2. Como (não) fugir de encrenca
🦋 CALLIE
O Malone's não era um lugar ruim pra se trabalhar se os clientes não fossem levados em consideração. O Sr. Blood era bem razoável e alto astral pra um gerente e já havia ficado claro que ele tinha uma quedinha por Martha, uma das garçonetes mais velhas. Howard Malone, o dono, quase nunca aparecia mas hoje havia resolvido dar o ar da graça no horário do café o que amedrontou metade da cozinha.
Tive que esperar ele ir embora pra encobrir o JJ sobre sabe-se lá o que ele estivesse fazendo. O Blood seria mais fácil de enrolar sem o Howard na cola dele. Inventei uma gripe e torci pra que JJ não aparecesse em algum video no Instagram exalando saúde ou algo do tipo.
Com sua ausência fui realocada para as entregas, cumprindo hoje as tarefas de JJ. É quase hora do almoço quando estou em minha quinta entrega, o Malone's fica na área dos Kooks, sendo assim, só é frequentado por Kooks o que faz com que eu consiga entregar os pedidos de bicicleta sem nenhum problema.
Paro no gramado da casa gigantesca de Ward Cameron e fico um tanto reflexiva antes de entrar na casa. Entramos geralmente pela porta dos fundos, nunca pela frente. A porta estava aberta mas não havia ninguém na cozinha.
— Senhor Cameron? — murmuro, atravessando a porta.
Dou um giro pela cozinha gigantesca, apreciando a boa iluminação e os bons móveis, o tipo de vida que nem 10% dos Kooks eram capazes de ter.
— Ah, olha só quem está aqui — eu ouço e me viro imediatamente.
Lá estava ele, Rafe Cameron, com óculos de sol na cabeça, chinelos e uma bermuda azul. Me desconcentro um pouco com seu abdômen exposto e o sorriso amigável em seus lábios.
— Seu pai está? — pergunto, erguendo as sacolas em minha mão.
— Na verdade fui eu que pedi — responde, se aproximando.
Estendo seu pedido em sua direção e seus dedos gelados encostam nos meus quando envolvem a alça da sacola.
— Certo — pigarreio. — Está tudo aqui. Ficou em 87 dólares.
Rafe assente e começa a tirar tudo de dentro das sacolas, colocando no balcão. Havia comida o suficiente para muitas pessoas ali mas eu não ouvia barulho vindo de outro lugar da casa. Cruzo os braços e aguardo sua boa vontade em me entregar o pagamento para que eu finalmente possa dar o fora daqui.
Ele termina o que está fazendo e vira sua cabeça em minha direção.
— Não vai me dizer seu nome?
— Callie — respondo, um pouco desconfiada de suas intenções.
— Me desculpa pela confusão no Malone's no outro dia.
— Você não fez nada — cruzo os braços, desviando o olhar. Alguma coisa nele me deixava um tanto sem graça, talvez sua total falta de vergonha na cara para me encarar sem nenhum pudor.
— Exatamente... Eu deveria — diz, dando dois passos em minha direção. — Olha, vai ter uma festa amanhã, você devia aparecer.
Minha expressão se desmancha em total descrença.
— Não estou entendendo, você está me chamando pra uma festa?
Rafe exibe os dentes em um sorriso divertido.
— Não posso?
— Você é um Kook — observo.
— E você uma Pogue, por agora pelo menos.
O observo abrir a carteira enquanto tentava processar o que estava acontecendo. Rafe tira uma nota de cem e estende na minha direção, me fitando com seus olhos claros e um tanto perturbadores.
— Seu amigo quase matou o John B — digo a primeira coisa que vem em minha cabeça enquanto tento procurar o troco entre o dinheiro em meu bolso.
— E o seu apontou uma arma pro Topper, acho que isso iguala um pouco as coisas.
— Ele não ia atirar — garanto, estendendo treze dólares em sua direção. Rafe o rejeita com um aceno de cabeça.
— E como sabe disso?
— Eu só sei.
Rafe levanta suas sobrancelhas em minha direção com uma expressão divertida em seu rosto. Era estranho vê-lo assim, agindo como uma pessoa normal, me pergunto até aonde as histórias sobre ele eram verdade.
— Rafe a... — olho pro lado e vejo o quase assassino do John B entrando na cozinha. — O que tá fazendo com ela?
Rafe revira os olhos e se vira pro amigo.
— Era só o que me faltava — murmuro, colocando meu cabelo atrás da orelha. — Estou indo, obrigada pela gorjeta...
— Não — Rafe pede, se virando pra mim. Em seguida, se vira para seu amigo novamente. — Topper, sai daqui.
O tal Topper franze as sobrancelhas em descrença.
— O que?
— Eu mandei sair daqui — Rafe insiste, conseguia sentir a grosseria em seu tom de voz. — Vaza. Agora.
Topper revira os olhos e me olha com desprezo antes de sair pela mesma porta por onde entrou. O clima tenso me incomoda, o jeito que estou sendo tratada me incomoda. Kooks não costumavam ter o mínimo interesse em garçonetes Pogues que não tem onde cair morta.
— O que você quer de mim? — indago, meu tom de voz soando mais grosseiro do que eu pretendia.
— Só quero que vá a festa.
— E o que ganha com isso?
— O prazer da sua companhia?
Isso me faz revirar os olhos. Só pode ser algum tipo de piada, do tipo que eu apareço e eles zombam de mim ou algo assim.
— Não vai rolar, tenho que trabalhar.
— Nem depois do expediente?
— Sem chance — decreto, indo em direção a porta.
— Não gosta de mim não é?
Respiro profundamente e me atrevo a olha-lo novamente. Seus olhos quase demonstravam algum tipo de emoção que se perdiam por trás de uma máscara turva de medo.
— Olha Rafe, obrigada pelo convite mas devia procurar alguém da sua laia. Você sabe, não vai querer se misturar com Pogues...
Não espero sua resposta, apenas dou de ombros e sigo em direção a rua. Seja lá o que esse garoto quer comigo é melhor cortar, não daria em boa coisa.
Sou rápida em voltar ao Malone's, já com medo de levar esporro por ter demorado tanto nessa entrega, apesar de ter sido um tanto interessante toda a situação com o Cameron. Definitivamente me gerou várias risadas durante o caminho de volta.
Mas meu bom humor se dissolve quando vejo JJ, provavelmente o mais novo desempregado, escondido em uma moita bem do lado da entrada do Malone's.
— Ellie — ele acena, chamando minha atenção.
Mas que merda esse garoto estava arrumando?
— Você não apareceu — é a primeira coisa que digo quando me aproximo.
JJ se põe de pé. Ele tinha uma mochila nas costas e parecia estar aprontando algo grande ou não ficaria se esgueirando pela ilha.
— Quê? — indaga.
— Na porra do seu horário no Malone's! — berro em resposta, empurrando levemente o seu peito. — Tive que dizer pro Blood que você estava doente.
Sua expressão se desmancha e JJ passa a mão no rosto, parecendo confuso.
— Merda... Eu esqueci completamente.
— É claro que esqueceu — ironizo, cruzando os braços. — Aonde se meteu?
— Eu estava com o pessoal e precisamos da sua ajuda, seu pai ainda...
— Da minha ajuda pra quê?
Ele pensa por alguns segundos antes de responder.
— Você vai achar loucura.
— Tenta — insisto, já perdendo minha paciência.
— Olha, eu não posso falar, tá legal? Não é coisa minha.
— Achei que nós não tínhamos segredos!
— Não temos Ellie mas... Te envolver nisso é perigoso.
Sério, eu nunca ouvi tanta baboseira em toda a minha vida.
— Eu não ligo pra sei lá o que que vocês estejam fazendo e sabe de uma coisa? Se quiser perder seu emprego tudo bem, não vou ficar encobrindo você. Achei que essas seriam as nossas férias, que íamos nos focar e parar com toda essa merda.
— Você não entende... O que eu estou fazendo vai render uma boa grana.
Boa grana, fala sério. Esse desejo bizarro de ser Kook estava tomando a cabeça dele.
— Isso é ótimo JJ, de verdade — murmuro, desprezando continuar nesse assunto.
— Callie...
— Tenho que voltar ao trabalho, a gente se vê depois.
— Eu preciso da arma — ele pede.
Claro. Quando se trata de destruir a própria vida John Jacob era um mestre... Pego a chave de casa no bolso traseiro do meu short e atiro em sua direção. JJ não estava esperando então o chaveiro cai no chão.
— Dentro da terceira gaveta no meu guarda-roupa — digo, dando de ombros. — Deixa a chave com o meu pai.
Não olho pra trás enquanto subo as escadas do Malone's, focada unicamente em fazer o meu trabalho.
🦋
Consigo passar o resto do dia sem quebrar nada e sem arrumar confusão. Definitivamente fazer as entregas parecia uma função bem melhor do que ouvir desaforo de Kooks e é uma pena que a Shantall voltaria amanhã para a função, eu não me importaria de ficar no seu lugar por mais alguns dias.
O caminho até minha casa é tranquilo, já era fim de tarde então o sol não me gerou algum incomodo. Era desanimador voltar pra casa pedalando mas me permitia alguns momentos de reflexão que costumavam me acalmar, afinal, eu estava fazendo a coisa certa. Por mim, por meu pai, pelo meu futuro. E é isso que eu repito a mim mesma várias e várias vezes.
Papai me conta sobre seu dia na marcenaria enquanto eu faço o jantar e eu conto sobre todas as casas bonitas que visitei com as entregas. Meu pai é um homem simples. Magro, alto, muito bonito. O cabelo loiro e comprido era lotado de fios grisalhos mas ainda tinha resquícios do desbotado por conta do sol e da água do mar.
Henry Atwood, jovem e bonito, fadado a uma vida de limitações por conta de seu joelho. Eu sabia que isso o machucava e ele sabia que me machucava ainda mais então nunca tocávamos no assunto. Eu sempre o lembrava de tomar os remédios, ele sempre me lembrava de ser mais misericordiosa. Uma via de mão dupla.
É tarde da noite quando subo as escadas pro meu quarto e sinto a brisa fresca do mar em minha pele, as ondas quebravam nas rochas perto daqui. A primeira coisa que faço é sentar na varanda, com um cigarro em mãos, querendo relaxar e aproveitar um pouco do silêncio.
Não dura muito já que vejo uma moto estacionar em frente a minha casa e bem debaixo do capacete estava Rafe Cameron. Ele me vê na sacada e dá alguns passos pra frente para que eu possa ouvi-lo.
— Você não apareceu — ele diz, cruzando os braços.
Meus lábios querem formar um sorriso incrédulo mas ao mesmo tempo minha vontade era sair correndo. Correr pra algum lugar onde ele me deixasse em paz.
— Como sabe que moro aqui?
— Seu pai fez alguns móveis lá pra casa.
— Isso tem anos.
Rafe dá um grande sorriso.
— Eu sei — responde, dando mais alguns passos em direção a minha casa. — Não vai me convidar pra entrar?
— Eu nem conheço você.
— Por isso mesmo.
Encaro seus olhos azuis mesmo a essa distância e seu semblante bem humorado. Talvez seja isso que eu estivesse precisando, um pouco de companhia, já que agora eu parecia jogada em um buraco escuro longe de todos os meus amigos.
Aceno com a cabeça em direção as escadas e ele sobe todas com rapidez, parando na porta de meu quarto em alguns segundos. Como uma idiota, ajeito meu cabelo antes de abrir a porta e Rafe sorri pra mim enquanto entra. Meu teto baixo é pouca coisa maior do que ele e o transforma quase num gigante.
— Você parece mal — é a primeira coisa que ele diz.
Reviro os olhos.
— E você parece drogado. Além disso, dá pra ver um rastro de cocaína na sua blusa, então...
Ele dá risada, completamente avesso ao tom de crítica em minha fala e me segue em direção a sacada. Eu me sento na cadeira, ignorando o fato de que não teria aonde ele se sentar, eu era uma Pogue afinal de contas, sem renda para cadeiras extras. Rafe não parece se importar e se senta no chão, apoiando as costas nas grades que limitavam a varanda. Isso o deixava virado pra mim.
— A festa foi boa, devia ter ido.
— Certas pessoas tem que trabalhar mas não acho que você entenda algo sobre isso.
— Você não me conhece.
É a minha vez de dar risada.
— Todo mundo te conhece. Você é a razão de todas as mães da região alertarem suas filhas antes de sair de casa.
O comentário parece diverti-lo.
— Menos você, pelo visto.
— Eu não tenho mãe — admito, pegando meu baseado no cinzeiro.
— Isso explica muita coisa — ele diz enquanto eu acendo.
— O que quer dizer com isso?
Trago um pouco da fumaça e deixo que ela saia pelo espaço entre meus lábios.
— Eu também não tenho e isso fode com a gente.
Assinto e estendo o cigarro em sua direção. Rafe aceita de prontidão e traga enquanto me encarava. Percebo o quanto ele é bonito... Principalmente quando não estava com o cabelo penteado cuidadosamente como algum boneco de cera.
— Por que está aqui? — pergunto.
Ele me estende o cigarro de volta.
— Queria ver você.
Essa resposta me deixa ainda mais curiosa.
— Por que?
Rafe desvia o olhar pela primeira vez, parecendo ter algo a esconder por trás de seus olhos.
— Não posso querer ver uma garota bonita?
Agora eu sou uma garota bonita...
— Você é kook.
Ele revira os olhos, dispensando meu comentário.
— Já conversamos sobre isso.
— Não, não conversamos. Você é kook — repito.
Rafe ergue uma de suas sobrancelhas na minha direção.
— E as garotas kooks são um saco.
— Os garotos também — rebato.
— Ouch — pragueja. — Essa doeu.
Dou risada e ele me acompanha, gerando um clima esquisito no ar. Seus olhos novamente se encontram com os meus expressando um brilho que beirava a admiração, aquele brilho que só existe quando se está afim de levar alguém pra cama.
Então era isso que o príncipe Kook fazia nas horas vagas? Levava Pogues para a cama?
— Está flertando comigo? — indago, franzindo minhas sobrancelhas.
— Só nos momentos em que você permite — admite.
Minha boca se abre num misto de surpresas e estendo o cigarro para Rafe que o segura entre os dedos. Encosto minha cabeça no encosto da cadeira e fecho os olhos.
— É inacreditável — murmuro, mais pra mim mesma do que para ele.
Quer dizer, eu conheço esse cara há anos e ele nunca sequer havia olhado mais de uma vez pra mim. Além disso, tem todo o preconceito dos riquinhos com o pessoal do Cut e todas as péssimas histórias que envolviam o nome dele.
— Sei que tem uma quedinha por mim, ou não teria me deixado entrar — Rafe diz, com um sorriso convencido em seus lábios.
— Sim, eu gosto de viciados em cocaína com um e noventa de altura — ironizo.
Isso faz com que ele dê risada.
— Me descreveu.
Alguma coisa em mim me dizia que a briga com meu melhor amigo, o término de sabe-se lá o que com John B e o meu novo estilo de vida estavam afetando minha capacidade de julgamento. Eu me sentia sozinha e quando se sente assim é normal buscar uma maneira de contornar isso, só não sei se essa seria a melhor...
— Acho melhor você ir, Rafe — digo, me levantando da cadeira. — Já está tarde e eu tenho que trabalhar amanhã cedo então...
Rafe assente, se colocando de pé e apagando o cigarro em meu cinzeiro.
— Obrigado pela companhia.
Eu sorrio, abrindo a porta pra ele.
— Até mais.
O observo descer as escadas e subir em sua moto. Tranco a porta e fecho as cortinas para não correr o risco de ceder a vontade de olha-lo enquanto seguia pela rua. Me deito na cama com um mix de emoções pensando que talvez Rafe Cameron não seja assim tão ruim.
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