpa simplesmente. Se for descoberta por uma autoridade superior, ela será colocada na lista vermelha — ele ajeitou os óculos, olhando para mim. — Eu esperava uma atitude mais inteligente da sua parte, Sra. Campbell. Você me decepcionou muito.

   A dor torceu minhas entranhas. Ele estava certo. Quando eu estava lutando para encontrar minha identidade de adolescente, ele me deu um emprego. Ele me incentivou e me orientou e até me comprou um ou dois livros didáticos com seu próprio dinheiro.

   Ele acreditou em mim quando ninguém acreditou.

   — Sinto muito — sussurrei. — Sinto muito por tudo.

   — Uma desculpa não vai resolver isso agora, vai? — um suspiro escapou dele. — Minha melhor solução por enquanto é pegar a carta de recomendação e se você dormiu com alguém antes disso, resolva internamente. Além disso, você vai partir para Baltimore em breve, certo? Quando as aulas vão começar?

   — Ainda tenho quatro meses, senhor.

   — Quatro meses devem ser suficientes para que os vídeos percam o rastro. Sugiro que você vá para a faculdade o mais rápido possível. Dentro de um ou dois dias.

   Eu congelei enquanto olhava para ele.

   — Que porra? — Archer disse. — Ir? Não há outra solução?

   — Receio que não. Não sei quem está com o vídeo e para quem ele foi enviado, então não tenho ideia da real extensão dos danos — Archer olhou para ele. — A reputação do meu hospital estaria arruinada se cair nas mãos de outros. É melhor ir embora e torcer para que ninguém mais tenha isso além de mim.

   — Lidar com a polícia não é uma tarefa difícil — resmungou Archer.

   — Não é. Principalmente se for uma violação médica. Siga o melhor conselho, é para o benefício dela. Tenho alguns contatos lá, alguns bons amigos que irão ajudá-la a se acomodar. Vá embora e só volte quando tiver certeza do que quer.

   — Eu não sei mais o que fazer — eu sussurrei, a ponta da minha língua congelando

   Eu estava me afogando cada vez mais, até que a única coisa que me rodeava era a escuridão. Meus pés pesavam como chumbo, minha respiração era superficial. Como um mergulhador perdido tentando encontrar o caminho através do fundo do oceano e a única luz que eu tinha eram as pedras cerúleas.

   — Não quero concordar com esta decisão — Archer suspirou. — Mas ele está certo, Loren. Não é seguro para você estar aqui. Você será colocada na lista vermelha de todas as faculdades de medicina. Tudo pelo que você trabalhou duro será em vão.

   Eu mexi meus dedos.
   Eu não queria deixar Ares e Archer. Eles se tornaram um porto importante da minha vida
   Tudo pelo que trabalhei também importava.

   — Isso significa que posso voltar quando acabar?

   Archer assentiu.

   — Vou garantir que isso aconteça em breve.

   Meus dedos agarraram o pequeno pingente com força enquanto minha mente voltava para o homem na sala de operação.

   É normal estar cercada pela escuridão às vezes. Não há problema em se afogar às vezes.

   Contanto que eu o tenha. Contanto que eu possa ser salva novamente.

   E enquanto ele me tiver…

   Uma solene gota de lágrima me escapou.

   — Posso… vê-lo? Antes de ir?


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