54. Back to the start
Um mês atrás
A fumaça ainda pairava no ar, densa e amarga, carregando o cheiro pungente de madeira queimada e incenso. O vento sussurrava baixinho entre as árvores do templo, carregando consigo as cinzas que, até poucas horas atrás, pertenciam ao meu melhor amigo.
Yoon. Ele agora era apenas um punhado de cinzas. Um fragmento de memória que jamais voltaria a ser carne e osso. Um vazio que nunca seria preenchido.
Os quimonos brancos que todos usavam refletiam a luz pálida do sol filtrado pelas nuvens carregadas. O céu estava cinzento, como se o próprio mundo compreendesse a magnitude da perda que havíamos sofrido. Um a um, os membros do dojô se curvavam em respeito, murmurando preces silenciosas antes de darem as costas e partirem.
Eu não consegui me mover. Minhas pernas estavam pesadas, como se correntes invisíveis me mantivessem preso àquele momento, me impedindo de seguir em frente.
A faixa de líder repousava em minhas mãos, desgastada pelo uso constante, mas ainda carregando a mesma representação de sempre. Honra. Determinação. Compromisso. Mas tudo aquilo agora parecia tão vazio, tão sem sentido... Como eu poderia liderar sem Yoon ao meu lado? Como eu poderia continuar quando o meu melhor amigo não estava mais ali?
Sentei-me em um canto afastado, apertando a faixa entre os dedos, minha visão turva pelo peso das lágrimas que se recusavam a cair. O silêncio era absoluto, exceto pelo farfalhar distante das folhas ao vento e o estalar ocasional de um pedaço de madeira ainda ardendo nas cinzas da pira funerária.
Foi então que ouvi passos. Passos firmes, medidos, carregados de presença.
Sensei Kim.
Ela se aproximou com as mãos cruzadas atrás das costas, a postura impecável e o olhar frio como sempre. Seus olhos varreram minha figura com aquele julgamento silencioso que sempre carregava, mas, por uma fração de segundo, vi algo diferente ali. Algo que eu não poderia definir com precisão, mas que se assemelhava a... Respeito. Talvez até compaixão. Mas não tinha certeza.
Ela suspirou levemente, desviando o olhar para a pira apagada. A fumaça ainda subia em espirais, se dissipando aos poucos na atmosfera fria da manhã.
— Sob essas circunstâncias, não competiremos mais. — Sua voz era baixa, controlada, mas carregada de uma firmeza indiscutível. — Deixarei o Cobra Kai.
Meus olhos se arregalaram. Eu levantei a cabeça rápido demais, sentindo um leve torpor na nuca pela brusquidão do movimento.
— O quê? — Minha voz saiu rouca, quase num sussurro.
Kim manteve a expressão inalterada, como se já tivesse refletido muito sobre aquilo e já houvesse tomado sua decisão antes mesmo de verbalizá-la.
— O Cobra Kai falhou com Yoon. Falhou comigo. E falhou com você. Eu não lutarei sob uma bandeira que não representa o que eu desejo construir.
Meu coração bateu forte contra o peito, enquanto eu processava o que ela dizia.
Ela estava abandonando Cobra Kai.
A academia que ela ajudou a moldar. A escola de luta onde passamos os últimos anos, nos esforçando, nos sacrificando.
Tudo isso... Para quê?
Apertei os punhos. O couro da faixa em minhas mãos rangeu levemente sob a pressão dos meus dedos.
— E eu? — Minha própria voz soou distante. O eco de um menino que buscava por respostas, mas que já sabia que nenhuma resposta que receberia seria suficiente para preencher o buraco que sentia dentro do peito. — Eu deveria continuar?
A pergunta pesou no ar.
Kim olhou para mim, e dessa vez, houve algo diferente em sua expressão. Ela não carregava aquele olhar puramente avaliador. Havia algo mais ali. Uma expectativa? Uma exigência velada?
Ela caminhou até mim e, para minha surpresa, se sentou ao meu lado, mantendo-se reta e impecável, mas sem aquele distanciamento frio de sempre.
— Yoon gostaria que você lutasse.
Minha respiração tremeu. Eu sabia que ela estava certa. Yoon viveria para aquela competição. Era tudo o que ele mais queria. Ele não deixaria que a morte fosse um motivo para desistir.
Kim continuou:
— Eu espero que você vença. Porque o dojô que quero construir será um lugar de honra, de justiça, mas também de vitória. — Ela virou-se levemente para mim, seu olhar penetrante. — Para isso, você precisará voltar. Mas não apenas voltar. Você deve lutar com honra.
Minhas mãos estavam suadas.
Apertei a faixa de líder, sentindo a textura desgastada do tecido contra meus dedos. A proposta dela ainda girava em minha mente.
— E você...? — Engoli em seco. — O que vai fazer?
Ela se inclinou ligeiramente para frente, cruzando os dedos sobre os joelhos.
— Eu vou treinar você. E tornar você o campeão.
Meus olhos se arregalaram.
— O quê?
Ela não hesitou.
— Se você aceitar o encargo, será meu braço direito nesta nova etapa. Mas a escolha é sua.
Meu coração martelava contra as costelas. Era uma posição importante. Uma posição que eu sempre quis ter. Engoli o choro, endireitei a postura e disse, sem pensar duas vezes:
— Com certeza.
Mas não era assim que eu deveria responder. Então eu respirei fundo, corrigi minha postura e, com um tom mais controlado, repeti:
— Seria uma honra, sensei.
Kim apenas assentiu, mas havia um brilho em seus olhos. Algo que dizia que, para ela, essa resposta era o suficiente.
⋆౨ৎ˚ ⟡˖
A luz azulada da televisão piscava no quarto de hotel, projetando sombras suaves nas paredes enquanto eu e Calista assistíamos ao anúncio do Sekai Taikai. A voz grave do apresentador ecoava pela tela, cheia de entusiasmo, enquanto imagens dos competidores passavam uma a uma, destacando os lutadores que haviam avançado para as semifinais.
"O torneio de karatê mais disputado do mundo está chegando! É o Sekai Taikai, onde os maiores lutadores de artes marciais sub-18 do mundo todo irão disputar o título de campeão mundial!"
As palavras dele faziam a adrenalina borbulhar no meu sangue. Esse era o momento que todos esperavam. O torneio que definiria quem era o melhor do mundo. E eu estava ali, prestes a ver meu nome na tela, a confirmação de que minha luta final estava próxima.
Os nomes começaram a aparecer, um a um.
Na primeira semifinal feminina:
"Tory Nichols, do Cobra Kai, enfrenta Zara Malik, do Iron Dragons! Quem vencer vai direto para a final feminina, onde encara a nova estrela do Miyagi-Do... Calista Silver!"
Eu imediatamente apertei a mão de Calista, que sorria ao ver sua imagem brilhando na tela. Ela estava radiante, os olhos cintilando com expectativa. Eu sentia seu orgulho pulsando em cada respiração dela, no modo como sua postura parecia ainda mais ereta.
— Olha só minha namorada virando celebridade! — Zombei, lançando um olhar divertido para ela.
Ela revirou os olhos, dando um leve tapa no meu braço.
— Você logo aparece também, Kwon.
E com isso, encostou a cabeça no meu ombro, relaxando enquanto observava a transmissão.
Eu não podia estar mais orgulhoso dela. Desde que nos conhecemos, vi o quanto Calista se dedicava ao karatê, o quanto lutava para ser reconhecida, para não ser vista apenas como "a filha de Terry Silver". Agora, ali estava ela, indo direto para a final do Sekai Taikai, provando que o talento dela era genuíno.
Mas, então, o apresentador anunciou a próxima luta.
"No lado masculino, temos Axel Kovacevic, do Iron Dragons, contra... Kwon Jae-Sung, do Cobra Kai!"
Meu nome brilhou na tela, junto com um vídeo meu lutando. Eu pisquei algumas vezes, sentindo um peso estranho se espalhar pelo meu peito.
— Espera... O quê? — Murmurei.
Calista também pareceu confusa, começando a dizer algo, mas foi interrompida pelo próximo anúncio.
"E do outro lado, nas semifinais, um lutador que voltou à competição por ter tido pontos roubados na luta anterior, de acordo com o árbitro e a equipe do Sekai Taikai: Yuri Hernández, do Fúria de Pantera, enfrentando Miguel Diaz, do Miyagi-Do. Os vencedores de ambas as disputas avançarão para as finais!"
A tela ainda mostrava vídeos das lutas, mas eu não conseguia mais ouvir nada. Meu coração martelava no peito, meus músculos tensionaram de imediato, e meu sangue ferveu em fúria.
Eu ganhei aquela luta. Eu derrotei Yuri naquele tatame. E agora, de repente, ele tinha outra chance? E pior, isso significava que eu também teria que lutar mais uma vez.
Minhas mãos se fecharam em punhos. Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Antes que qualquer outra coisa fosse dita, desliguei a TV com força, jogando o controle remoto na cama. O quarto ficou em silêncio absoluto.
Levantei-me, passando as mãos pelos cabelos, sentindo minha respiração acelerar.
— Isso não pode ser real... — Murmurei, rindo de nervoso. — Eu já ganhei essa luta.
Calista parecia tão chocada quanto eu. Mas, diferente de mim, sua expressão estava carregada de raiva. Ela balançou a cabeça negativamente, os olhos se estreitando.
— Isso com certeza é coisa do Silver... — Disse firme, com um tom carregado de desprezo.
Eu apertei os dentes, massageando a têmpora, sentindo a frustração borbulhar dentro de mim como um vulcão prestes a entrar em erupção.
— Ótimo... Agora eu tenho duas lutas. E preciso ter duas vitórias garantidas.
Minha voz saiu carregada de irritação. Isso não era apenas injusto, era ridículo. Eu tinha vencido Yuri. Ele foi derrotado. Mas, de repente, por algum truque nos bastidores, ele tinha sido trazido de volta? Como se sua derrota nunca tivesse acontecido?
Era claro que alguém estava manipulando essa competição. E não era difícil imaginar quem.
Silver era um mestre em distorcer as regras a seu favor. Eu podia apostar que ele, de alguma forma, interferiu nisso.
A questão era, qual era o plano dele?
Calista se levantou rapidamente e veio até mim. Antes que eu pudesse continuar remoendo toda aquela raiva, ela segurou meu rosto com firmeza, me fazendo olhar nos olhos dela.
— Não importa o que aconteça, você já venceu. — Sua voz saiu firme, intensa, carregada de convicção. — Você já é campeão, Kwon, e nada pode mudar isso.
Eu senti meu peito apertar. Por um momento, todo aquele peso que estava me esmagando pareceu diminuir. Calista sempre tinha esse efeito sobre mim. Sempre sabia exatamente o que dizer.
Minha visão encontrou a dela, e por um instante, tudo o que eu vi foi segurança. Ela não estava dizendo isso apenas para me confortar. Ela acreditava nisso de verdade. Respirei fundo e soltei um suspiro pesado, antes de encostar minha testa contra o ombro dela.
Os braços de Calista me envolveram em um abraço apertado. Ela não disse mais nada, apenas manteve aquele abraço firme, seu corpo quente contra o meu, sua respiração suave perto da minha orelha. E eu soube, naquele instante, que mesmo com todas as manipulações, com todas as injustiças, com todas as reviravoltas...
Eu não estava sozinho.
— Vai dar tudo certo. — Calista murmurou, seu tom tão seguro que eu quase pude acreditar nisso completamente.
Eu fechei os olhos por um momento, absorvendo aquele instante. Eu não sabia como as coisas aconteceriam a partir de agora. Mas havia uma coisa que eu sabia com absoluta certeza.
Eu não ia desistir.
⋆౨ৎ˚ ⟡˖
O quarto estava mergulhado em um silêncio pesado, interrompido apenas pela respiração suave de Calista ao meu lado. A luz da manhã tentava se infiltrar pelas frestas da cortina, lançando feixes dourados sobre o carpete e sobre a cama, mas o ambiente ainda estava em uma penumbra reconfortante. Meus olhos ardiam um pouco por causa do sono conturbado, mas eu já não conseguia mais permanecer deitado. Meu corpo estava tenso, meus músculos rígidos como cordas esticadas ao limite. Era como se toda a raiva e frustração da noite anterior ainda estivessem presas dentro de mim, fervendo sob a minha pele, me impedindo de encontrar qualquer vestígio de descanso verdadeiro.
Suspirei, esfregando o rosto antes de virar a cabeça para o lado. Calista ainda dormia, sua expressão completamente relaxada. Era injusto o quanto ela podia parecer tão tranquila, tão serena, enquanto eu sentia como se estivesse carregando o peso do mundo nos ombros. Mas eu sabia o quanto ela também vinha se esforçando, o quanto vinha dando tudo de si para me ajudar a chegar até aqui e o quanto ela estava nervosa com toda a situação, só que nitidamente ela sabia como esconder isso melhor do que eu. Ela merecia dormir um pouco mais.
Com cuidado, deslizei para fora da cama, certificando-me de não fazer nenhum movimento brusco que pudesse acordá-la. Peguei minhas roupas que estavam espalhadas pelo quarto e vesti-me rapidamente, sentindo o tecido gelado contra a minha pele. O frio matinal ainda se agarrava ao ar, deixando um arrepio na minha espinha conforme me movia pelo ambiente.
Fui até o banheiro, acendendo a luz fraca e piscando algumas vezes para me acostumar com o brilho repentino. O espelho refletia meu rosto cansado, olhos escuros e sombrios fixando-se em mim como se fossem de um estranho. Lavei o rosto, a água fria proporcionando um choque momentâneo que me ajudou a clarear a mente, pelo menos um pouco. Escovei os dentes, fiz tudo no automático, como se estivesse programado para seguir esses passos sem precisar pensar. Mas minha mente estava longe dali.
Axel. Yuri. Silver. O torneio. O que diabos eu estava fazendo?
Saí do banheiro e passei os olhos pelo quarto mais uma vez. Calista ainda dormia, e eu sabia que precisava sair. Se ficasse ali, preso entre essas paredes, com todo esse peso em cima de mim, eu acabaria explodindo. Eu não queria isso. Não queria que ela tivesse que lidar com minha frustração.
Então eu apenas peguei meu celular e as chaves do quarto antes de sair, fechando a porta atrás de mim sem fazer barulho.
O hall do hotel estava relativamente vazio àquela hora. Algumas pessoas caminhavam por ali, hóspedes indo tomar café da manhã, funcionários organizando as mesas, e alguns casais sentados juntos, conversando em voz baixa. O ambiente parecia tranquilo, quase como se estivesse em um mundo completamente diferente do meu. Um mundo onde não havia torneios, manipulações, lutas injustas e pressão esmagadora.
Mas minha mente estava longe de encontrar qualquer paz.
Saí do hotel e comecei a caminhar. O ar fresco da manhã bateu contra meu rosto, mas não foi o suficiente para dissipar o calor fervente que borbulhava dentro de mim. Eu sentia minha mandíbula travada, meus ombros rígidos, meus punhos cerrados ao lado do corpo. Cada passo que eu dava era como uma tentativa desesperada de manter o controle, mas a raiva ainda estava ali, presa no fundo da minha garganta como um grito não proferido.
A praia ficava a poucos minutos dali, e foi para lá que meus pés me levaram. O som das ondas quebrando contra a areia, o cheiro salgado do oceano misturado com a brisa da manhã... Nada disso me acalmou. Meus olhos percorreram a extensão da praia, observando as poucas pessoas que já estavam ali. Algumas caminhavam pela areia, outras corriam, algumas jogavam vôlei de praia. Eu franzi o cenho ao ver a bola voando no ar, um dos jogadores se lançando para acertá-la com força. Aquilo só me deu mais vontade de dar um soco em alguma coisa.
Inacreditável. Como alguém podia gostar desse esporte?
Ignorei os jogadores e continuei caminhando até estar longe o suficiente de qualquer um que pudesse me incomodar. Quando tive certeza de que estava sozinho, parei e encarei o oceano. Meus pulmões se encheram com o ar salgado, mas não foi o suficiente para aliviar a pressão no meu peito.
Minhas mãos se fecharam em punhos ao meu lado, e antes que eu pudesse me conter, soltei um grito abafado, chutando a areia com força. A explosão de frustração foi breve, mas intensa. Meu coração martelava contra minhas costelas, minha respiração estava pesada.
Tudo voltara à estaca zero.
Eu tinha lutado tanto, treinado tanto, dado tudo de mim para chegar até aqui, e agora Silver mais uma vez puxava as cordas nos bastidores. Claro que ele faria isso. Claro que ele encontraria uma maneira de manipular a situação ao favor de Axel. E agora eu teria que enfrentar ele antes mesmo das finais. O cara que já havia me humilhado uma vez, e depois Yuri, que também tinha feito o mesmo. Os dois malditos caras que quase quebraram meu espírito diante de todos. Eu sabia que Silver tinha arquitetado tudo isso para que eu não tivesse a menor chance.
Axel e eu tínhamos nos resolvido, de certa forma, mas ainda haviam aquelas ressalvas, mágoas guardadas no fundo do peito de como ele parecia insistir em encontrar maneiras de me afastar de Calista quando o mundo todo estava contra nós, e a provocação dele naquele dia... Foi um dos motivos de eu ter perdido a cabeça, e consequentemente, de Calista ter parado no hospital. Ele estava sim, perdoado, mas não é como se agora fôssemos amigos, e muito menos que gostássemos de estar perto um do outro.
Minha raiva transbordou de novo, e eu chutei a areia mais uma vez, meus dentes cerrados. Era injusto. Era nojento. E eu não podia fazer nada a respeito. O sistema era podre, e eu estava preso nele.
Passei as mãos pelos cabelos, puxando-os para trás enquanto tentava recuperar o controle da minha respiração. Mas minha mente continuava girando, lembrando-se de cada golpe que recebi de Yuri naquela luta. Lembrando-se da sensação de ser esmagado, de perder de forma vergonhosa, de ver todos me olhando com aquele misto de pena e desprezo.
Eu não queria passar por isso de novo. Mas eu teria que passar.
E isso me deixava louco.
Fechei os olhos por um momento, sentindo o vento bater contra minha pele. Talvez eu estivesse me desgastando demais. Talvez eu estivesse me deixando levar por essa raiva, por esse medo de falhar novamente. Talvez... Talvez fosse isso que Silver queria. Me ver desmoronar antes mesmo de pisar no tatame.
Respirei fundo, tentando recuperar algum resquício de controle. Eu ainda tinha tempo. Ainda tinha um dia inteiro para pensar, para me preparar. Eu não podia deixar Silver vencer desse jeito. Eu não podia dar a ele essa satisfação.
Olhando para o horizonte, apertei os punhos mais uma vez, mas dessa vez, com determinação.
Eu ainda estava na luta. E eu não cairia sem brigar até o último segundo.
O sol ainda estava nascendo, tingindo o céu com tons alaranjados e arroxeados enquanto eu treinava sozinho na praia. O cheiro do sal impregnava o ar e a brisa fresca da manhã aliviava parcialmente o calor que já se acumulava sobre minha pele. Meus pés deslizavam firmemente sobre a areia, um terreno que exigia força e equilíbrio. Cada movimento precisava ser controlado para evitar afundar ou perder o ritmo, e eu me esforçava para manter a precisão dos meus golpes.
Minha respiração estava compassada, mesmo que meu corpo já estivesse exausto. Cada chute cortava o ar, e eu sentia a resistência da brisa contra minha pele suada. Comecei com chutes médios, mantendo a estabilidade nos pés e o equilíbrio perfeito no quadril, girando rapidamente para aumentar a potência. Meu joelho se elevava com velocidade antes de desferir um chute lateral limpo, os dedos apontados, o golpe fluindo como água, mas com a força de uma marreta. A areia se espalhava sob o impacto da movimentação, criando pequenas explosões douradas ao meu redor.
Passei para chutes circulares, aumentando a altura progressivamente. Meu corpo girava no eixo enquanto a perna se estendia em um arco perfeito. A cada giro, minha visão captava pedaços do horizonte, do mar e do céu, mas minha mente estava focada na técnica, nos músculos contraindo e relaxando, na força gerada pela rotação do tronco. Sentia o suor deslizar pela lateral do meu rosto e pelo meu peito, a respiração ficando mais intensa. Mas eu não podia parar.
Então, no meio de um movimento, uma voz atrás de mim me fez parar instantaneamente, os músculos ainda contraídos pelo esforço:
— Saiu para treinar e nem me acordou? Eu também estou com sede de ser campeã, gênio.
Sorri no mesmo instante. Eu conhecia aquela voz de olhos fechados. Quando me virei, a visão que tive me fez perder momentaneamente qualquer pensamento lógico.
Calista estava ali, com uma roupa simples de treino, seu cabelo preso de maneira despreocupada, mas perfeita. Cada detalhe dela parecia ficar ainda mais bonito com o tempo, como se fosse impossível eu me acostumar com sua presença. Sempre que a olhava, sentia como se estivesse vendo algo novo e surpreendente, algo que me fazia querer lutar mais forte, treinar mais duro, ser melhor.
— Você dorme feito uma pedra, eu até soquei seu ombro, mas você nem se mexeu. — Provoquei, o sorriso ainda nos lábios.
Ela revirou os olhos, mas riu antes de correr até mim e me empurrar levemente:
— Ah, cala essa boca!
Recuperei a postura, e quando voltei meu olhar para ela, percebi que já estava em posição de luta. Ergui uma sobrancelha, um sorriso divertido brincando no canto dos lábios.
— Quer mesmo ser derrotada, Dinamite?
Ela riu, os olhos brilhando com um desafio nítido. E caramba, como eu amava quando ela me olhava assim.
— Pra isso acontecer, vai ter que me derrubar primeiro...
Antes mesmo de terminar a frase, ela avançou.
Seus golpes eram rápidos e diretos, e eu soube no instante em que bloqueei o primeiro soco que não podia baixar a guarda nem por um segundo. Calista era letalmente ágil. Seu primeiro golpe veio em um direto de direita, que bloqueei com um movimento lateral do antebraço, redirecionando o impacto. Mas ela já estava preparada, deslizando com a leveza de uma pantera sobre a areia fofa antes de girar e desferir um chute alto.
O pé dela passou rente ao meu rosto, e eu mal tive tempo de abaixar.
Ela sorriu. Eu sorri de volta.
Se era um jogo, então era um que eu queria jogar.
Aproveitei minha posição agachada para girar o corpo e lançar uma rasteira. Ela saltou, o corpo deslizando no ar antes de aterrissar com graça felina, os pés se fixando na areia. Eu me ergui rapidamente, e então foi minha vez de atacar.
Avancei com um jab rápido seguido de um gancho de esquerda. Ela esquivou do primeiro, inclinando-se para trás, e bloqueou o segundo com o antebraço, deslizando para o lado em um movimento impecável. Mas eu não a deixei escapar, usei o impulso para girar e desferir um chute lateral certeiro. Ela ergueu os braços para bloquear, mas o impacto ainda a fez recuar alguns passos, afundando ligeiramente os pés na areia.
Ela se recuperou rápido, rápido demais.
Antes que eu pudesse avançar, Calista se abaixou levemente e disparou em minha direção. Eu sabia que vinha um golpe potente, então me preparei. Mas ela surpreendeu, em vez de um ataque direto, usou a lateral do corpo para deslizar e passar pelo meu lado, girando em um ângulo improvável. Eu mal tive tempo de entender o que ela estava fazendo antes que sentisse o impacto de um chute na lateral das minhas costelas.
O golpe me fez cambalear para o lado.
Por instinto, girei e agarrei o tornozelo dela antes que conseguisse se afastar. Ela tentou se soltar, mas usei a própria inércia para puxá-la, forçando-a a girar e cair sobre a areia.
Antes que pudesse se recuperar, me inclinei sobre ela, segurando seus pulsos contra o chão. Ela arquejou ligeiramente, o peito subindo e descendo com a respiração acelerada. Seus olhos estavam cravados nos meus, e um sorriso brincava em seus lábios.
Droga. Como eu podia focar em lutar quando ela estava ali, olhando para mim daquele jeito?
— Eu venci. — Declarei, o tom triunfante.
— Foi só sorte. — Ela rebateu, rindo.
Por um segundo, ficamos apenas nos encarando, nossos rostos próximos. Meu corpo ainda pulsava com a adrenalina da luta, e eu sentia a energia vibrante no ar entre nós. Calista sempre despertava algo em mim que ninguém mais conseguia.
Ela era meu combustível. Se ela sorrisse para mim, eu poderia incendiar tudo.
Lentamente, soltei seus pulsos e me afastei, estendendo a mão para ajudá-la a se levantar. Ela pegou minha mão, e quando estava de pé, me puxou de surpresa, me desequilibrando. Antes que eu percebesse, era eu quem estava caído na areia, com ela pairando sobre mim, os olhos brilhando de travessura.
— Agora eu venci. — Ela provocou, piscando.
Eu ri, balançando a cabeça.
Droga. Eu estava completamente ferrado. E amava isso.
O sol brilhava intensamente no céu azul límpido, espalhando um calor agradável sobre a areia dourada. O som das ondas quebrando suavemente na costa preenchia o ar com uma melodia constante, acompanhada pelo canto distante das gaivotas que planavam pelo horizonte. A brisa marítima soprava contra minha pele, trazendo consigo o cheiro salgado do oceano, misturado com a essência natural de Calista, que estava à minha frente, observando o mar.
Meus braços envolveram sua cintura, puxando-a levemente para trás, encostando minha cabeça no ombro dela. Eu podia sentir a respiração dela desacelerando, os músculos relaxando com meu toque. Era um gesto simples, mas carregado de um significado que só nós dois entendíamos. Não a apertei com muita força. Me lembrei da noite passada. Me lembrei da nova cicatriz que agora marcava sua pele.
Ela tinha duas agora. Duas cicatrizes, em lugares diferentes, mas pelo mesmo motivo, eu.
A primeira veio do torneio, quando ela se machucou por minha causa. A segunda... A segunda veio daquele desgraçado que tentou esfaqueá-la. A memória me atingiu como uma lâmina fria. O sangue escorrendo, o pânico em seus olhos, a minha incapacidade de impedir aquilo. Essas imagens se repetiam na minha mente como um pesadelo incessante.
Eu sentia como se estivesse fadado a ser o motivo da sua dor.
Mas eu não queria isso. Eu queria ser o motivo da sua sorte, da sua felicidade, da sua vitória. Queria ser aquele que a fazia sorrir, e não alguém que deixava cicatrizes em seu corpo e alma. Toda vez que eu tentava me aproximar, o mundo dela parecia desmoronar de alguma forma. E ainda assim, eu não conseguia me afastar. Eu sabia que, por mais que talvez tudo fosse mais fácil se estivéssemos separados, abandoná-la seria um golpe pior do que qualquer ferimento que já sofremos.
Então, eu a girei levemente pela cintura, fazendo com que ficasse de frente para mim. Seus olhos encontraram os meus, e por um instante, houve apenas silêncio. Um silêncio cheio de significados. De promessas não ditas. De medo pelo futuro e nostalgia pelo passado.
Encostei minha testa na dela, sentindo sua respiração misturar-se com a minha. Fechei os olhos por um segundo, absorvendo o momento. Depois, em um sussurro firme, quase um juramento, eu disse:
— Eu sei que ando falhando como seu protetor ultimamente, mas acredite, Calista... A partir de hoje, eu posso até morrer, mas você vai ser campeã. Custe o que custar. Eu vou te proteger de qualquer coisa que tente te impedir de segurar aquele troféu.
Ela sorriu. Um sorriso carregado de sentimentos conflitantes. Medo, talvez. Mas também havia admiração. Havia fé. Fé em mim.
— Eu já disse, Kwon... — Sua voz era um sussurro, mas cheia de convicção. — Não importa o que aconteça, você já é um campeão. Eu tenho certeza disso. E vamos ficar bem. Tudo está chegando ao fim.
Eu assenti, repetindo suas palavras, tentando acreditar nelas.
— Tudo está chegando ao fim...
Mas dentro de mim, algo pesava. Algo que me sufocava. Eu sentia um estranho misto de felicidade e saudade. Porque, por mais caótica que a nossa vida tivesse sido até agora, eu sabia que sentiria falta dos primeiros momentos. Da adrenalina. Das noites em claro conversando. Das lutas. Do fogo que queimava entre nós sempre que estávamos juntos. Mas o que viria depois? Como seria a vida depois do torneio?
O que aconteceria conosco?
E se eu tivesse que voltar para a Coreia? E se Calista ficasse em Marietta? E se ela fosse para a faculdade e eu assumisse o dojô ao lado de sensei Kim? Nossos caminhos poderiam se separar. Se seguíssemos direções opostas, seríamos fortes o suficiente para suportar isso?
O pensamento me doía. Me matava. Mas eu queria acreditar no agora. No que construímos até aqui. Na promessa que fizemos, de segurarmos aquele troféu juntos.
O vento soprou mais forte, fazendo os cabelos dela balançarem e cobrirem parte de seu rosto. Eu os afastei delicadamente, deixando meus dedos deslizarem por sua bochecha. Seus olhos estavam brilhando sob o sol, refletindo o oceano atrás de nós.
— Eu nunca vou te deixar, Kwon. — Ela disse, como se tivesse lido meus pensamentos.
Eu apertei os lábios, engolindo a vontade de dizer que nada estava garantido. Que a vida sempre nos arrastava para direções imprevisíveis. Que eu não queria perdê-la. Mas, em vez disso, eu apenas segurei seu rosto entre minhas mãos, absorvendo cada detalhe dela. O brilho dourado da pele sob a luz do sol. A maneira como seus cílios tremiam levemente. O jeito como seu corpo parecia feito para se encaixar no meu.
E então, eu a beijei.
Dessa vez, não foi um beijo apressado. Não foi algo tomado pelo calor do momento. Foi algo profundo. Algo que eu quis gravar na minha alma, caso algum dia eu tivesse que me lembrar de como era tê-la nos braços. Seus lábios eram macios, sua respiração entrecortada, como se estivesse perdida no toque tanto quanto eu. Minha mão deslizou por sua cintura, apertando-a contra mim, e senti seu corpo responder ao meu.
Mas não era só um mero desejo. Era algo maior. Algo que eu ainda não sabia nomear, talvez um amor tão grande que sequer cabia em mim.
Quando nos afastamos, ficamos ali, respirando no mesmo ritmo. E eu soube, naquele instante, que independente do que acontecesse, ela era minha.
E eu era dela.
A brisa da manhã soprava do oceano, carregando consigo um cheiro salgado e fresco que preenchia meus pulmões. As ondas se quebravam contra a areia molhada, criando um som rítmico e constante, quase como um fundo musical para os meus pensamentos.
Caminhávamos agora lado a lado, nossas mãos entrelaçadas, os passos sincronizados sobre a areia fofa e fria. O hotel não estava tão distante, mas eu queria prolongar aquele momento o máximo possível. Cada passo que dávamos era como um lembrete do caminho que percorremos até aqui, não apenas no tatame, mas também em tudo o que enfrentamos juntos.
A lua refletia sobre o oceano, deixando um brilho prateado sobre a superfície cristalina da água. Era uma paisagem bonita, calma... E, de certa forma, irônica. Porque dentro de mim não havia essa mesma calmaria. Havia uma tempestade em formação.
A luta no Sekai Taikai seria a maior de nossas vidas. E eu sabia que, de um jeito ou de outro, aquilo marcaria o início de algo novo.
Calista andava ao meu lado, apertando minha mão de vez em quando, como se dissesse, sem precisar de palavras, que estava ali comigo. Eu sentia o calor da pele dela, o jeito que seus dedos se encaixavam perfeitamente nos meus, e aquilo me trazia uma sensação que eu não conseguia explicar. Algo entre segurança e um medo absurdo. Porque depois de tudo, depois de toda essa jornada, a única coisa que me assustava de verdade... Era perder.
Não apenas a luta. Mas perder ela.
Eu olhei de canto de olho, observando seu perfil sob a luz do sol. Seus cabelos estavam soltos, sendo levemente bagunçados pela brisa do mar. Os olhos dela pareciam focados em um ponto distante no horizonte, e por um momento, me perguntei no que ela estava pensando.
Talvez estivesse sentindo o mesmo que eu.
O peso daquela luta.
A expectativa do futuro incerto.
Ou talvez ela estivesse apenas aproveitando a manhã, porque era exatamente assim que Calista era, alguém que conseguia encontrar beleza até nos momentos mais tensos.
Eu suspirei, apertando a mão dela um pouco mais forte.
— O que foi? — Ela perguntou, sem desviar o olhar do mar.
— Só... Estava pensando.
Dessa vez, ela me olhou.
— No quê?
Engoli em seco.
— No que vai acontecer depois disso tudo.
Ela ficou em silêncio por um momento, e então um pequeno sorriso surgiu em seus lábios.
— Isso tudo significa o Sekai Taikai, né?
Assenti. Ela respirou fundo, desviando o olhar novamente para as ondas.
— Vai ser um recomeço, de qualquer forma. — Disse, sua voz leve, mas carregada de significado.
Recomeço. Essa palavra ecoou na minha mente. Ela estava certa. Não importava o resultado, aquela luta seria o ponto de virada.
Porque depois de tudo o que passamos, depois de cada derrota, cada humilhação, cada momento em que tivemos que encarar nossas fraquezas expostas para o mundo ver... Agora era a hora de mostrarmos nossa força.
O Cobra Kai tinha sido derrubado antes. Eu tinha sido derrubado antes. Mas dessa vez, eu não deixaria que nos subestimassem. E mesmo que Calista estivesse do outro lado, no Miyagi-Do, mesmo que tecnicamente fôssemos adversários nessa competição, havia uma coisa que eu sabia com absoluta certeza.
Ela seria a campeã feminina. E eu faria de tudo para ser o campeão masculino. Eu queria estar ao lado dela, os dois segurando os troféus de campeões mundiais.
O pensamento fez meu peito se encher de determinação. Porque mesmo que o mundo tentasse nos colocar em lados opostos, mesmo que os dojôs ainda fossem rivais, no fim das contas... Ela era a pessoa com quem eu queria dividir essa vitória.
O amor da minha vida.
— Kwon?
Pisquei algumas vezes, voltando ao presente, e percebi que havíamos parado de andar. Ela me encarava com um olhar suave, e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela deslizou os braços ao redor da minha cintura, encostando a testa no meu peito.
Eu senti meu coração desacelerar por um momento. Apenas fiquei ali, abraçando-a de volta, sentindo seu calor, seu cheiro misturado ao da brisa do mar. Ela suspirou contra minha pele, e sua voz saiu baixa, quase um sussurro.
— Vamos vencer, Kwon.
Eu fechei os olhos por um instante, absorvendo suas palavras. E então, sem precisar pensar, eu respondi:
— Juntos.
Porque no fim, não importava o que acontecesse no tatame. Nós sempre estaríamos juntos.
❝ 𝘕𝘰𝘣𝘰𝘥𝘺 𝘴𝘢𝘪𝘥 𝘪𝘵 𝘸𝘢𝘴 𝘦𝘢𝘴𝘺. 𝘐𝘵'𝘴 𝘴𝘶𝘤𝘩 𝘢 𝘴𝘩𝘢𝘮𝘦 𝘧𝘰𝘳 𝘶𝘴 𝘵𝘰 𝘱𝘢𝘳𝘵. 𝘕𝘰𝘣𝘰𝘥𝘺 𝘴𝘢𝘪𝘥 𝘪𝘵 𝘸𝘢𝘴 𝘦𝘢𝘴𝘺. 𝘕𝘰 𝘰𝘯𝘦 𝘦𝘷𝘦𝘳 𝘴𝘢𝘪𝘥 𝘪𝘵 𝘸𝘰𝘶𝘭𝘥 𝘣𝘦 𝘵𝘩𝘪𝘴 𝘩𝘢𝘳𝘥. 𝘖𝘩, 𝘵𝘢𝘬𝘦 𝘮𝘦 𝘣𝘢𝘤𝘬 𝘵𝘰 𝘵𝘩𝘦 𝘴𝘵𝘢𝘳𝘵 ❞
Obra autoral ©
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