I - Café e Assobios
Azura
Sapore puro; um nome desastroso para um lugar de iguais proporções. Trata–se de um restaurante, localizado em uma das vias principais de Florença, uma construção antiga, tão antiga quanto as outras que a cercam. No entanto, a grande diferença está no cuidado, porque enquanto os outros locais são considerados pontos altos para o turismo, e sempre estão abarrotado de pessoas, Sapore puro é como a ovelha negra, deslocado, feio e com rachaduras visíveis logo na entrada, e uma clientela fixa que resume–se a trabalhadores de uma obra do outro lado da rua, ou funcionários da biblioteca pública que fica na mesma alameda, todos em busca de uma refeição aceitável e principalmente, com preço baixo.
Em outras circunstâncias, nunca adentraria a porta com a pintura vermelha desbotada, e o soar do sino soando acima da minha cabeça não seria tão familiar quanto o próprio som da minha voz. Contudo, eu frequento Sapore Puro e não para degustar da culinária acessível, mas sim pelo fato de trabalhar ali há quase três anos.
Um salário tão péssimo quanto a comida, e as condições piores do que o próprio prédio prestes a desabar.
No momento que a porta se fecha atrás de mim, Winston surge na janelinha que separa o seu escritório do salão de atendimento; este ainda vazio, pois até então estamos fechados. Winston é uma criatura cruel, sem nenhum senso de respeito dentro de si, baixo demais para seus cento e vinte quilos, possui uma barriga avantajada, um hálito de dragão e pés de galinha abaixo dos olhos.
— Cagna! Que honra! Finalmente resolveu nos agraciar com sua ilustre presença... — As palavras pingavam sarcasmo e tive que me segurar para não revirar os olhos, agarrando com mais força a alça da mochila velha que carregava comigo. Não poderia ser insolente, não naquele momento quando ele tinha razão para estar com raiva.
Eu preciso muito do emprego, é a chance de conseguir minha liberdade algum dia, porém enquanto estou aqui esfregando o chão e servindo mesas, minha mãe acredita que estou na escola; lugar que não compareço há meses, logo após implorar para o Tirano – vulgo Winston - que me contratasse em tempo integral.
O problema está na minha matriarca, uma viúva obcecada por religião e solitária demais, sempre buscando motivos para que eu falte ''aula'' e fique consigo em casa, e eu não posso recusar, não posso levantar suspeitas e nunca tenho tempo suficiente para avisar alguém, porque não tenho celular, pois de acordo com a minha mãe, é obra do demônio, como se o Satanás fosse se importar se eu tivesse uma conta no Tik Tok! Mas resumindo a história, eu faltei os três últimos dias e agora o manda chuva provavelmente quer comer ou vender meu rim.
— Mi scusi. Tive problemas familiares, você entende certo? — Fiz um pequeno beicinho juntando as duas mãos e o Tirano bufou audivelmente. Scott – o cozinheiro – havia acabado de adentrar o recinto e ao se deparar com a cena, levou a mão até meus fios castanhos, bagunçando – os de modo carinhoso.
— Senti saudades Azul — Ele murmurou piscando um dos olhos e eu sabia que era verdade, Scott é o homem mais sincero que conheci na vida - não que eu conhecesse muitos — E show, adorei a camiseta! — As íris esverdeadas estudaram o conteúdo da camiseta vermelha que estava no meu corpo, a imagem do homem de ferro junto com os dizeres; ''gênio, bilionário, playboy, filantropo e o homem de ferro''.
— Você não vive sem meu humor ácido e minhas camisetas descoladas pé de chulé! — Respondi de maneira brincalhona e depois dele sumir ultrapassando a porta da cozinha, voltei minha atenção para Winston, as bochechas avantajadas estavam avermelhadas, agora se o motivo era raiva ou calor, eu nunca saberia e nem me importava — E então? Estou perdoada?
— Que seja cagna! Vá trabalhar sua imprestável! — O Tirano sentenciou e em seguida fechou a janelinha sem chance para ofensas da minha parte, e sumiu dentro do escritório, provavelmente para encher a cara.
Levantei meus dois dedos do meio para a janela agora fechada e senti um pano de prato acertar meu rosto.
Karina.
Ninguém merece.
— Não ouviu o patrão? Vai se trocar, porque eu não vou limpar esse salão sozinha! — Resmungou emburrada e logo voltei minhas íris azuladas em sua direção, caminhando até a mesma com uma calma cínica.
Karina estava limpando a mesa seis e assim que parei diante da sua figura irritante, pisei em seu pé esquerdo adornado pela sapatilha branca e brega do serviço com toda minha força, meu All Star vermelho destacando–se no meio da situação, aquilo na ponta era lama?
Eu até aceitava insultos e ordens de Winston sem questionar, pois apesar de nojento, era ele que pagava meu salário ao fim do mês. Agora, Karina?
Definitivamente não.
A loira resmungou com dor e saiu mancando e xingando em idiomas diferentes, eu por outro lado dei de ombros e voltei a caminhar até os fundos, onde havia um ''vestiário'' me aguardando que na verdade se trata de um armário de vassouras, porém um pouco de imaginação transforma tudo ao redor. Ao adentrar respirei fundo, e levei a mão até a testa, minha cabeça latejava fortemente e já sentia o cansaço psicológico me alcançar.
Ótimo, hoje seria um dia daqueles.
♡
O restaurante já estava aberto há duas horas, e estávamos no horário de maior movimento. Ou seja naquele ocasião havia duas mesas ocupadas, uma na área de Karina e outra na minha.
Meu cliente se resumia a um erudito com o rosto enfiado no jornal, e sequer consegui ver suas feições, apenas entendi a palavra "café", como se fosse um rei ladrando ordens para sua desprezível serviçal. Eu não gostei dele desde o primeiro instante!
Virei nos calcanhares contendo um bufo e voltei para a área que dividia o salão de atendimento da cozinha, ali tem outra janelinha e por ela Scott entrega os pedidos, ademais para a disposição das garçonetes há um balcão e no mesmo fica disposto ferramentas para agilizar o tempo de pedidos "simples" dos clientes, dessa forma não sobrecarregando o cozinheiro. As ferramentas consistem em; uma cafeteira de segunda mão, uma pipoqueira que nunca foi usada, sanduícheira, uma Air fryer e por fim o freezer. Então, como o homem apenas requisitava café, a tarefa era exclusivamente minha, e bastava esquentar um pouco do líquido escuro recém passado. O âmbar dos deuses. A única coisa que me arriscava a experimentar naquele submundo, apenas por um motivo; eu que preparo.
Estava de costas quando escutei o sino da porta, arrisquei um olhar para o relógio na parede, e em seguida veio o assobio, aquecendo meu coração, e um sorriso involuntário surgiu nos meus lábios como sempre acontecia. Sempre pontual. Assobiei de volta, a melodia preenchendo o ambiente - nosso sinal - e me virei.
Cruzando o salão do restaurante estava Roy; meu único e melhor amigo, se sentando na mesa ao lado do estranho do jornal enquanto acenava para mim, a mesa que ele escolhia desde o primeiro dia que veio me visitar no serviço, há três anos atrás.
Scott surgiu na janelinha quase no mesmo instante com o prato dele pronto: Bruschetta de presunto de parma, queijo e rúcula. Roy Gardier nunca se aventurava no cardápio, também nunca se aventurava na vida.
— Você é o melhor Scott... — Pisquei para o cozinheiro, e observei suas bochechas ganharem um tom avermelhado antes de depositar o prato no balcão e desaparecer novamente. Desliguei a cafeteira e quase no mesmo instante Karina se aproximou me empurrando propositalmente. Que garota chata!
— Para de flertar com o Scott e vai trabalhar! — Resmungou apanhando uma xícara e se servindo de café. "Mi-mi-mi, tenho ciúmes, quero dar pra ele e não admito."
— Quem rasgou sua cartinha de amor no fundamental pra você ser assim? — Revirei os olhos enquanto pegava uma bandeja e o pedido de Roy, o estranho do jornal que esperasse um pouco mais. Karina me encarou alarmada, prestes a pular no meu pescoço, e antes que ela realmente fizesse isso, comecei a me afastar dando de ombros — Quer saber? Não me importo...
Virei nos calcanhares e caminhei apressadamente até meu melhor amigo.
Até então, nunca fui uma garota popular, principalmente na escola. As outras crianças sempre implicaram comigo, pelo simples fato de ter sido encontrada, sem memória - uma página em branco. Constantemente faziam questão que eu recorda - se que meus próprios pais biológicos me abandonaram e que ninguém buscava pela minha persona. Roy era o único que me defendia, e por minha causa levou o primeiro soco, desde então, somos inseparáveis.
Seus olhos castanhos me observavam com cautela, pegou os talheres e começou a atacar sua refeição com vontade. Os fios castanhos estavam levemente despenteados, provavelmente viera direto da academia e apesar do seu porte magro, havia alguns músculos despontando dos seus braços.
— Scott isto aqui está divino! — Ele gritou a pleno pulmões com a boca cheia de comida e o cozinheiro surgiu na janela outra vez mandando um positivo para Gardier. Foi impossível conter minha careta e ele logo voltou sua atenção para mim — Desculpe Azul, estou ligado no 220 hoje!
— Céus! Você está ligado no 220 desde o dia em que te conheci Gardier....— Murmurei baixo, deixando a bandeja sobre a mesa, enquanto meu melhor amigo gargalhava.
Era sempre assim, ele me visitava no trabalho, pedia algo e ficava ali, e entre os atendimentos, tentávamos conversar. Desde o momento que larguei a escola e comecei a trabalhar em período integral, nosso tempo livre entrou em conflito. Diferente de mim, Roy tem uma família que o apoia e grandes chances de entrar em uma renomada faculdade, então se dedica 24/7 aos estudos.
— Que tal noite de filmes de terror? — A voz era esperançosa, me tirando dos devaneios e pelo menos dessa vez teve a decência de não falar de boca cheia.
— Não tivemos uma semana passada?
Roy bufou. Eu fiz careta me preparando para a bronca.
— Semana passada você teve que sair às pressas porque sua mãe estava se sentindo mal. Semana retrasada sequer apareceu, ou na outra antes dessa... — Ele resmungou de cabeça baixa, atacando furiosamente sua bruschetta.
A culpa me assolou ao observar sua expressão decepcionada.
Eu não tenho muitos bens na minha vida, e muito menos pessoas dentro dela, e provavelmente Roy é a única pessoa que me conhece completamente, e tenho medo de perder isso. Durante a infância juramos sempre colocar nossa amizade em primeiro plano e às vezes eu vacilava com a promessa, na verdade vacilava com tudo.
Arrastei a cadeira e me sentei ao seu lado, mesmo sabendo o quão impróprio era e então segurei na sua mão, fazendo-o me encarar.
— Desculpe...É só...
— Muita coisa — Ele completou e sorriu triste — Volta para a escola Luna, não é a mesma coisa sem você...— Fechei os olhos suspirando.
Roy raramente usava meu primeiro nome, porque eu não utilizava ele. Luna Gregori foram as únicas duas palavras que eu tinha em mente quando encontrada, e Azura foi o nome que meus pais adotivos me deram, por conta das minhas íris incrivelmente claras, tão azuis que assimilavam - se ao branco em alguns dias. Usar meu primeiro nome é um golpe baixo, e ele sabe disso.
Desfiz o aperto de mão, e me levantei da cadeira.
— Sabe que não posso, sabe que esse emprego é minha única chance de liberdade! — Já estava cansada de repetir o mesmo discurso. É um ambiente tosco e desastroso, no entanto é o único emprego disponível para uma garota como eu, sem estudos, sem nada. Era injusto que ele não entendesse.
Roy se deu por derrotado e tornou a abaixar a cabeça, e antes que eu tivesse chance de dizer algo, um pigarreio se fez presente - o cliente do café. Droga.
Minhas orbes viraram em sua direção, mas o maldito jornal ainda cobria seu rosto, e por um segundo pensei ter sido uma alucinação, entretanto sua voz preencheu o salão no momento seguinte. Inconveniente, impertinente, como se fosse o dono do mundo.
— Eu não quero interromper os dois adolescentes idiotas. Entretanto, quero meu café...
— Sua mãe nunca te ensinou que é errado atrapalhar a conversa alheia? Ou chamar os outros de idiotas seu idiota? — Retorqui cruzando os braços, emburrada.
— E a sua nunca lhe ensinou que é antiético conversar no horário de serviço garçonete? — Touché. Era mesmo um idiota, apesar de estar na razão.
Roy engasgou e então, o homem abaixou o jornal e pela primeira vez pude observar seu rosto. Eu não sei o que esperava, mas de certo não era alguém tão...Másculo e bonito? A barba rala por fazer, feições sérias, e olhos azuis penetrantes, e mesmo sem motivo algum, senti minhas bochechas se avermelharem com vergonha.
— Posso ter meu café ou devo esperar que você decida se vai sair com o menino ou não?
Antes que eu pudesse argumentar, Winston surgiu atrás de mim, sua destra agarrando minha bunda, me dominando, nojo me preencheu e foi preciso respirar fundos três vezes para não soca-lo no rosto. A atenção do chefe em contrapartida não estava em mim, e sim no freguês desconhecido. E por um instante pensei ter visto o maxilar do mesmo cerrado e seus olhos ardendo em fúria, então pisquei e a expressão não estava mais lá.
— Cagna, você não quer que seu traseiro seja chutado, hum? — Questionou com frieza. Na verdade, eu desejava que ele retirasse as mãos do meu traseiro e morresse. No entanto, não poderia proferir as palavras em voz alta.
Escutei Roy xingar baixo, e lancei para meu amigo um olhar de aviso "Fique calado e não piore às coisas". Quando não respondi, meu chefe deslizou a mão que me agarrava para o braço, apertando - o sem cerimônia. Ficaria marcas. Cretino!
— Eu te fiz uma pergunta!
— Não... — Sussurrei abaixando a cabeça, submissa e logo repeti do modo certo — Não senhor...
— Ótimo. Senhor...? — Havia um questionamento no ar e eu não me atrevia a encarar o desconhecido, não queria visualizar o ar de arrogância que provavelmente estampava seu rosto.
— Nowa. Meu nome é Nowa. E eu só quero a droga de um café... — Ele foi curto e direto.
Winston me soltou, como se dissesse "vá e seja rápida" e eu me afastei dali, fazendo a jornada de volta para o balcão, me controlando para não desabar ali mesmo. Sabia que o único motivo para não ser mandada embora é o fato de ninguém mais desejar o serviço, ninguém iria querer trabalhar com Winston, e os três funcionários que o mesmo tem, se deve ao fato de estarmos com a corda no pescoço. E por mais horrível que ele fosse, há coisa pior lá fora.
Eu não me atrevi a erguer o olhar enquanto servia o líquido escuro na xícara. Roy estaria cuspindo fogo, Scott teria uma expressão de pena, e Karina estaria sorrindo.
Voltei rapidamente para a mesa e Winston ainda estava lá, esperando pacientemente. Coloquei o café em frente ao estranho ainda sem encara-lo e voltei a posição anterior, perto do meu chefe.
— Ótimo — O Tirano ronronou e logo completou de maneira sarcástica — Agora peça desculpas para Nowa...
Às vezes eu me imaginava quebrando cada dente da boca de Winston e em seguida cada osso, uma das minhas fantasias preferidas. Engoli em seco e ergui as orbes até o estranho do café, ele me encarava com uma calma contida e um pouco de curiosidade, como se questionasse o porquê de eu estar ali.
— Desculpe-me senhor Nowa... — Tentei não soar áspera e mentirosa. Provavelmente não fiz um bom trabalho.
— Tanto faz...— Nowa respondeu levando a xícara até os lábios, e voltou a me encarar com um sorriso cruel dominando suas feições — Eu não me importo com serviçais... — A tranquilidade dele me enojava, assim como ele por inteiro. Voltei a abaixar a cabeça e torci para o pesadelo acabar logo.
Como eu disse, um longo dia. Mas, ainda há coisas pior lá fora.
♡
[A partir daqui o capítulo pode apresentar alguns gatilhos como: violência doméstica, e transtornos psicológicos]
Já estava tarde, muito tarde.
Winston me obrigou a limpar o salão sozinha como punição pelo o que houve com o cliente, e o sol já havia desaparecido quando comecei a caminhar para casa, atrasada para o jantar.
O percurso levou em média de quarenta minutos, e eu não podia ter o luxo de gastar com um transporte público, nesse caso a única opção era andar e andar. Por mais cansativo que pudesse ser, era grata por aqueles poucos minutos de paz apenas comigo mesma, porque gostava de fantasiar como seria minha existência livre e fora dali, em outro estado ou outro país, não importava, portanto que estivesse longe dela.
Ao chegar na rua de casa, já pude vislumbra - la, parada na pequena ponte que levava direto até a residência, uma expressão quase lunática em sua face, sua expressão costumeira. Respirei fundo e me aproximei, segurando com força as alças da minha mochila, sentindo minha coragem desvanecer a cada passo mais próximo.
Dentro da mochila havia todo meu material de escola há muito tempo não utilizado, e meu uniforme bege e feio escondido em um bolso secreto.
— Onde estava peccaminosa? — Roseta questionou, suas unhas cravando na pele exposta do meu braço esquerdo sem alguma cerimônia. Gemi de dor, contudo ela não se importava.
Eu fui encontrada, muito tempo atrás na entrada de uma igreja abandonada há quilômetros de Florença ou qualquer lugar civilizado, o local era vazio assim como minha mente. Roseta e papai estavam lá, em uma viagem espiritual, pedindo por uma cura para seu útero infértil e então, me acharam. Que sinal divino maior poderiam esperar?Fui adotada, e fui feliz por uma pequena parcela da minha vida.
Apesar de rigorosos e extremamente religiosos, mamma e pappa eram bons, principalmente pappa. Ele me amava com todo seu coração, e aceitava o fato de eu não conseguir acreditar em Deus, me incentivava nos meus sonhos, e queria fazer parte deles, tirando Roy, pappa foi a única família que tive, e depois de três anos, ele morreu. Roseta nunca recuperou - se do seu luto, e de uma forma ou outra, acredita que eu causei esse destino miserável para ambas, e não polpa fôlego em transformar minha vida em um inferno.
— Eu...eu...
— Cale - se, não serei humilhada publicamente pelas suas levianices. Conversaremos em casa! — Não era um pedido, era uma ordem, e eu me calei sentindo meu coração acelerar intensamente. O primeiro sinal.
Vinte e cinco passos era o que restava entre a ponte e a residência do outro lado, e eu contei cada um esperando que isso me acalmasse. Não funcionou.
O primeiro objeto que chama a atenção depois de atravessar a soleira da porta, definitivamente é um abajur bege, velho e feio, e o preferido de Roseta, porque foi presente do próprio papa de acordo com ela, eu nunca acreditei. Segundo, o sofá puído pelo tempo e a falta de manutenção, uma vez azul escuro, agora possuía uma coloração incerta.
Roseta ainda com as unhas cravadas em minha pele me jogou no sofá, não se importando em ser delicada e logo estava ali, prostrada diante de mim, suas orbes viajando para minhas vestimentas - uma calça jeans surrada, meu all star vermelho e a camiseta do Homem de ferro, com desgosto.
— Onde estava peccaminosa? — Repetiu a pergunta. Nunca Luna, nunca Azura, tampouco Azul. Sou somente isso, um pecado.
— Na escola, atividade extra...— A mentira deslizou com facilidade impressionante dos meus lábios, no entanto antes que pudesse acrescentar os detalhes que havia pensado durante o caminho, a mulher ergueu a destra e chocou contra meu rosto com força. Arfei com dor e sequer tive tempo para massagear o local, pois logo sua mão voltou a me tocar, me segurando pelas bochechas, machucando e me obrigando a olhar para ela. Minhas íris se enchiam de lágrimas mesmo contra minha vontade.
Eu não posso chorar. Eu não posso. Mordi meu lábio inferior ao ponto de arrancar meu próprio sangue.
— Por que você se importaria com créditos extras? Eu sinto o cheiro da sua mentira, sua insolente! — Ela me largou, e então mais um tapa, e outro e outro.
— Pra faculdade! Pra faculdade! Créditos extras para uma boa faculdade! — Gritei desesperada, sentindo as lágrimas deslizando livremente pelas bochechas.
Meu rosto doía, meu peito doía, e naquele momento eu apenas queria morrer. Roseta gargalhou, e acariciou minhas madeixas castanhas com uma calma perigosa e psicótica. Eu odiava sentir medo dela, mas sentia.
— Já conversamos sobre isso, hum? Você não irá para a faculdade peccaminosa, não gastarei um só centavo com algo tão frívolo...
— Mas era o desejo de pappa — Argumentei com a voz rouca, a coisa errada a se dizer, e percebi isso no momento que as palavras tomaram forma fora da minha boca. No momento seguinte as mãos de Roseta se fecharam sobre meus fios com força, e a mesma saiu me puxando, arrastando escada acima. Mesmo que eu gritasse, e esperneasse, ela nada fazia além de me machucar mais.
Chorei, imaginando que tipo de pessoa fazia tantas atrocidades em nome de Deus. Será que este era mesmo seu propósito?
Ao chegar diante da porta do meu quarto no segundo andar, ela abriu e me empurrou para dentro, trancou a porta, me deixando sozinha dentro do cômodo frio.
— Seu pappa está morto por sua causa! Por sua causa! — Ela gritou chutando a porta, e por um instante me assustei, gritando.
Ainda estava no chão, no mesmo lugar que a mulher me largou, e apenas me encolhi, segurando meus joelhos e me sentindo novamente como uma criança com medo do bicho papão. Minhas íris não desviavam da porta, porque eu sabia que um dia ela perderia o pingo de controle que ainda possuía e então abriria a porta, e me mataria. Eu esperava que não fosse hoje.
— Fique sem comida. Jejuar faz bem, talvez traga Deus para sua vida sua peccaminosa!
Houve os sons de passos se afastando, e depois mais nada.
O silêncio me abraçou, e dessa vez eu estava bastante ciente das batidas frenéticas do meu coração, da respiração irregular e da dor no peito se intensificando. Abracei meus joelhos com mais força e chorei, livremente, abertamente, soluçando e gritando internamente.
Por que não parava de doer?
Meu corpo inteiro tremia, e eu sentia que estava na beira de um abismo, e logo a tentação de pular seria grande demais.
Escutei um barulho atrás de mim, e me virei dando de cara com Roy saindo debaixo da minha cama. Eu não falei nenhuma palavra e ele tampouco, apenas cruzou a distância entre nós dois e me abraçou com toda sua força, me trazendo para seu peito, e ali eu chorei ainda mais, deixando o desespero nublar meus pensamentos por longos minutos enquanto sentia a mão calma do meu melhor amigo afagando meu cabelo. Sua camiseta uma vez bem arrumada, estava ensopada com minhas lágrimas, mas ele não se importava, ele apenas queria meu bem, talvez seja a única pessoa que deseja isso.
Aos poucos, os soluços se dissiparam e o choro foi apaziguando, contudo eu não saia do seu abraço.
— Um dia... — Minha voz estava estranha, rouca, levantei meu rosto para encara - lo — Um dia eu juro, vou ter minha liberdade e vou fugir desse lugar e nunca mais vou olhar para trás Roy!
— Eu sei — Ele respondeu, entrelaçando os dedos aos meus e levando até os lábios, beijando cada um com calma e reverência — E quando esse dia chegar Azul, estarei junto com você... — Gardier murmurou com a sinceridade transbordando por seus olhos e então encostou sua testa na minha, suspirando. Ele falava a verdade, largaria tudo por mim e eu sei que deveria me sentir egoísta por isso, entretanto apenas me senti grata. Assobiei baixo, de olhos fechados, e meio segundo depois ele assobiou de volta.
Era a melhor resposta para aquele momento.
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