𝐩𝐫𝐨́𝐥𝐨𝐠𝐨
Dizem que o deserto é mudo. Mas mentem.
Nenhum vento sopra em vão sobre as dunas. Nenhuma sombra se alonga sem testemunha. Eu, que sou o escriba do tempo, ouvi o que o mundo esqueceu — e vi as areias abrirem os lábios para sussurrar nomes que hoje o homem chama de lenda.
Era o alvorecer do século das descobertas. O sol, um disco de bronze, ascendia sobre o vale dos reis mortos, e os homens ousavam ferir o ventre da terra em busca de segredos. Foi nesse tempo que um nome ecoou nas bocas ressecadas dos exploradores: Howard Carter.
Diziam que ele possuía o olhar de um falcão e o coração de um ladrão de tumbas — e talvez ambos fossem verdadeiros. Pois ninguém que olhe fundo demais nas areias do Egito retorna o mesmo homem que foi.
No início, vieram com mapas, bússolas e cadernos.
No fim, caminhavam apenas guiados por uma febre invisível — o desejo de ver o rosto dos deuses.
O deserto os observava em silêncio.
Carter conduzia sua pequena equipe com a precisão de um sacerdote diante de um ritual proibido.
Suas mãos, sujas de pó dourado, tremiam ao tocar uma pedra gravada com hieróglifos que o tempo não ousara apagar.
-- O olho vê o que o coração deseja. - disse ele, em voz baixa.
E a rocha pareceu estremecer.
Naquele instante, o vento cessou. O ar tornou-se pesado, denso, quase sagrado.
Um dos trabalhadores, um egípcio magro de olhar antigo, caiu de joelhos e murmurou:
-- Não devemos prosseguir, saidi. Estas ruínas pertencem aos mortos.
Mas Carter sorriu.
-- É por isso que viemos, meu caro. O silêncio deles é o que faz a história gritar.
Assim avançaram.
As pás mergulhavam na areia como lâminas. A cada golpe, um grão de eternidade era arrancado do sono dos deuses.
E eu, o escriba, despertei. Pois há certas escavações que não tocam apenas a terra — tocam o próprio véu que separa o mundo dos vivos e o dos esquecidos.
Os homens trabalhavam sob o sol implacável. As horas se arrastavam, e o deserto parecia observá-los com olhos milenares.
Então, na tarde do terceiro dia, Carter encontrou o que buscava:
um pórtico semi-enterrado, marcado com o selo de uma cobra alada. O símbolo de Amentet, o domínio entre mundos.
-- É uma entrada... ou um aviso. - disse um dos assistentes.
-- Talvez os dois. - respondeu Carter, e ordenou que limpassem as inscrições.
Os hieróglifos falavam de um reino oculto sob as areias, erguido quando os homens e os monstros ainda caminhavam lado a lado.
Falavam de uma porta selada por ventos e de olhos que jamais deveriam se abrir.
Carter, cético e fascinado, anotou tudo. Mas enquanto escrevia, a tinta escorreu pela página e formou palavras que ele não havia traçado.
"Volta-te, estrangeiro. A voz que chama na areia não é tua."
Assustado, ele esfregou os olhos. Os outros nada haviam visto.
Apenas o silêncio. Apenas o calor. Apenas a promessa de glória.
Foi então que o céu se enegreceu.
O primeiro grão levantou-se como um suspiro. O segundo, como um sussurro.
E, de repente, uma tempestade colossal ergueu-se sobre o acampamento, girando em espiral como o olho de uma divindade desperta.
As tendas foram arrancadas, os instrumentos sumiram na ventania, e a própria luz do dia se partiu em mil fragmentos de areia.
Os arqueólogos correram. Carter tentou proteger seus cadernos, mas o vento os arrancou de suas mãos, lançando-os em direção ao horizonte.
Entre os trovões de areia, ele jurou ouvir uma voz que não era do mundo dos homens.
"Volta para as tuas tumbas, filho do pó. A entrada de Amentet não é para ti."
Então tudo silenciou.
Quando o sol voltou a nascer, não havia ruínas.
Não havia acampamento.
Não havia pegadas.
Apenas o deserto — vasto, sereno, intocado, como se jamais tivesse sido ferido por mãos humanas.
Howard Carter, coberto de pó e medo, permaneceu ajoelhado diante de uma duna que agora se erguia onde antes estivera o portal.
E, embora tenha continuado suas escavações em outros lugares, ele jamais retornou àquele ponto.
Mas eu — o escriba — permaneci. Pois o que se perdeu aos olhos dos mortais, despertou sob a areia.
Naquele mesmo instante, nas profundezas invisíveis ao mundo dos homens, o véu entre os reinos se moveu.
As colunas sagradas que sustentavam os mundos estremeceram.
E um novo templo, feito de luz e ouro e sombras, ergueu-se sob o deserto.
Ali, onde o silêncio do tempo se misturava ao perfume do incenso esquecido, os deuses sussurraram entre si.
Não em palavras, mas em ideias — como o bater de asas de um falcão no escuro, como o roçar de uma serpente sobre a pedra.
Os homens nos veem.
Eles sondam o que não compreendem.
O equilíbrio deve ser restaurado.
E assim, sem som, sem testemunha, nasceu um novo domínio:
Amentet, a Academia dos que herdaram o sangue do Nilo.
Mas os deuses não a ergueram sozinhos.
Eles chamaram aqueles que dormiam há séculos — antigos reis, sacerdotes e servos — e sopraram vida neles novamente.
Alguns vieram como sombras, outros como carne. Todos, porém, trouxeram consigo o brilho do passado e o peso da eternidade.
Amentet não era apenas uma escola. Era um refúgio.
Um abrigo para os filhos esquecidos dos faraós, para as criaturas moldadas em rituais e maldições, para os que não pertenciam mais ao mundo dos homens.
Sob as dunas, escondida dos norms, a cidade dourada despertava.
[...]
Dizem que o vento, ao passar sobre as dunas, carrega lembranças.
E naquela noite, depois que o deserto engoliu os arqueólogos e selou suas vozes, o vento cantou.
Não uma melodia humana, mas um cântico de origem tão antiga que até o próprio tempo pareceu deter a respiração para ouvir.
Foi o som de algo nascendo de novo.
Nas profundezas do deserto, onde a luz do sol jamais ousa tocar,
um brilho azul e dourado começou a pulsar sob a areia.
Primeiro suave, como um coração aprendendo a bater.
Depois, intenso — até que as dunas se moveram como marés, e delas emergiram torres, pilares e pontes de ouro derretido.
Era Amentet, a cidade-oculta, a herança dos deuses.
Mas os mortais não a veriam.
A areia, obediente, fechou-se sobre ela como um véu.
Apenas os escolhidos — os filhos do Nilo, os nascidos sob o selo da serpente e do sol — poderiam cruzar suas portas invisíveis.
E eu, o escriba, assisti à aurora daquilo que jamais deveria existir.
As ruas de Amentet eram largas e silenciosas.
As pedras pareciam sussurrar nomes conforme os pés tocavam o chão.
Hieróglifos vivos se moviam nas paredes, dançando entre as colunas — e cada símbolo era uma lembrança, um fragmento da história do Egito antigo.
No coração da cidade erguia-se o Templo Central, feito de ouro polido e alabastro.
Seu teto era cravejado de pedras que imitavam o firmamento, e nelas se viam constelações esquecidas, estrelas que os mortais já não sabiam nomear.
Lá dentro, um trono vazio aguardava o comando dos deuses.
Mas nenhum deus se sentou.
Pois os deuses não precisavam mais de tronos — agora, eram vozes.
Sussurros no ar quente. Ecos que moldavam a realidade com a força da palavra.
E suas vozes diziam:
"Que este lugar seja refúgio. Que o sangue faraônico encontre descanso. Que o poder antigo não se perca nas mãos dos mortais."
Então, o templo respirou.
E de suas portas começaram a sair sombras com forma, figuras que o deserto esquecera:
jovens com pele de bronze e olhos de ouro líquido,
sacerdotisas cobertas por linho e magia,
criados, guardiões, filhos de reis e de deuses menores.
Todos despertando de um sono que não era morte — apenas espera.
Amentet os chamava pelo nome.
E cada um deles, ao abrir os olhos, lembrava vagamente de ter vivido antes.
De ter servido, reinado, amado ou morrido nas margens do Nilo.
Mas ali, sob as areias, todos eram alunos novamente.
Não havia sol nem lua em Amentet — apenas uma luz dourada que nunca se apagava.
E, quando a primeira aula começou, não foi dada por um professor, mas por um espírito envolto em fumaça azul.
Ele falava sobre os deuses, sobre a antiga harmonia, sobre o que havia se perdido quando os homens ergueram suas torres e esqueceram o nome de Rá.
-- Vocês foram criados do pó das estrelas e do sopro do deserto. - disse ele. -- Mas os homens esqueceram quem são. E quando os norms esqueceram, nós também esquecemos. Amentet existe para que a memória viva.
As palavras ecoaram nos corredores, e cada aluno sentiu dentro do peito algo reacender — uma saudade antiga, uma fome por poder, uma certeza de que pertenciam a algo maior.
Os deuses observavam de longe, através de reflexos e miragens.
Anúbis, o guardião das passagens, caminhava invisível pelos portões.
Bastet rondava as salas de aula, sua risada felina ecoando nos jardins suspensos.
Maat equilibrava a balança da ordem em silêncio, enquanto Seth, nas sombras, sorria — pois toda ordem carrega em si a semente do caos.
E o deserto, acima deles, permanecia imóvel,
como se guardasse o segredo com prazer.
...
Os anos passaram — ou talvez minutos, pois o tempo não se comportava da mesma forma ali.
Novas gerações chegaram, cada uma mais distante da superfície, mais esquecida pelo mundo humano.
As histórias de faraós e monstros tornaram-se mitos; os norms chamaram de superstição o que não podiam entender.
E assim, Amentet floresceu em segredo.
Havia alas de alquimia, onde poções brilhavam como constelações engarrafadas.
Havia arenas de duelo, onde jovens treinavam o domínio sobre o vento e a areia.
Havia bibliotecas vivas, onde papiros se moviam como asas de mariposa e sussurravam aos ouvidos de quem ousasse ler.
E, no centro da cidade, ergueu-se um palácio colossal, envolto em luz dourada e hieróglifos flamejantes.
Seu nome era Academia de Amentet.
E seus corredores eram tão vastos que se dizia ser possível ouvir, nas horas mais silenciosas, o som do próprio deserto respirando por entre as paredes.
Mas mesmo entre os filhos dos deuses, a vaidade nunca dorme.
Aqueles que nasceram para aprender começaram a desejar governar.
Os que vieram em busca de sabedoria passaram a cobiçar poder.
E os deuses, distantes, observavam.
Sabiam que todo império repete seu erro — e que toda glória nasce acompanhada de uma sombra.
Alguns professores tentavam conter o orgulho crescente dos jovens faraônicos.
Outros o alimentavam, acreditando que era da arrogância que nascia a verdadeira força.
A balança de Maat pendia cada vez mais de um lado.
Então começaram os sussurros.
Primeiro, leves, quase imperceptíveis — como o farfalhar de tecidos nas catacumbas.
Depois, mais fortes.
"Aqueles acima nos esqueceram."
"Por que devemos nos ajoelhar aos deuses se nós também carregamos o sangue deles?"
"O poder não se recebe... conquista-se."
Os ventos trouxeram essas vozes até o Templo Central.
E embora nenhum deus tenha respondido, as chamas das tochas tremeram — como se até a eternidade sentisse o calafrio da rebelião se aproximando.
Foi nesse tempo de murmúrios que o nome De Nile começou a ser ouvido nos corredores.
Uma linhagem antiga, tão antiga quanto as próprias areias.
Descendentes diretos de reis que juraram lealdade aos deuses... e depois os traíram.
Sangue real, sangue amaldiçoado.
Entre eles, muitos nomes se perderam.
Mas um permaneceria gravado nas tábuas do destino —
Nefer.
Um menino que ainda não havia nascido, mas cuja sombra já se movia entre as colunas da Academia, como se o próprio tempo o esperasse.
Dizem que, na noite em que seu nome foi escrito pela primeira vez no livro dos vivos, o vento sussurrou algo em língua esquecida, e Bastet ergueu orelhas curiosas.
O escriba — eu — senti o arrepio do presságio.
Pois cada geração traz consigo um espelho.
E às vezes, o reflexo é mais perigoso que o rosto.
As areias, então, voltaram a adormecer.
A Academia, coberta por camadas de silêncio e feitiço, manteve-se invisível aos olhos dos homens.
Howard Carter e seus sucessores continuaram suas escavações na superfície, sem saber que sob seus pés florescia uma cidade inteira, onde monstros aprendiam a ser deuses —
e deuses, a temer seus próprios filhos.
Mas toda muralha, por mais dourada que seja, tem uma rachadura.
E o deserto nunca esquece.
[...]
Entre as colunas douradas de Amentet, os murmúrios cresciam, quase como se o próprio vento conspirasse.
Não eram vozes humanas, nem de monstros, nem mesmo de deuses — eram eco de promessas antigas, de nomes que o tempo quase havia apagado.
E no coração daquele silêncio pulsante, uma sombra ainda não nascida se agitava, como se o ouro pudesse moldar a forma de quem viria.
O escriba, eu, senti o primeiro tremor do orgulho que percorreria os corredores da Academia por gerações.
E mesmo antes de qualquer olhar humano pousar sobre as muralhas, eu já conhecia o nome que faria o coração dos deuses estremecer.
Nefer De Nile.
O vento carregou seu nome entre as tochas acesas e os hieróglifos vivos.
Não era apenas um som. Era um aviso, um prenúncio, uma promessa de glória e de ruína.
Dizem que os filhos de faraós nascem sob sinais.
Nefer carregaria o brilho do sol refletido no Nilo, o peso do ouro nas veias, e o orgulho de séculos nos ombros.
Ele caminharia pelos corredores de Amentet como quem nasceu para ser lembrado — ou temido.
Os deuses, que se mantinham distantes e invisíveis, sussurravam entre si, suaves como a brisa que passa por entre as dunas:
"Olhe para ele. Ele é belo... e perigoso."
"A glória o aguarda... mas também o erro."
"Toda rebelião começa com um filho do orgulho."
Anúbis caminhou pelas sombras do Templo Central, estendendo mãos invisíveis sobre o mármore frio, testando o equilíbrio que ainda não existia.
Bastet ronronou nas passagens silenciosas, e seu sorriso felino parecia saber que o caos viria, mas não o momento exato.
Maat ergueu a balança, vacilando entre a justiça que deveria existir e a força que estava prestes a nascer.
E enquanto os deuses observavam, os corredores de Amentet se preparavam para receber aquele que desafiaria tudo.
A cidade-oculta, ainda nova, já sentia o pulsar do orgulho humano e faraônico — aquele sentimento que pode erguer impérios ou derrubá-los.
...
Os jardins suspensos brilhavam sob a luz dourada que não se apagava.
Rios mágicos corriam entre palmeiras e flores impossíveis, cada pétala um reflexo da eternidade.
Ali, os primeiros alunos despertavam para um mundo onde tudo era possível: aprender feitiços, dominar elementos, compreender a língua dos deuses.
E, entre eles, os descendentes de linhagens poderosas ainda nem sabiam que suas vidas seriam marcadas por um único nome.
E o escriba, que escreve e observa desde antes do início do tempo, sorriu com pesar e expectativa.
Pois o que dorme sob o ouro e a areia sempre desperta, e o orgulho de um filho de faraó pode ser tanto uma luz quanto uma chama que consome.
O deserto acima de Amentet permaneceu imóvel, mas não adormecido.
A cada grão de areia que dançava, havia memórias antigas que lembravam: os mundos estão separados, mas a tentação sempre encontra o caminho.
E a cidade invisível, que respirava em silêncio, sabia que o primeiro sopro de rebeldia já se insinuava, antes mesmo do primeiro passo de Nefer sobre seus corredores de ouro.
Aqui eu, o escriba, digo adeus.
Pois o passado humano e a história divina se encontraram.
A Academia nasceu para proteger, ensinar, moldar... e testar.
O vento levou o nome do primeiro herdeiro que ousaria caminhar entre monstros e deuses.
E eu, escriba eterno, continuei observando, porque alguns nomes não se esquecem — eles assombram o tempo.
O ouro e a areia aguardam.
O orgulho está pronto para despertar.
E em algum momento, um jovem chamado Nefer De Nile abrirá os olhos — e os corredores de Amentet sentirão o primeiro eco de sua arrogância.
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