( 005 ) 𝐋𝐄 𝐏𝐑𝐄𝐌𝐈𝐄𝐑 𝐒𝐏𝐄𝐂𝐓𝐀𝐂𝐋𝐄 .
16 DE AGOSTO
Acordei com uma sensação estranha, como se meu corpo tivesse sido arrastado por quilômetros enquanto eu dormia. Cada músculo doía, pesado, como se algo estivesse errado, mas minha mente ainda estava nebulosa demais para processar qualquer coisa direito.
Abri os olhos com dificuldade, piscando algumas vezes para afastar a visão embaçada. A primeira coisa que notei foi o balanço suave da carruagem, o som das rodas rangendo no chão e o farfalhar das cortinas de veludo enquanto o vento as agitava levemente.
Olhei para mim mesma e meu estômago revirou. O que diabos eu estava vestindo?
Um body vermelho vinho justo, abraçando cada curva do meu corpo de um jeito quase indecente, e um ,tutu romântico branco, leve e volumoso, como se tivessem me vestido para um balé clássico enquanto eu dormia. Passei as mãos sobre o tecido, sentindo a textura delicada contrastando com a irritação que começava a crescer dentro de mim.
Levei alguns segundos para perceber que eu não estava sozinha.
Adam estava jogado no banco à minha frente, dormindo de qualquer jeito, como um cachorro preguiçoso esparramado ao sol. Sua cabeça pendia para o lado, os cabelos bagunçados cobrindo parte do rosto, e a respiração era tranquila, como se estivesse em casa.
Ao lado dele, Liam encarava a janela com sua habitual cara de coitado, os olhos perdidos no horizonte como se estivesse revivendo algum drama interno digno de um poeta trágico.
E, ao meu lado, René.
Ele estava completamente à vontade, segurando uma revista, virando as páginas com um ar entediado. Playboy, para ser mais específica.
Meu rosto se contorceu em desgosto. Sério?!
──── Acordou, boneca? ──── René perguntou sem desviar os olhos da revista, o canto da boca se erguendo em um sorriso preguiçoso.
Eu respirei fundo, tentando não explodir no primeiro segundo de consciência.
──── Onde caralhos estamos agora?! ──── soltei, bufando, sentindo a raiva fervendo no meu peito.
René revirou os olhos como se a minha pergunta fosse a coisa mais óbvia do mundo.
──── Somos um circo, esqueceu, linda? Estamos indo fazer um show ────
Meu maxilar travou. Aquele tom de superioridade, aquela maneira irritante e condescendente de falar, me fez querer arrancar a revista das mãos dele e jogar pela janela.
──── E ninguém achou necessário me acordar e me avisar antes de simplesmente me colocar nessa droga de roupa e me jogar nessa carruagem?! ──── Cruzei os braços, sentindo a saia volumosa do tutu se espalhar ao meu redor.
──── Você parecia confortável dormindo ──── René deu de ombros, finalmente me encarando. ──── E, sinceramente? Você fica adorável assim. Uma verdadeira boneca de porcelana ────
A forma como ele disse aquilo fez meu sangue ferver ainda mais.
Liam soltou um suspiro ao meu lado, claramente já esperando que a discussão começasse. Adam, por outro lado, resmungou alguma coisa no sono, virou para o outro lado e continuou dormindo.
Eu podia sentir que aquele dia ia ser um verdadeiro inferno.
René bateu o bastão que segurava no chão com um som seco e ritmado, como se estivesse marcando o compasso de um espetáculo invisível. Seu olhar deslizou até mim, e um sorriso carregado de mistério surgiu em seus lábios.
──── Cuidado com os pés, boneca ──── murmurou, sem pressa, a voz baixa, mas firme o suficiente para me fazer prestar atenção.
Antes que eu pudesse perguntar do que ele estava falando, o chão da carruagem estremeceu levemente. No espaço entre nós, bem no centro, uma mesa de xadrez surgiu do nada, seus detalhes entalhados na madeira antiga brilhando sob a luz fraca. Mas o que realmente chamou minha atenção foi a pequena boneca de porcelana que apareceu junto com ela.
Era uma bailarina. Delicada, impecável, com um tutu minúsculo e as pernas finas moldadas em uma posição clássica. Seus braços estavam erguidos, como se estivesse prestes a girar, e seu rosto pintado carregava uma expressão vazia. Uma máscara de perfeição inquebrável.
Eu engoli em seco, a tensão crescendo no meu peito.
──── Está vendo? ──── René perguntou, pegando a bonequinha entre os dedos e girando-a levemente. A bailarina começou a rodopiar no tabuleiro como se estivesse viva. ──── Esse é o palco. Vou te explicar como o show funciona ────
A forma como ele disse aquilo me fez sentir um arrepio subir pela espinha.
Liam desviou o olhar para a janela, a mandíbula tensa, como se já soubesse o que viria a seguir. Adam, ainda meio adormecido, abriu um dos olhos, apenas o suficiente para observar a cena com um sorriso preguiçoso.
──── Me poupe do drama, René ──── resmunguei, cruzando os braços. ──── Se quer me ensinar alguma coisa, faça isso sem toda essa encenação ────
Ele riu baixinho, balançando a cabeça.
──── Ah, boneca... O circo é feito de encenação ────
Com um movimento ágil, ele girou a bailarina mais uma vez, e a peça começou a se mover sozinha, dançando lentamente pelo tabuleiro de xadrez como se estivesse sendo guiada por cordas invisíveis.
Meu coração apertou. Eu já sabia o que aquilo significava.
A bailarina era eu.
──── A boneca só aparece quando é chamada. No final do show ──── René declarou, girando levemente a bailarina no tabuleiro, como se estivesse revelando um grande segredo.
A pequena boneca começou a se mover sozinha, deslizando pelo tabuleiro de xadrez em uma dança precisa e hipnotizante. Seus movimentos eram suaves, quase etéreos, e então, como se fosse atraída por uma força invisível, ela se dirigiu até uma peça masculina no tabuleiro, um homem vestido de mágico.
René.
Eu observei em silêncio enquanto a bailarina girava ao redor do mágico, seus passos seguindo um ritmo invisível. Era uma dança ensaiada, meticulosamente planejada, como se cada giro já tivesse sido coreografado muito antes de eu sequer chegar ali.
──── O público ama quando eu danço com uma garota linda como você ──── René disse, sem tirar os olhos do tabuleiro. Um sorriso apareceu no canto de sua boca, aquele sorriso típico, cheio de arrogância e segundas intenções.
Cruzei os braços, estreitando os olhos.
──── Você sabe dançar? ──── zombei, inclinando ligeiramente a cabeça.
René ergueu o olhar para mim lentamente, e algo em seus olhos faiscou, uma mistura de diversão e desafio.
──── Sei conduzir ──── Ele rebateu, pegando a peça do mágico e fazendo-a girar ao redor da bailarina. ──── E isso é tudo o que importa, não é, boneca? ────
Adam soltou uma risada baixa ao fundo, ainda largado no banco, mas claramente se divertindo com a troca de provocações.
Puta merda, quando ele acordou?
──── Ele não está errado, boneca ──── murmurou, sem abrir completamente os olhos. ──── Todo show precisa de um líder... e de alguém para ser conduzido ────
Liam continuava calado, observando a paisagem pela janela, mas sua postura rígida me dizia que ele estava ouvindo cada palavra.
Me inclinei para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, encarando René de perto.
──── E se a boneca se recusar a dançar? ────
René sorriu, um brilho afiado nos olhos.
──── Ah, Rebecca... Até mesmo as marionetes mais rebeldes acabam cedendo à música certa ────
Ele girou a bailarina mais uma vez no tabuleiro, e naquele momento, tive a sensação inquietante de que ele não estava apenas falando sobre o show. É claro que não estava falando apenas do show.
A carruagem parou abruptamente, jogando meu corpo para frente antes que eu pudesse me segurar. O impacto fez o tabuleiro de xadrez deslizar ligeiramente sobre a mesa, e eu quase caí do banco.
Antes que isso acontecesse, René reagiu rápido.
Seu braço se esticou à minha frente, impedindo que eu fosse arremessada contra ele. Mas sua mão não parou no meu ombro ou no meu braço. Ela pousou com firmeza na minha coxa, os dedos pressionando a pele do tutu.
Minha respiração ficou presa na garganta, e por um segundo, tudo ao meu redor pareceu desacelerar. O toque dele era forte, quente e invasivo, como se marcasse território sem precisar dizer uma palavra.
Liam, que até então estava imóvel, lançou um olhar furtivo para a cena, os lábios se apertando em uma linha tensa. Adam, por outro lado, apenas soltou uma risada rouca, sempre divertido com o caos.
──── Me desculpem! ──── A voz de Hugo ecoou do lado de fora, confirmando que ele estava conduzindo a carruagem. Pelo som, parecia que ele havia puxado as rédeas bruscamente.
René soltou um suspiro irritado, tirando alguns fios de cabelo do rosto com a outra mão enquanto ainda mantinha a firmeza na minha coxa.
──── Vai se foder, Hugo! ──── Ele rosnou, a voz carregada de frustração.
Seus dedos se apertaram um pouco mais antes de finalmente se afastar, como se quisesse deixar a sensação gravada na minha pele.
Eu, no entanto, não deixei barato.
──── Que cavalheiro, René ──── Minha voz escorria sarcasmo enquanto eu alisava a saia do tutu, empurrando qualquer vestígio do toque dele para longe.
Ele sorriu de canto, ainda afastando os cabelos bagunçados do rosto.
──── Sempre sou ──── Seu tom era despreocupado, mas os olhos diziam outra coisa.
A carruagem começou a se mover novamente, o balanço mais suave desta vez, e a tensão no ar ficou ainda mais densa. Algo me dizia que esse show seria muito mais do que apenas uma simples apresentação.
Alguns minutos depois, a carruagem finalmente parou, dessa vez de maneira muito mais suave, sem sustos ou freadas bruscas. O silêncio foi quebrado quando a porta se abriu, revelando Hugo com seu sorriso casual, como se não tivesse quase nos jogado para fora da estrada momentos atrás.
──── Chegamos, amigos ──── Ele anunciou, apoiando-se na lateral da carruagem como se fosse o anfitrião de uma grande festa.
René bufou dramaticamente, visivelmente ainda irritado, e começou a se inclinar para sair primeiro. Mas antes que pudesse colocar um pé para fora, Hugo ergueu uma mão, interrompendo-o no meio do movimento.
──── Primeiro as damas, princesinha ──── Ele provocou, seu sorriso se alargando.
O ar ficou suspenso por um breve segundo. Eu e Liam prendemos a respiração, já esperando a explosão.
E ela veio.
──── Princesinha é o seu cu! ──── René quase gritou, sua voz carregada de indignação e ofensa.
O choque do momento foi tão absurdo que eu e Liam tivemos que morder o lábio para não explodir em risadas. Mas Adam? Adam perdeu completamente o controle.
Ele soltou uma gargalhada alta e descontrolada, jogando a cabeça para trás como uma criança que acabou de ver a coisa mais engraçada do mundo.
──── Meu Deus, René! ──── Ele conseguiu dizer entre risos, praticamente se dobrando no banco.
Hugo apenas levantou as mãos em rendição, fingindo inocência.
──── Ei, eu só queria ser educado ──── Ele piscou para mim antes de dar um passo para trás, abrindo caminho para que eu saísse primeiro.
Ainda segurando o riso, olhei para René, que agora me encarava com os olhos semicerrados, claramente me desafiando a dizer alguma coisa.
──── Se quiser, posso te emprestar uma tiara ──── Provoquei, levantando uma sobrancelha enquanto ajeitava minha saia volumosa.
René fechou os olhos por um segundo, respirou fundo e passou a mão pelo rosto.
──── Eu juro por Deus que um dia ainda mato vocês ────
──── Mas hoje não ──── Liam murmurou com um pequeno sorriso, finalmente quebrando seu silêncio.
Com um revirar de olhos, René saiu da carruagem resmungando baixinho, enquanto Adam ainda se recuperava do ataque de riso.
──── Bom, pelo menos já começamos a noite com um espetáculo ──── murmurei para mim mesma, descendo logo em seguida.
Caminhei rapidamente atrás de Hugo, tentando acompanhar seu ritmo enquanto meus pés afundavam levemente na terra batida. O ar ao nosso redor estava carregado com um cheiro misturado de serragem, ferro e algo doce.
──── Onde estamos exatamente? ──── perguntei, sentindo um frio na barriga que não vinha apenas do clima.
Hugo continuou andando sem diminuir o passo, as mãos enfiadas nos bolsos, a postura relaxada demais para alguém que acabava de anunciar uma bomba.
──── A sede do Circo Fantasmes Maléfiques, boneca ──── Ele virou a cabeça para mim com um sorriso lento. ──── Londres ────
Parei imediatamente, meus pés travando no chão como se tivessem sido cimentados.
──── O quê?! ──── exclamei, arregalando os olhos. Londres?! Como assim Londres?!
Meu coração deu um salto, e um milhão de perguntas passaram pela minha cabeça ao mesmo tempo. Quando saímos da cidade? Como eu não percebi? Quanto tempo estive dormindo naquela maldita carruagem?
Liam, que caminhava um pouco atrás, finalmente se aproximou e suspirou.
──── É o nosso ponto fixo. Sempre voltamos para cá depois das turnês ────
──── E ninguém achou que seria uma boa ideia me contar isso antes? ──── Cruzei os braços, sentindo uma mistura de raiva e desorientação.
──── Você ia surtar de qualquer jeito, então achei melhor economizar tempo ──── René apareceu ao meu lado, completamente indiferente à minha indignação.
Soltei um suspiro pesado, esfregando o rosto com as mãos. Inacreditável.
Levantei o olhar para o lugar à nossa frente. A sede do circo.
A estrutura era imensa e decadente, um misto entre algo saído de um circo dos sonhos e um castelo abandonado. Lanternas antigas iluminavam os portões de ferro ornamentado, que se erguiam altos e imponentes, como se estivessem ali para aprisionar almas. Mais além, tendas gigantescas emergiam da névoa noturna, com suas lonas bordadas em tons de vinho e preto, tremulando levemente ao vento.
O circo parecia vivo.
Engoli em seco, sentindo um arrepio subir pela minha espinha. Eu não sabia se estava prestes a entrar em um espetáculo grandioso ou em um pesadelo do qual nunca mais sairia.
──── O show vai começar agora, mas depois eu faço um tour pelo circo ──── Hugo sussurrou no meu ouvido, sua voz rouca enviando um arrepio pela minha pele. Antes que eu pudesse reagir, senti sua mão deslizar até minha cintura, os dedos firmes, mas sem pressa, como se estivesse testando os limites.
Eu travei a mandíbula, tentando decidir se afastava sua mão ou apenas ignorava, mas não precisei escolher.
Num segundo, Hugo estava ali, relaxado, cheio de charme. No outro, René o empurrou com força, passando entre nós como uma tempestade prestes a explodir.
O impacto fez Hugo dar um passo para trás, mas ele apenas sorriu de canto, divertido demais com a reação de René.
──── Ciúmes, querido? ──── provocou, ajeitando a lapela do casaco com uma calma irritante.
René não respondeu. Apenas passou por mim com um rosnado baixo, os ombros tensos e a energia ao redor dele pesada o suficiente para fazer o ar vibrar.
──── Palhaço ──── murmurei, revirando os olhos enquanto observava sua silhueta desaparecer na escuridão.
Hugo riu baixinho ao meu lado.
──── Engraçado... Ele odeia essa palavra ────
──── Ótimo. Vou repetir sempre que puder ────
Hugo me lançou um olhar curioso, os olhos brilhando como se estivesse analisando cada reação minha.
──── Você é mais perigosa do que parece, boneca ────
Eu dei um pequeno sorriso, o tipo que não revela nada.
──── E você não tem ideia ────
O show ia começar.
E eu queria ver ele pegar fogo.
Estava tudo preparado. O palco iluminado, o bando de idiotas em suas posições, a plateia inquieta nas sombras, esperando pelo espetáculo. Mas eu não olhava para nada disso. Minha atenção estava em outra coisa.
Ou melhor, em outra pessoa.
Rebecca.
Ela estava ali, com aquele maldito tutu e o body que desenhava cada curva do seu corpo. A maquiagem de boneca fazia seus olhos parecerem ainda maiores, e o laço no cabelo era um toque cruelmente perfeito para a fantasia. Ela parecia frágil, delicada... Uma verdadeira bailarina de porcelana.
Mas eu sabia que havia algo sob aquela máscara de perfeição. Algo indomável. Algo que ainda precisava ser quebrado.
Hugo estava perto demais. De novo.
Vi quando ele sussurrou algo no ouvido dela, a boca perto demais da sua pele. A mão dele deslizou até sua cintura, um toque tão casual que teria passado despercebido para qualquer um. Mas não para mim.
Antes que ele tivesse a chance de se afastar, eu o empurrei.
Foi um movimento rápido, seco, sem palavras. Mas ele entendeu.
Eu passei entre eles como um aviso silencioso, sentindo meu sangue ferver, minhas mãos coçando para fazer algo que eu não deveria.
──── Palhaço ──── Ouvi Rebecca murmurar atrás de mim, o tom carregado de sarcasmo.
Ótimo.
Se ela queria brincar, então eu jogaria.
Mas não com palavras.
O show estava prestes a começar. E eu sabia exatamente como fazer Rebecca dançar conforme a minha música.
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