Capítulo 11: Ecos do passado



O clima fica mais tenso no quarto.

Seguro o ar nos pulmões de forma inconsciente no aguardo das suas próximas palavras.

— Mariana, você foi envolvida em algo maior, mais complexo do que possa imaginar. Quando você era pequena, seu pai, sua mãe e a Lorena, estavam trabalhando em uma ação advocatícia contra pessoas muito perigosas, incluindo alguém que é da família de sua mãe. Quando eles morreram no trágico e suspeito acidente aéreo, fui forçado a tomar decisões difíceis para garantir sua segurança, depois que, por um descuido meu você foi molestada.

Um arrepio frio sobe pela minha espinha dorsal.

Tenho vontade de tapar meus ouvidos para evitar ouvir o resto da história.

— Se o indivíduo não conseguiu terminar o que começou, foi graças a um anjo de empregada que pressentiu que algo estava errado quando ouviu seus gritos. Quando ela correu ao seu encontro, a porta do quarto estava trancada. Até ela conseguir abrir a fechadura com a chave reserva, a pessoa que trancou você ali havia fugido, desaparecido no ar. E esse mistério nunca foi esclarecido, tal como o acidente do avião de seus pais.

Conforme a narrativa seguia o curso, meu corpo se curvava para uma posição fetal na tentativa de me proteger daquelas revelações.

— A empregada a encontrou escondida dentro de um armário. Você estava com o vestido rasgado e sem roupa íntima. O medo que sentia a fez urinar no chão quando a sua salvadora a abraçou. Imediatamente eu fui chamado e a primeira ação foi levá-la correndo a um hospital.

Começo a soluçar compulsivamente. Meu corpo treme sem que eu consiga controlá-lo.

Meu tio me abraça apertado e permite que eu extravase todo o meu sofrimento.

— Mari, talvez você precise de um tempo antes de continuarmos. Você acabou de passar por um trauma para relembrar outro muito pior. Vou pedir que o médico lhe dê um calmante.

Empurro seu corpo e agarro meu travesseiro.

Quero fugir para outra dimensão, fingir que nada disso aconteceu comigo, dormir acreditando que minha vida vai voltar ao normal quando eu acordar.

O medicamente faz efeito imediato.

Não sei por quantas horas eu fiquei adormecida, mas quando abro os olhos é como se uma tempestade me atingisse.

Lembranças desconexas se entrepõem com as revelações que meu tio fez. Estou hiperventilando com o aperto que sinto no peito.

O que fizeram comigo? Por que eu apaguei essas lembranças da minha memória? Por que todos esses crimes não foram solucionados?

Uma autopiedade me acomete pela criança que fui, por todas as maldades que me fizeram, por me violentarem, por me traumatizarem.

Naquele instante me julgava incapaz de superar as marcas que me deixaram.

Dita entra no quarto de mansinho para ver se eu estava bem e sorri quando me encontra acordada.

Ela chega perto e acaricia meu rosto com tanto carinho que uma torrente de lágrimas volta a cair. Parecia que eu nunca mais pararia de chorar.

Minha amiga, com seu sorriso sereno e gestos simples, parece ser a única pessoa capaz de acalmar minha tempestade interna. Ela não precisa dizer nada; seu carinho é suficiente. Eu começo a perceber que, mesmo após todas as perdas e feridas, ainda há espaço para afeto genuíno."

Tal qual uma mãe amorosa, ela me abraça me acalentando sem dizer uma palavra. Permite que eu chore o quanto for preciso.

Não sei mensurar quanto tempo durou essa interação entre nós. Fomos interrompidas por dois homens abatidos e com semblantes preocupados que também vieram me espionar.

Dita se levanta e diz que vai trazer um chá de camomila com bolo para eu me alimentar. Não estou com vontade de comer, mas não recuso para não a desagradar.

Meu padrinho é o primeiro a se manifestar.

— Como se sente, minha querida? Quer tomar outro calmante?

Balanço a cabeça em negativa, enxugando com o dorso da mão as lágrimas que ainda teimam em cair.

— Vou superar tudo isso, tio. Só preciso de tempo para absorver as informações. Quero tomar um banho para me refrescar.

Ele sorri com tristeza.

— Sim, querida. Um banho lhe fará bem. Deixe a água fluir por seu corpo e levar todas as tristezas.

Desta vez sou eu dou um arremedo de sorriso.

Sr. Maranhão não diz uma palavra, mas observa cada movimento meu.

Os dois deixam o quarto e sigo para o banheiro.

No fundo da minha mente, uma parte de mim tenta negar o que acabei de saber. Como eu poderia ter sido vítima de algo tão monstruoso e ainda assim não me lembrar?

As imagens em minha cabeça estão soltas, como um quebra-cabeça que se recusa a se completar. Sinto-me frustrada por não conseguir lembrar de tudo. Mas será que eu estava realmente pronta para lidar com isso?

Antes de entrar no chuveiro, ligo a torneira da banheira para enchê-la.

Esfrego meu corpo com a bucha de um modo brusco, como se as cerdas pudessem tirar toda aquela sujeita do meu passado. Lavo os cabelos e saio do box quando a banheira está pronta.

Coloco os sais de banho e mergulho meu corpo na água fresca e cheirosa. Meu corpo relaxa e começo a me sentir melhor.

Deixo a banheira quando começo a sentir frio.

Visto meu roupão e vou para o quarto. Dita havia deixado o chá com bolo na minha mesa de cabeceira.

Aos poucos vou recuperando meu débil equilíbrio.

Surpreendo a todos quando apareço na sala de jantar às dezoito horas.

A minha melhora faz bem a eles, que parecem ter tirado um peso dos ombros.

Ninguém toca em assuntos que possam trazer de volta o clima tenso. O jantar transcorre tranquilo com comentários aleatórios sobre o tempo e a fazenda.

Sou a primeira a mencionar um assunto que os pega de surpresa.

— Sr. Maranhão, precisamos iniciar as atividades da escola. Não podemos deixar as crianças sem aula.

Ele se engasga com a comida e começa a tossir.

Meu tio se levanta e o ajuda com tapinhas nas costas.

— Desculpe-me, não queria deixar o senhor nervoso.

Já recuperado, o velho sorri.

— Não fiquei nervoso, Mari. Fiquei abismado!!! Você se restabeleceu mais rápido que previmos, graças a Deus. Espero que esteja mesmo pronta para enfrentar os desafios que terá na escola.

Confirmo que estou ciente com um leve balançar da cabeça.

— Tenho certeza de que estou pronta para começar.

Noto que meu tio está calado e com semblante preocupado.

Estendo a mão sobre a mesa para segurar a dele.

— Tio, ainda não encerramos nossa conversa e sei que não poderá se ausentar por muito tempo do Rio. Podemos continuar amanhã depois do café?

Ele aperta minha mão com carinho e faz troça.

— Que água milagrosa a desse chuveiro! Posso tomar banho no seu banheiro?

Todos nós rimos. O semblante de meu tio se suavizou.

— Continuaremos a conversar amanhã. Talvez a parte mais traumática você já conheceu. Isso não torna o restante da história menos difícil. Quero que saiba que estou admirado com sua força e espero que não esteja agindo assim como uma forma de fuga da realidade.

— Fique tranquilo, tio. Não posso dizer que não estou abalada com suas revelações e sei que ainda terei autos e baixos de humor, mas não quero viver sentido pena de mim mesma. Por isso, após o "banho mágico", percebi que tenho muita vida pela frente, sonhos que quero realizar. Talvez eu precise mesmo continuar a terapia que faço desde que fui para a Suíça. Só que agora, terei outros elementos para analisar.

— Fico muito feliz em saber disso, Mari. — Declara o Sr. Maranhão. Amanhã mesmo farei contato com alguns psicólogos que conheço e você poderá escolher o que mais lhe agradar.

Ao me recolher ao meu quarto, não tinha sono. Talvez por já ter dormido demais a peso de tranquilizantes.

Fico durante muito tempo na pequena varanda do quarto a apreciar o céu noturno. As noites ali na fazenda são maravilhosas, com o manto azul escuro coalhado de estrelas que parecem disputar espaço entre si.

Era comum enxergar estrelas cadentes e ao pensar nisso uma delas cruzou o horizonte.

No mesmo instante e sem saber a razão, o rosto de Theo surgiu em minha mente.

Apesar de sua arrogância, intolerância, desconfiança e tantos outros adjetivos com "ança", havia nele uma aura que me atraia.

Depois que sr. Maranhão comentou que seu gênio se tornou insuportável após a morte da mãe e que ele não soube trabalhar essa raiva por ter perdido alguém tão importante para ele, percebi que, talvez, todo aquele jeito de "bad boy" fosse apenas um escudo para esconder sua fragilidade.

Seus olhos tão penetrantes quando fitavam os meus, muitas vezes me deixaram entrever algo escondido, algo que ele não queria revelar. Agora posso entender que ele também tem dificuldade de se entregar, de deixar transparecer o seu íntimo.

Não sei o motivo, mas tenho a sensação de que, mais cedo ou mais tarde, nossos caminhos se cruzarão de novo.

Consigo pegar no sono já é madrugada.

As poucas horas que dormi foram agitadas por pesadelos. Cenas confusas, rostos, falas...

"...seu pai estava envolvido em negócios muito perigosos..."

"... as ameaças contra você vinham de todos os lados..."

".... há pessoas dispostas a fazer qualquer coisa para alcançar seus objetivos e você é o alvo..."

" vejo-me ainda criança ... tenho a sensação de estar sendo tocada de forma invasiva... sinto- me perdida e indefesa.

" a voz que escuto é familiar...aquelas mãos que me agarram, algo que desperta pânico em mim:

"— Vem cá que vou te fazer um carinho..."

" — Você vai gostar.."

"— Tão linda"

"— Não, não quero... me solta... papai... manheee... sai daqui... me deixa"

"corro... entro no armário... tenho medo de que ele me encontre ..."

"...a escuridão toma conta da minha mente e imagens surgem como fantasmas... luto para me livrar daquelas lembranças..."

Acordo apavorada e molhada de suor.

As imagens e sons ainda vívidos na minha cabeça.

Ouço baterem na porta me chamando.

— Mari, você está bem? Mariana?

A porta se abre sem que tenha tempo ou condições de responder.

Sr. Maranhão adentra o quarto de forma afobada e se depara comigo em um estado emocional deplorável.

Ao vê-lo e perceber que tudo foi um pesadelo, que estou amparada e segura, caio em um choro convulsivo.

Sr. Maranhão se ajoelha ao lado da cama e alisa meus cabelos com carinho, sussurrando palavras de alento....

— Shhh... Mari, está tudo bem, foi só um sonho ruim... respire profundamente, isso vai acalmá-la. Estou aqui e vou cuidar de você. Não vou deixar que nada lhe atinja.

Assim se inicia mais um dia como muitos outros que com certeza virão. 


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