𝗖𝗮𝗽𝗶́𝘁𝘂𝗹𝗼 𝟮

Seus olhos ardiam pelo esforço de mantê-los abertos, as noites mal dormidas definitivamente estavam começando a fazer efeito.

Desanimada com a nova rotina Aya se propuseram a pelo menos tentar, desânimo não era desculpa para desistir de cara, ela tinha completa noção de que seria difícil se adaptar ao seu cronograma e quão complicado seria segui-lo dali em diante, algo insistente dentro de si a forçava ficar de pé. Poderia ser o seu impulso sentimental pelo passado, mas ela preferia pensar que era porque queria jogar na cara de Megumi Fushiguro que ela não precisava da ajuda dele, talvez ele não fosse tão esperto assim e que não passava de um garoto mimado.

Os dias que se passaram após a tenebrosa conversa dos dois foram insuportavelmente chatos e longos, ambos eram submetidos a ficarem horas no mesmo espaço, evitando um ao outro como duas crianças birrentas. Aya quase não controla a vontade avassaladora de revirar os olhos quando ouvia o timbre baixo e grave da maldita voz dele, agradecia muito por ele ser um idiota que odiava se comunicar, assim não precisava escutá-lo falar com frequência.

- Aí esse descarado viu que eu estava correndo pra pegar o elevador e não segurou a porta! - a garota bufou estressada, segurando os livros com uma força mordaz, ela estava tão irritada apenas de ter a presença dele ao seu lado - Tá ok que ele provavelmente me detesta, mas assim, segurar a porta do elevador para alguém atrasado é o mínimo de senso comum.

- E você esperava que Megumi Fushiguro iria ter empatia por você? Acorda Aya, você o mandou ir para o inferno. - Mahina disse óbvia, com os olhos vidrados no celular enquanto acompanhava a amiga até a sala - Eu também não seguraria.

- Você é uma versão dele um pouco mais sociável. - seus braços estavam começando a assar pelo contato do material dos livros com sua pele suada, estava tão quente que mal parecia primavera - Vou ao banheiro, pode segurar para mim? - a garota estendeu a pilha de livros para a amiga.

- Tenho opção de escolha? - Mahina finalmente tirou os olhos do celular, com a expressão entediada e indiferente.

- Não. - os entregou para ela dando as costas indo em direção ao banheiro feminino.

Tirou da mochila uma pequena bolsa com itens de higiene pessoal, de frente para o espelho passou seu desodorante e limpou o excesso de suor com uma toalhinha de algodão, e para evitar borrar a maquiagem, Aya se encarou no espelho passando a toalha estrategicamente, evitando os pontos como os olhos e nariz. Ela considerava um inferno esses processos, às vezes olhar o próprio reflexo era o equivalente a levar um tapa na cara, seus traços eram algo que aprendeu a odiar desde criança, a beleza que diziam que tinha nunca foi algo de prestígio.

A mesma garota sorridente e resmungona se tornava uma sombra melancólica quando se encarava no espelho e via sua verdadeira face. Os olhos cansados e vazios, foscos e turvos, nunca brilhantes. Se prestassem atenção o suficiente, perceberiam que em cada momento de silêncio vindo de Aya era um pedido de ajuda.

Os olhos são a janela da alma. A alma de Aya gritava por socorro e ninguém nunca escutava, era carregada em solidão, um tipo que apenas seu olhar era capaz de transmitir.

Mas nunca foram capazes de captar.

Respirou fundo com as mãos apoiadas na pia, com a cabeça baixa tentou por segundos intermináveis se recompor, pelo menos até ficar sozinha para poder chorar e descontar tudo o que sentia em si mesma. Sua garganta formava um nó, aquele dia em específico era um caos em terra, era difícil se manter de pé.

"Não me importo, mas se você quer ser gentil para ganhar o mínimo de aprovação, para não se sentir frustrada consigo mesma..."

As palavras duras do garoto ainda ressoavam em sua mente, não era o maior de seus problemas, mas também não era algo fácil de se esquecer. Saber que aquela era a visão que tinham dela, alguém em busca da aprovação dos outros e ainda por cima uma fracassada nisso, foi doloroso de se escutar. A compreensão nunca foi o ponto forte das pessoas ao seu redor, então não esperava que tivessem com ela, entretanto, alguém que nunca teve o mínimo contato decente com ela pensar isso era algo de se preocupar.

Aya era gentil, mas não por aprovação, e sim, porque não recebeu esse tipo de gentileza durante muito tempo. Não ser uma pessoa amarga para ela era uma virtude, mesmo depois de tudo, Aya nunca foi alguém mordaz ou severa, mesmo que a vida lhe desse motivos o suficiente para ser assim.

Ao escutar a porta do banheiro se abrindo rapidamente se recompôs, penteou os cabelos para trás com as mãos e tateou o uniforme na intenção de alisá-lo, piscou algumas vezes para seu reflexo tentando sorrir, estava falho mas dava para enganar.

- Morreu aqui dentro? - A amiga disse impaciente. - Ei, você está bem? - a expressão de Mahina se tornou preocupada, franziu as sobrancelhas prestes a se aproximar de Aya.

A garota sorriu para ela indo em sua direção para pegar os livros - Tive um imprevisto com o cabelo, acho que preciso comprar algum creme contra frizz. - Com maestria entrou em um assunto o qual não dava mais nenhuma abertura para perguntas referentes ao motivo de sua demora.

Aya era mestre na arte de esconder o que sentia. Mas nunca foi esperta o suficiente para esconder de si mesma.

***

O ambiente taciturno da clínica psiquiátrica transformava os poucos resquícios de bom-humor de Megumi em meras lembranças, não importava quantas vezes ele entrasse naquele lugar soturno, sempre teria a mesma sensação de desesperança. O excesso de claridade passou de algo que remete a limpeza para algo que te faz delirar de agonia dentro da própria mente - encarando o chão da sala de espera, segurando um pequeno buquê de tulipas, Megumi pensava no que fez de errado durante sua vida.

Desde a infância esse pensamento em particular rondava constantemente seus dias.

"Por que eu?"

Não entendia como alguém que mal tem idade para ser considerado um adulto ter tantas responsabilidades e pesares sobre suas costas, não era justo, nem um pouco, mas era como sua mãe dizia, "O mundo nunca será justo, sempre haverá alguém ou algo disposto a te passar a perna. Basta você aprender a como contornar isso e ser você a enganar os outros."

Entretanto, Megumi não se sentia bem em trair a confiança ou fazer qualquer coisa com métodos duvidosos, não porque era bondoso, e sim, porque não havia motivo algum para ser um filho da puta quando outras pessoas poderiam fazer isso por ele.

O mundo já é cheio de pessoas ruins e egocêntricas, ele não vê necessidade de estar no meio delas, todavia, isso custava muito para sua própria concepção.
Se ele fosse egoísta o suficiente deixaria sua mãe internada naquele lugar até ela não passar de uma velha que não consegue fazer as próprias necessidades sozinha, porém, não era uma opção viável ver sua mãe definhar por puro egoísmo. Tsumiki já havia feito isso, todos já haviam ido embora, ela estaria completamente sozinha no mundo se não fosse por ele.

Maldito amor materno que o impede de ir embora.

- Makoto Fushiguro - a voz da recepcionista tirou Megumi de seus devaneios, com rapidez e fluidez se levantou ao ouvir o nome da mãe, a mulher sorriu gentil encarando o garoto já familiar na clínica - Ela está no lugar de sempre. Aproveite a visita!

Megumi deu a ela um projeto de sorriso, dando o melhor de si no leve levantar de lábios, a mulher não se incomodava com a pouca comunicação ou demonstração de emoção do garoto. Já fazia cinco anos desde a primeira vez que ele foi visitar a mãe, acabou mesmo contra vontade entendendo como funcionava o garoto de pouca palavra.

As cerejeiras eram tão bonitas, tão lindas que não mereciam estar em um lugar tão árduo, carregado por sentimentos ruins junto a pessoas com pensamentos e atitudes tão questionáveis. O sol esquentava seu corpo, fazendo-o suar, camiseta preta com certeza não era uma opção viável para um dia tão quente.

Avistou a mãe sentada em um banco abaixo de uma cerejeira, olhando para nada em específico, sempre com aquela expressão vaga, perdida em mundo a parte do dele, viajando entre seus sonhos jamais realizados, porém, com a quantidade de medicação, sempre idealizados.

- Oi, mãe... - Megumi sempre mantinha a voz baixa ao falar com ela, ainda mais que a dosagem diminuiu, a mulher estava predisposta a ter ataques por conta de sustos.

A mulher já beirando os 40, com o cabelo começando a ficar grisalho, o encarou de supetão. Por um momento não reconhecendo o próprio filho, mas no segundo seguinte, sorrindo gentilmente ao identificar os traços delineados do garoto.

- Querido, você veio! - a voz de Makoto era fleumática e doce, reconfortante, lembrava Megumi de tempos fáceis em que ela o protegia de todo o mal. - Continua bonito. - a aparência fragilizada, os braços finos demais, cabelos perdendo o brilho, olheiras fundas, as bochechas não eram mais cheinhas como se lembrava da infância, eram encovadas.

Os médicos diziam que ela tinha dificuldade para comer ou dormir por conta do efeito dos remédios, por isso a diminuição repentina da dosagem.

- Obrigado - forçou um sorriso ladino dolorido, tentando ao máximo não transparecer o quanto era difícil vê-la naquela situação - Trouxe para você - ele entregou as flores que trouxera para a mãe que as observou com ternura, tratando-as feito jóias preciosas.

- Você é tão doce. - as mãos magras e pálidas pousaram delicadamente no rosto de Megumi, acariciando as bochechas do garoto com o polegar - É muito gentil da sua parte me visitar e me trazer flores.

Os olhos anuviados da mulher entregavam que não estava sóbria, as palavras saíam de seus lábios arrastadas, demorando-se nas sílabas, como se o cérebro de Makoto precisasse de fato processar cada letra para formar uma palavra.

Seu coração apertou, doía mais que milhares de cacos de vidro perfurando sua pele, bem mais que qualquer coração partido. Ver sua mãe definhar na sua frente e não poder fazer absolutamente nada para ajudá-la corrompia cada centímetro de seu ser, o olhar perdido de sua mãe rasgava seu âmago a cada piscada, transformando tudo que restava de uma criança feliz em amargura e desprezo por si mesmo.

- Por que meu garoto gentil está triste? - ela apoiou as mãos no próprio colo, o encarando com curiosidade, inclinando a cabeça para o lado analisando o rosto do filho - Aconteceu alguma coisa?

Megumi queria mentir, repetir as mesmas palavras que sempre dizia para ela, queria desviar de qualquer semblante de preocupação e escutá-la contar sobre seus sonhos esquisitos.

Mas ele estava tão cansado...

- Eu não sou seu garoto gentil, mãe... - os olhos de Megumi encheram-se de rancor e frieza, amargura por não aguentar mais estar naquela situação, a garganta se embolando em nós apertados e a voz embargada deformando as palavras sofridas - Eu sou só alguém perdido, nunca fui gentil. Eu sou uma péssima pessoa.

Quantas pessoas ele havia tratado mal só naquela semana? Todos os seus amigos estavam se afastando por seu constante mau-humor, porque ele não sabia distinguir e separar seus problemas pessoais da vida real, ele simplesmente descontava em quem quer que esteja ao seu redor, sem pensar, apenas despejava tudo na pessoa e esperava que toda sua raiva se esvaísse de si. Mas nunca ia embora, mas o arrependimento o circundava diariamente.

De repente a imagem da garota do clube veio a sua mente, as bochechas rosadas pela raiva, os olhos tristes e a voz histérica carregada de vergonha enquanto o mandava ir para o inferno, mudando-se para o momento exato em que ela disse que ele era desprezível. De fato, ela foi a primeira pessoa a confrontá-lo diante de tal situação, geralmente, seus irmãos simplesmente davam de ombros e ignoravam, guardando para si as palavras e atitudes duras de alguém que deveria ser o melhor deles, mas Ayame Aikyo não, ela o confrontou de primeira, não aceitou ser tratada de maneira grosseira e revidou e ainda revida diariamente quando entra no clube de cabeça erguida, sendo gentil com todos e fingindo que ele não passava de uma sombra ao canto.

Se sentia envergonhado ao vê-la perto, não conseguia se manter no mesmo ambiente e pensava constantemente em se desculpar. Com todos, não apenas com ela.

Entretanto, este era o desafio. Demonstrar sentimentos é difícil e complexo e requer maturidade e entendimento deles, Megumi não entendia e não processava os seus, bloqueando-os por completo.

Não sentir nada sempre foi reconfortante. Já sentir, sempre fora assustador.

Demonstrar arrependimento significava fraqueza, porque quebraram sua confiança uma vez, usaram aquele ínfimo sentimento contra ele mesmo, e após isso, nunca mais demonstrou absolutamente nada a outra pessoa. Era um problema, Megumi tinha noção de que não era bom guardar tudo para si e explodir quando acumula tensão, mas não sabia como controlar.

- Você não... Precisa guardar tudo para si - Makoto com sua voz embargada chamou a atenção do filho - Mas também não precisa contar. Tudo acontece no seu tempo, mas não pode deixar isso te prender para sempre. Aos poucos você vai longe, mas isso requer tentativas.

Talvez aquela fosse a primeira vez que sua mãe falou algo conexo, talvez aquele realmente fosse a primeira vez que ela entendesse algo referente a ele.

Talvez sua mãe estivesse mais sóbria do que qualquer outra pessoa a sua volta.

A mulher não parecia ter noção do que havia dito, mas lá no fundo, Megumi sabia que ela o entendia como ninguém, que ainda havia sombras da mulher esplêndida que um dia foi, da mãe espetacular que mataria e morreria por seu filho, de alguém que já fez isso por ele.

Mas não poderia irritá-la com seus problemas, sobrecarregá-la era sinônimo de inconstância no tratamento e o que menos queria era que ela piorasse.

- Poderia me contar sobre aquela mulher? - Megumi apontou para uma senhora que gritava aos quatro cantos sobre um soldado da segunda guerra mundial que perturbava seus sonhos, desviando completamente do assunto, sabia que sua mãe se perderia e provavelmente esqueceria.

Sua mãe, por mais avoada que fosse, ainda era inteligente, então substituía os livros que foram-lhes proibidos, por conhecimento de seus companheiros da clínica, ela sabia a história de cada um daquele lugar. O sorriso de sua mãe alargou-se e Megumi se propôs a escutar a doce voz melancólica contar uma história alucinógena sobre sua colega de terapia.

Fugir de sua realidade ouvindo a conturbada versão do mundo de outras pessoas, era com certeza, o único refúgio de paz de Megumi.

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